4 de julho de 2020

MÁQUINAS DE CORRIDA


Atletas da África Oriental dominam meio-fundo e fundo há décadas. 

O etíope Abebe Bikile ganhou, descalço, a maratona olímpica de Roma em 1960 e inaugurou o domínio dos fundistas da África Oriental. Voltou a ganhar a prova-rainha do atletismo em Tóquio, quatro anos depois. Em 1968, no México, lesionado, cedeu o lugar no pódio ao compatriota Mamo Welde.

Hoje, os dez mais rápidos corredores da maratona são do Quénia (quatro) e da Etiópia (seis). Entre as atletas, cinco são quenianas, três etíopes, uma é inglesa (com o segundo melhor tempo) e uma israelita. Nas provas específicas, nos 10 quilómetros e na maratona, as mais rápidas são sete do Quénia e três da Etiópia; nos homens, cinco são do Quénia e três da Etiópia.

O queniano Eliud Kipchoge (na foto) foi o primeiro a correr a maratona em menos de duas horas em Viena com o tempo-canhão de uma hora, 59 minutos e 40 segundos. O recorde, contudo, não foi homologado, porque a prova não seguira as regras de andamento e da toma de fluidos. Mas é o maratonista mais rápido: ganhou a maratona de Berlim em 2018 com o tempo de duas horas, um minuto e 39 segundos. Kipchoge venceu 12 das 13 maratonas em que participou.

Qual é o segredo do domínio absoluto dos atletas da África Oriental sobretudo na maratona, a prova dos 42,195 quilómetros, e a capacidade para bater recorde atrás de recorde?

As respostas são variadas. Os atletas dos dois países treinam em áreas altas do vale de Rift, onde o ar tem menos oxigénio, o que lhes dá mais resistência. Depois, os estudantes fazem muitos quilómetros a pé para ir à escola. Há ainda a questão da alimentação rica em verduras e amido e com pouca carne.

No caso do Quénia, há um dado transversal: os melhores atletas pertencem à tribo dos Kalenjins, um povo nilótico que vive no vale de Rift e tem algumas características físicas especiais: são altos e magros, com a barriga das pernas e tornozelos finos, aspectos morfológicos que favorecem a corrida.

Além disso, os ritos de iniciação, tanto dos rapazes como das meninas, fazem com que tenham uma capacidade enorme de sofrimento para aguentar a dor, um dos predicados para correr provas de longa duração, que exigem grande esforço físico e psicológico. Kipchoge Keino bateu o recorde dos 1500 metros nas olimpíadas do México em 1968 com uma infecção dolorosa na vesícula. Os médicos aconselharam-no a não competir, mas ele foi mais forte que a dor: venceu com um recorde olímpico.

Na Etiópia, os atletas campeões são de tribos diferentes, mas muitos vêm do vale de Rift, oromos da zona de Arsi. Treinam juntos com programas muito exigentes, são disciplinados e beneficiam da boa organização do sector. Quando vivia na Etiópia e, de madrugada, viajava da capital para Sul, encontrava as estradas à volta de Adis-Abeba cheias de gente a correr antes que o ar ficasse inquinado pelos gases dos velhos veículos. A cidade fica a quase 2500 metros de altitude e a madrugada é geralmente muito fria.

Uma nota relevante: o missionário irlandês Colm O’Connell foi para a Escola Secundária de São Patrício em Iten (no vale de Rift queniano) para leccionar Geografia por três meses, em 1976. Fundou uma equipa de atletismo (que produziu alguns dos melhores fundistas) e por lá ficou até hoje. É conhecido como o padrinho dos corredores quenianos e o melhor treinador do mundo.

2 de julho de 2020

ASSALTO FALIDO


«Ainda lá está, encostada ao alto, no mesmo lugar onde tu a deixaste. Desde aquele dia, ainda não foi usada». Estas palavras faziam parte da saudação que o P. Benito, aquela tarde, me dirigiu ao entrar na casa provincial dos missionários combonianos, em Cartum. Estávamos a chegar de missões/paróquias muito distantes uma da outra na vasta geografia do Sudão: ele de Kosti e eu de El Facher. Havia passado três anos que não nos tínhamos visto. 

Não pronunciou o nome nem disse a que se referiam as palavras que me dizia. Mas, para bom entendedor, meia palavra basta. De facto, enquanto ele me falava, a imaginação já me tinha transportado até à missão de Kosti. Foi lá que aconteceu. É lá que está a lança. Ainda hoje. Encostada ao alto. No mesmo lugar onde a tinha deixada.

No Verão do ano seguinte, em 2002, encontrava-me de férias em Portugal. Um dia, passando perto da casa da minha irmã Dorinda, em Bassar, na freguesia de Campo de Madalena, resolvi fazer-lhe uma visita inesperada. Fui dar com ela sozinha na recolha do feno num campo que possuía pertinho de casa. Foi com todo o gosto que me pus a trabalhar com ela. O calor tórrido e sufocante fez-me tirar a camisa. Sem a menor dúvida que, em tronco nu, o ancinho manejava-se melhor. Não tardou muito que tenha ouvido, atrás de mim, a minha irmã, assustada: «Ai Jesus, o que é que te aconteceu? Tens uma cicatriz tão grande nas costas! Foste operado a quê?»

«Não, não foi uma operação. De qualquer modo, já não penso mais nisso. Mas, se quiseres, depois, conto-te a história com todos os pormenores», disse, tranquilizando-a.

Já em casa, sentámo-nos à mesa da cozinha. Uma merenda à moda do lavrador. «O prometido é devido», lembrou a Dorinda, enquanto cortava o delicioso presunto. «Exactamente! Aqui vai, então, a história que querias ouvir», retorqui.



A silhueta

Ano de 1988. Em Kosti. A minha primeira missão/paróquia no Sudão. Pelas duas e meia da manhã acordei, assustado. A sensação de um barulho como que um raspar de ferros velhos e arames. Ouvira-o como se fosse ali perto, a poucos metros de distância. Pensei em ratos ou outros pequenos animais divertindo-se no tecto de zinco. Ou talvez fosse o cão no pátio a esgravatar na rede enferrujada do portão, ali junto ao meu quarto. 

Enquanto adormecia de novo, o meu pensamento ocupou-se em rever a agenda do dia. Safari missionário ao centro católico/capela de Sinja. Serão várias e longas horas de caminho por trilhos em muito mau estado. Sairemos pela madrugada. Está tudo programado com os responsáveis das várias comunidades. Vai ser um dia de pica-boi. No caso de algum contratempo, as dificuldades de comunicação não nos permitem alterar o programa em cima da hora. Mas tudo há-de correr bem, insha Allah, se Deus quiser.

Porém, o sono de poucos minutos foi interrompido pelo mesmo tipo de barulho. Rrrrrrrrrrr!

«Esta agora… É no que dá quando uma pessoa tem o sono leve». E este tipo de rumor voltou mais três vezes, com intervalos de quatro ou cinco minutos. Decidi, pois, levantar-me e ver o que era. Descalço, em bicos de pés, sem bater a porta nem acender a luz, no máximo silêncio, preocupando-me em não disturbar os colegas que dormiam nos quartos ali ao lado. Fui dar uma volta pelo pátio, em jeito de observação. O cão, sossegado, não dava indícios de nada estranho. Enfim, tudo era calmo.

Finalmente, tenciono voltar para a cama. Apenas entro na varanda e, de novo, ouço o invariável som. No extremo oposto da varanda, aí a uns quinze metros. Parei, imóvel, perscrutando a escuridão com a ajuda de uma pontinha de luar que espreitava do lado da rua. Passaram apenas mais alguns segundos e... Rrrrrrrrrr. Ah, não há mais dúvidas. Só podia ser ali.

Continuava muito atento, fixando o olhar sempre no mesmo ponto, quando... eis que entrevejo qualquer coisa que se move. Uma silhueta. Continua a mexer-se. Muito lentamente. Do quintal para o interior da varanda. Estaria a sonhar? Como seria possível alguém entrar por aí? Eu conheço a minha casa e sei que nesse lugar não há porta alguma.


A parede transparente

Fiquei petrificado. Queria gritar «Haramia, ladrões! Acudam!». Mas a minha língua tinha-se-me paralisado. Da garganta só me saiu um grito estridente e agudo. Como um animal que não sabe dizer palavras, só grunhidos e guinchos. Ao som tão estranho e inesperado da minha voz, aquela aparição monstruosa levantou o braço bem alto na minha direcção, agitando um punhal que reluzia à claridade, muito ténue, do luar.

Que fazer? Em certos momentos da vida há perguntas que são inúteis. Tive uma reacção instintiva e involuntária. A obediência ao inconsciente incontrolável levou-me, num arranco feroz e selvagem, a lançar-me de cabeça contra aquele fantasma. Como um touro bravo contra a capa vermelha do toureiro. E depois? Não sei, nunca soube. Barrou-se-me a mente, não fui dono de mim mesmo. Os colegas – padres Benito e Menegazzo – encontraram-me prostrado no chão. O local estava iluminado. A sua presença à minha beira foi de enorme consolação.

Tentavam levantar-me do chão. Ouvia-os fazer perguntas um ao outro e também a mim, na tentativa de decifrar o sinistro acontecimento. Eu queria ajudar mas sentia a língua presa. Estava atordoado. Por enquanto, não sentia dores. Via sangue no chão e em vários pontos da parede. Cadeiras tombadas pelo chão fora, tintadas de vermelho. Seria sangue meu? Ou do fantasma que, entretanto, já tinha fugido? Naquele momento, distingui as irmãs combonianas que se aproximavam. Ofegantes e aflitas. A casa delas é pegada à nossa.

«Ao ouvir aquele grito medonho e horrível pusemo-nos a correr», contaram elas, dois dias mais tarde.

Entretanto, vi que podia mover o braço e indiquei o lado por onde tinha visto entrar o assaltante. Era ali que havia a grande parede transparente que fazia a vedação entre o quintal e a varanda. Era assim conhecida – parede transparente – por ser feita de rede coelho. Foi então que reparámos no enorme rasgão de alto abaixo.

O P. Benito mostrou-se particularmente mais agitado e começou a inspeccionar, com toda a precaução, os cantos duvidosos da casa. Só parou quando eu lhe assegurei que ele já tinha fugido. «Por aquele mesmo buraco», apontei com a mão estendida.


Faca esmurrada

Os meus olhos fixaram, mais uma vez, a parede transparente com a rede rasgada que bamboleava. Em breves segundos, a minha imaginação ofereceu-me a reconstrução, em retrospectiva, do acontecimento em pormenor.

Um ladrão astuto e ardiloso, sem dúvida, mas desafortunado no sucesso que desejava. O assaltante teria feito o primeiro golpe de rasgar ou cortar a rede e escondeu-se, agachado por trás da mini-parede de tijolo com cerca de um metro de altura, que servia de base à grande parede transparente. Esperou alguns minutos, certificando-se que não tinha havido reacção de alguém que estivesse acordado. Mas, comigo, enganou-se.

A história do falido ladrão poderia ter acabado aqui. Bastaria, para isso, que eu, ao sair do quarto, tivesse acendido a luz. Mas tal não aconteceu. Resultado: não nos vimos nem nos ouvimos um ao outro. Presença recíproca ignorada. E, desta maneira, a história pôde continuar.

Porém, os minutos estavam bem contados. De facto, o alarme soou com o meu quase animalesco e medonho grito. Surpresa colossal que ele não esperava. O susto do pobre homem deve ter sido fatal. Por isso levantou o grande facalhão bem alto no ar. Para atacar? Ou para se defender? É uma pergunta que, se um dia o encontrasse, lhe gostaria de fazer. No entanto, a verdade é que fui eu quem ficou ferido.

A dor nas costas ia-se tornando mais aguda. Teria, provavelmente, desmaiado, por uns instantes… Dei comigo sentado numa cadeira e a irmã Giselda, a anciã da comunidade, segurando uma tacinha de aguardente sob o meu nariz, dizia-me: «Inspira mais uma vez; isto faz perder o desmaio».

O P. Antonio sorria com uma pitada de sarcasmo piedoso. Mas a boa irmã antecipou-se a qualquer comentário: «Para usos farmacêuticos, Deus e a sharia, a lei islâmica, estão do meu lado. Até o meu amigo inspector na alfândega do aeroporto de Cartum ficou convencido desta verdade e, por isso, deixou passar a garrafinha que eu trazia da Itália».

Às 7 da manhã, quando terminou o recolher obrigatório em vigor naqueles dias na cidade de Kosti, o P. Benito levou-me ao hospital.

«O ferimento não é profundo; a faca, decerto, devia estar esmurrada», gracejou o médico simpático. E sentenciou: «Cinco pontos de alfaiate e estás de volta para casa». «El hamdu lillah, Graças a Deus!», ouviram-se algumas vozes aí à volta.


Uma lança e um desejo

À tarde, alguns jovens amigos apareceram na igreja da missão. Uma visita que muito apreciei. No fim, um deles disse: «Abuna, padre, quisemos estar estes minutos contigo, mas não queremos ir embora sem deixar-te uma recordação».

Desembrulhou um rústico pacote de onde vi tirar uma lança. Era nova em folha. Num instante, encaixou-lhe o cabo. Ergueu-a, estendida horizontalmente à altura da cabeça e, recuando um passo, retorceu ligeiramente o corpo. Depois, num último e nobre gesto, imitou o guerreiro em posição de arremessar a lança.

Houve risos e aplausos. E também um comentário: «Não podes mentir: és dinka, da tribo de guerreiros que representaste muito bem».

Agradeceu o elogio e a seguir, voltou-se para mim: «Abuna Feliz: esta harba, lança, é nossa oferta».

E, com um certo ar de cerimónia, encostou-a ao alto, no ângulo junto à porta. Todavia, o jovem dinka tinha ainda uma última palavra guardada no coração: «O nosso maior desejo, porém, é que nunca tenhas necessidade de a usar».

No conjunto de vozes condizentes daqueles jovens ouvia-se: «Não volte a acontecer, inshá Allah! Se Deus quiser!».

E eu, da minha parte, acrescentei uma nota de apreço e estima que veio completar o refrão: «Shukran jazilan! Muito obrigado!».

Feliz da Costa Martins 
Cairo, 1 Julho 2020