Leer © JVieira
Caros amigos e
amigas, feliz ano, muita paz!
Escrevo a vocês
com mais notícias sobre a situação no Sudão do Sul nesse início de ano,
especialmente aqui da missão de Leer. Já se passaram quase vinte dias desde que
os conflitos se iniciaram em Juba. Ficou bem claro que se trata de uma crise
política profunda que ganhou um tom forte de tribalismo. Isto porque os dois
principais líderes envolvidos pertencem às duas maiores tribos do país. Mas não
se iniciou como um conflito tribal. É uma briga por poder que vem de muito
longe e quem paga caro é a população inocente e desprotegida, também muitas
vezes manipulada. O exército se dividiu entre as tropas leais ao vice-presidente
deposto (os rebeldes) e as tropas do governo.
Situação no geral - Os conflitos
intensos diminuíram e a situação em Juba está mais calma, porém, os conflitos
se espalharam por outras regiões. Não são intensos, mas de grande preocupação.
Até o momento fala-se de mais de mil mortos e cerca de 180 mil que deixaram
suas casas e se refugiaram nas bases da ONU, igrejas ou no meio do mato. Muitas
dessas pessoas, entre as quais muitas mulheres e crianças, tem acesso a pouca
comida, não tem água e o risco de adoecerem é muito grande. Nas cidades onde houve
conflitos o número de mortos é alto, muito maior o de feridos e refugiados.
Houve saques e muita destruição. Não se sabe quando os refugiados poderão
voltar para as suas casas. Temem serem mortos pelos rebeldes ou por membros de
tribos “rivais”. As ONGs retiram seus funcionários estrangeiros. O mesmo
fizeram muitos países cujos cidadãos trabalhavam no Sudão do Sul. Os
missionários de várias congregações continuam com o povo e com a Igreja local.
A situação no geral é tensa e de muita ansiedade e incertezas. A nossa região
está sob domínio dos rebeldes, as tropas que são leais ao vice-presidente
deposto. Fala-se que milhares de jovens se ofereceram como voluntários para
lutar contra o governo. Estariam marchando com os rebeldes rumo à capital Juba
para dominá-la. Um grupo de mais de cem jovens passou em frente à nossa igreja
no domingo enquanto alegremente iam se alistar para eventuais combates. Os
rebeldes dominaram a nossa região que é rica em petróleo do qual a economia do
país depende em 98%. É claro que o governo vai enfrentar os rebeldes com unhas
e dentes para recuperar a principal fonte de renda. De fato, o governo declarou
nossa região como ‘estado de emergência’, o que muitos entenderam como uma
declaração de zona de guerra. A boa notícia é que diminuíram os conflitos e os
líderes políticos resolveram conversar e concordaram com o cessar fogo e fim
das hostilidades. Mas uma coisa é o acordo no papel, outra coisa é parar os
conflitos onde eles acontecem.
Situação na missão de Leer – Das maiores
cidades da região sob domínio dos rebeldes, Leer é uma das poucas onde não
houve conflitos. Quase toda a nossa Diocese de Malakal, com exceção da sede,
está sob domínio dos rebeldes. Em Malakal pela primeira vez não puderam
celebrar o natal. Aqui em Leer celebramos natal e ano novo em relativa paz. Os
conflitos acontecem mais nas capitais ou onde há presença de tropas pró ou
contra o governo. Em Leer, além do povo ser de uma única tribo, dá a entender
que estão do lado dos rebeldes. Porém, fomos afetados de outras formas e
seguimos temerosos e ansiosos com essa situação de medo e incertezas. Leer é
por natureza uma região isolada. Com os conflitos o único acesso pelo Rio Nilo
foi interrompido pelos rebeldes. Pelo ar, a única empresa área que voava para
essa região suspendeu os voos. A ONU pode fazer voos humanitários, mas não é
tão fácil. Por terra, a única estrada que liga Leer a Juba continua
intrafegável, com pontes destruídas pelas chuvas, e passa pela zona de
conflitos com os Dinkas. Portanto, seria insegura. A estrada que liga Leer a
Bentiu foi reaberta, mas um pouco insegura. Com isso ninguém chega e ninguém
parte. O mesmo acontece com alimentos e outros bens. Os produtos disponíveis no
mercado diminuem e aumentam de preço. Os comerciantes vivem em constante medo
de saques. Os trabalhos pastorais foram seriamente comprometidos. Essa é a
época da seca em que se tem acesso a algumas áreas mais isoladas, mas por causa
da insegurança não podemos ir. Há comunidades que não recebem nossa visita
pastoral há mais de ano. A assembleia provincial dos combonianos foi suspensa.
Resolvemos não deixar a missão de Leer neste momento difícil e ficar junto ao
povo. Nossa presença ‘inibiria’ possível violência contra o povo e ‘evitaria’
saques na missão.
Um desabafo – Nós Missionários Combonianos
e combonianas em Leer, como em todo o Sudão do Sul, sentimos uma profunda
tristeza por toda essa situação. Lamentamos não poder visitar todas as
comunidades. Lamentamos profundamente a incapacidade dos líderes de resolverem
os seus conflitos políticos através do diálogo. Na verdade, a grande maioria
dos líderes são militares rebeldes que combateram na guerra civil por mais de
21 anos. Possuem pouca experiência de diplomacia e administração. Não é
surpreendente a forma como estão agindo. Lamentamos ainda que a nação mais
jovem do mundo, com apenas dois anos e seis meses de independência e uma das
mais pobres do mundo, tenha que passar por toda essa situação dolorosa de
sofrimento, violência e morte. Os pobres agora estão mais pobres e mais vulneráveis
ainda. A esta altura a luta de muita gente é por sobrevivência e proteção. A
decepção com as lideranças políticas é de fato muito grande por parte de toda a
população. Porém, temos esperança. A fé no Deus da vida e da paz nos sustenta e
nos guia. A fé do povo é também muito grande. O povo sul sudanês é conhecido
por sua resiliêcia. Tem uma capacida muito grande de se recuperar de conflitos
e tragédias. A igreja tem sido protetora, guia e mediadora nessa crise. A ONU
tem prestado um grande serviço humanitário e de segurança junto com outras
organizações. A mídia ora ajuda, ora atrapalha com informações que são apenas
rumores. As negociações entre os líderes foram iniciadas na Etiópia. Esperamos
por resultados urgentes, verdadeiros e eficientes para o fim da crise. Nesse
momento o que mais nos interessa é o fim dos conflitos e o restabelecimento da
paz. Agradecemos a solidariedade, orações e apoios recebidos de muita gente.
Isso tem nos ajudado. Continuamente pedimos ao povo que intensifiquem as
orações pela paz e reconciliação. A justiça é também muito necessária. Reafirmo
que em Leer estamos bem e peço mais uma vez que rezem por nós e pela paz e
justiça no mundo. Muito axé!
Com estima,
Pe. Raimundo Rocha, mccj
Missão de Leer
Missão de Leer
Sudão do Sul
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