27 de junho de 2019

AO RITMO DO CORAÇÃO DE JESUS


Disseram, então, um ao outro: «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» (Lucas 24,32)

Levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana, sentiu que o seu coração palpitava mais fortemente (São Daniel Comboni, Escritos 2742)



Caros confrades,

O encontro verdadeiro e profundo com o Senhor Jesus Cristo sempre faz arder o coração no peito daquele que experimenta de perto a Sua presença, dispondo-o a ouvir a Sua palavra.

Isto produz um movimento duplo na nossa vida: por um lado, faz-nos amar o Pai cada vez mais e convida-nos a viver como filhos; por outro, põe-nos a caminho para encontrar os irmãos e irmãs, exortando-nos a viver a nossa vida de irmãos. O encontro com Cristo introduz-nos na presença do Pai e estimula-nos a viver como filhos e irmãos.

Cada um de nós, Missionários Combonianos do Coração de Jesus, experimentou este encontro pessoal com Cristo a ponto de torná-lo o momento decisivo da sua vida e da sua vocação (cf. Regra de Vida 21.1). Fizemos nosso o plano de Deus para a humanidade de hoje e, portanto, esforçamo-nos para nos revestirmos dos mesmos sentimentos do Senhor Jesus (Cf. Fil 2.5) e tornar-nos assim presença do amor e da misericórdia de Deus no mundo. Nesta solenidade do Sagrado Coração de Jesus, somos chamados, como em cada ano, a renovar a nossa consagração a Deus e à missão que Ele nos confia. O convite é feito para estarmos cada vez mais conformes com Ele e para assegurar que o nosso coração bata ao mesmo ritmo que o coração de Deus e arda de amor por cada homem e mulher do planeta, especialmente pelos mais pobres e abandonados.

Somos discípulos missionários, enviados para testemunhar e tornar visível com as nossas vidas o coração de Deus que se acende de amor por cada criatura sua, chamados a partilhar um amor que salva e dá vida. O amor incondicional de Comboni aos povos da África tinha a sua origem e o seu modelo no amor salvífico do Bom Pastor, que ofereceu a sua vida na Cruz pela humanidade: «E confiando naquele Coração Sacratíssimo ... sinto-me cada vez mais disposto a sofrer … e a morrer por Jesus Cristo e pela salvação dos povos infelizes da África Central» (Regra de Vida 3).

A solenidade do Sagrado Coração de Jesus este ano coincide com o período em que estamos a rezar para escolher os novos superiores das nossas circunscrições: peçamos ao Senhor o dom de superiores segundo o Seu Coração. Peçamos-Lhe também, neste ano em que refletimos sobre a interculturalidade, a graça de sabermos reconhecer-nos filhos e irmãos que partilham a mesma fé, o mesmo batismo, a mesma consagração e a mesma missão.

Boa festa do Sagrado Coração de Jesus
Roma, 28 de junho de 2019 
O Conselho Geral

21 de junho de 2019

DE NOVO NO SUDÃO



1. Eram as cinco da tarde quando os meus pés pisaram terra sudanesa, de onde estive ausente meio ano. O avião já tinha começado a baixar e muitos dos passageiros espreitávamos pela janelita do assento para ver a cidade de Cartum do alto. Mas só se via uma cor amarela muito, muito espessa. Nada de estranho, é certo, para quem vive em lugares desérticos, onde as tempestades de areia são parte do ambiente climático. Mas outra coisa é acontecer no momento de uma aterragem…

2. Ouviu-se um grito histérico que foi imitado por outros. E não creio que fosse puro contágio psicológico. Porém, outra voz se ouviu, também. Graças a Deus! A voz do piloto que assegurou não haver verdadeiro motivo para alarme. E, de facto, mostrou verdadeira perícia com uma aterragem de um profissional bem sucedida.

3. Depois do susto em que precisaram de respirar fundo até os passageiros mais destemidos, alguns, embora travados pelos Seguranças do aeroporto, teimaram em aproximar-se do experimentado piloto que saía do avião. A rebeldia e desobediência aos guardas de turno eram justificáveis: o homem da farda branca tinha que receber os merecidos parabéns. Muito embora sóbria e simples, por causa do mau tempo que nos obrigava a esfregar os olhos doridos pelo pó areoso continuamente a cair em cima de nós, a cerimónia foi cumprida com gratidão e simpatia.

4. Esta minha viagem de Roma a Cartum já tinha sido iniciada no dia 4 de junho, mas o voo tinha sido truncado a meio do caminho. O aparelho aterrou no Cairo, Egipto, e não prosseguiu. Porquê? Razões de segurança máxima, devido à revolução em curso naqueles dias em Cartum, cujo aeroporto tinha deixado de funcionar. «Vamos esperar até quando?». «Até quando acabar a revolução», alguém do escritório esclareceu. «Mas o bilhete está pago até Cartum», protestámos todos em grupo. E a resposta veio do mesmo escritório, desta vez mais delicada: «Sigam, por favor, as informações/instruções pela internet». Quando olhei em volta, os presumíveis passageiros para Cartum tinham dispersado no meio da multidão do aeroporto.

5. Quanto a mim, já que estava no Cairo, aproveitei a ocasião e fui visitar os colegas combonianos naquela cidade. Graças a Deus que a nossa família também se encontra presente nesta parte do mundo. Aqui, na cidade cosmopolita do Cairo, tive a graça de participar nas actividades com os colegas daquela comunidade. E, logo por sinal, falam a mesma língua que nós no Sudão: o árabe. Ao missionário, de facto, nunca há-de faltar trabalho.

6. Depois de dez dias de espera, chegou a notícia: o aeroporto de Cartum reabriu. Finalmente, rumo ao Sudão! Apesar do susto da tempestade de areia que ameaçava a aterragem com segurança, como já descrevi acima, o apto e ágil piloto mereceu os parabéns.

7. Cartum… um lugar fantasma?! Foi-me realmente difícil acreditar na calma e tranquilidade que via nesta cidade que, ainda no dia anterior, tinha sido testemunha da crueldade e atrocidade barbárica da revolução. No caminho do aeroporto para a missão católica distinguia-se claramente o campo principal de batalha destes dias passados onde a sujidade e os estragos ainda estavam à vista.

8. Ao passar na ponte do rio Nilo fiz memória das quarenta vítimas que os militares tinham atirado, raivosamente, às águas, depois de os terem cravejado de balas. Mais tarde, os seus corpos apareceram a boiar à mercê das águas e foram retirados pelos seus amigos manifestantes. Uma revolução que, em poucos dias, custou um preço muito caro: 130 vidas. E largas centenas de feridos. Antes e depois da ponte, vi dezenas de carros armados parados. Os militares em atitude de relaxamento mas bem atentos a tudo o que se passa à sua volta. Os reboques cheios, bem abastecidos de tudo, bombas de vários tipos e tamanhos. Prontos para obedecer à ordem dos senhores da guerra. A marcha lenta e cautelosa do nosso veículo afoitou-me a cumprimentá-los: «Assalam aleicum», a paz esteja convosco. E eles, encostados aos seus carros-monstros arrumados à sombra daquela árvore gigantesca, responderam secamente: «Ua aleicum assalam», e contigo também”. Oxalá esta linguagem habitual de saudação que fala literalmente de paz (em língua árabe) corresponda aos seus pensamentos e acções, – comentei, dentro de mim, em jeito de oração. O condutor viu-me limpar o suor do rosto: «Andando a este passo tão lento as janelas, ainda que abertas, não dão ventilação para abrandar os 43 graus de calor…» – desculpou-se, delicadamente. Momentos depois, voltei-me para trás. Só então reparei naquela árvore tão grande e tão bonita. Era uma acácia em flor a acolher, na sua asseada frescura e beleza, aquele grupo de homens brutos e sanguinários com as suas ferramentas mortíferas de destruição e guerra. Mais um quarto de hora e estávamos a chegar à igreja da missão e residência dos missionários combonianos. Aquela cena para mim, é o espelho de Deus e de nós, humanos… Concluí a minha oração: «Assim és tu, meu Deus. És a grande acácia à cuja sombra podemos, maus e bons, fazer uma pausa de sossego e descanso. Obrigado, Senhor, porque, na tua magnanimidade, beleza e misericórdia perdoas o nosso pecado, a nossa violência, a nossa fome de poder. Ámen!»

9. As pessoas com quem me vou encontrando prudente e cautelosamente nas vizinhanças da missão, mostram rostos de corpos sofredores, cansados das vigílias de noites e dias sem tréguas. Eu tinha seguido as notícias pelos meios de comunicação, mas ao cumprimentar a amiga e vizinha Myriam Salah – 42 anos e mãe de 7 filhos – o sentimento trouxe uma emoção ainda mais forte. «Estás longe de imaginar, abuna (padre), o que eram estas ruas e praças e tudo quanto era sítio... Era tudo um mar de gente. Acampados de qualquer modo, com tendas ou sem tendas, não arredámos pé durante mais de dois meses. O pão escasseava mas não faltava a solidariedade entre os manifestantes. Gritávamos e cantávamos as palavras de ordem liberdade, justiça e paz que tanto desejamos para o nosso querido país. Como aguentámos durante todo esse tempo… só Deus o sabe». A boa senhora, de religião muçulmana, respirou fundo, como que a querer retomar a palavra. E enquanto limpava as lágrimas com a ponta do tôb (manto-véu) que lhe cobria o corpo dos pés à cabeça (excepto as mãos e as maçãs do rosto), perguntou com a voz entrecortada: «E o futuro como será!? Estamos com muito medo do que está para vir…» Perguntei-lhe se eram muitas as mulheres na revolução. Mas Myriam Salah só levantava os braços e procurava secar as lágrimas de um choro que lhe paralisou a voz. Compreendi que eram muitas, muitas. Sim, eu já tinha sabido por outras fontes que as mulheres nesta revolução ultrapassaram em muito o número dos homens. Certamente, porque foram mais espezinhadas e sofreram mais do que os homens numa sociedade machista.

10. Cheguei a Cartum há três dias, mas o meu destino é ainda mais longe. Quando os transportes públicos funcionarem com segurança, viajarei para a cidade de El Obeid, a 600 quilómetros de aqui, na região do Cordofão. Como a de Cartum, também esta é uma herança geográfica do nosso pai e fundador S. Daniel Comboni. Foi aqui que ele realizou grande parte da sua vida missionária, abrindo o caminho para nós, seus filhos, que seguimos os seus passos.

11. A população é maioritariamente muçulmana. Autóctones arabizados. Pele mulata bem tostada. Mas também lá vivem muitos africanos, especialmente da etnia Nuba, onde cristãos e muçulmanos vivem lado a lado. O nosso será um evangelizar com o cunho distintivo do diálogo interreligioso focalizado e salientado no testemunho de vida e amizade, sobretudo através dos serviços de saúde (pequenas clínicas/dispensários) e da educação/ensino. Sem proselitismos ou fanatismos, como recordou o papa Francisco na sua viagem de há poucos meses atrás, ao pequeno grupo de cristãos em Marrocos.

12. É nessa zona do Cordofão que se situa a região dos Montes Nubas, onde os Janjauides (milícias militares) são famosos, infelizmente, pelos massacres de conflito armado, semelhante ao já mundialmente conhecido no Darfur. Muito do nosso trabalho aqui tem a ver também com os desalojados que se encontram espalhados pelos Montes. Também temos ao nosso cuidado muitos outros que chegam refugiados do país vizinho e irmão, o Sudão do Sul, de onde fogem da guerra fratricida que o Papa Francisco actualmente tanto se tem esforçado para ajudar a pôr termo.
Feliz da Costa Martins
Missionário comboniano
Sudão

COMBONIANO ENTRE SANTOS E MÁRTIRES DA AMAZÓNIA


O Instrumento de trabalho para a Assembleia Especial para a Região Amazónica do Sínodo dos Bispos incluiu um missionário comboniano entre os santos e os mártires da Igreja na Amazónia.

O nº 113, intitulado «Um rosto inculturado e missionário», diz textualmente: «A diversidade cultural exige uma encarnação mais real para assumir diferentes modos de vida e culturas. “Na ordem pastoral é sempre válido o princípio da encarnação formulado por Santo Irineu: «O que não foi assumido, não foi redimido»”.[49] Os impulsos e inspirações importantes para esta almejada inculturação se encontram no magistério da Igreja e no itinerário eclesial latino-americano, de suas Conferências Episcopais (Medellín, 1968; Puebla, 1979; Santo Domingo, 1992; e Aparecida, 2007), de suas comunidades, de seus santos e de seus mártires.[50] Uma realidade importante deste processo foi o surgimento de uma teologia latino-americana, em particular da Teologia Índia.»

A nota nº 50 explica: «Entre outros, podemos citar: Rodolfo Lunkenbein, SDB, e Simão Bororo (1976), Marçal de Souza Tupã-i (1983, Guarani), Ezequiel Ramin (1985, Comboniano), Irmã Cleusa Carolina Rody (1985, missionária Agostiniana Recoleta), Josimo Morais Tavares (1986, sacerdote diocesano), Vicente Cañas, SJ (1987), Mons. Alejandro Labaka e Irmã Inés Arango (1987, ambos capuchinhos), Chico Mendes (1988, ecologista), Galdino Jesus dos Santos (1997, Pataxó Hã-Hã-Hãe), Ademir Federici (2001), Irmã Dorothy Mae Stang (2005, Irmã de Nossa Senhora de Namur).»

A Editorial Além-Mar está a publicar uma biografia do P. Ramin, que foi assassinado no Cacoal em 1985 por defender o direito dos agricultores à terra.

O Sínodo Especial vai realizar-se no Vaticano de 6 a 27 de outubro sobre o tema Amazónia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral.

7 de junho de 2019

RAINHA CÂNDACE


As mulheres tiveram papel próprio nas revoltas do Sudão e da Argélia.

A imagem tornou-se um ícone viral do levantamento popular sudanês que derrubou o ditador Omar al-Bashir em quatro meses de protestos de rua: uma mulher jovem e esbelta, coberta no toab branco, o manto-véu comprido das sudanesas, com grandes brincos dourados, em cima do tejadilho de um carro, de dedo em riste e em diálogo rapeiro com a multidão que à sua volta canta «Revolução, revolução» numa praça de Cartum. Dezenas de outras mulheres gravam o momento de telemóvel em punho.

Chamaram-lhe a nova rainha Cândace. O livro bíblico dos Actos dos Apóstolos descreve Cândace como rainha etíope. Mas é provável que fosse uma rainha guerreira de Méroe, reino núbio antigo que ficava no Sudão de hoje. Aliás, «etíope» em grego significa «rosto (ou olho) queimado», um tom de pele mais do que um país.

A rainha Cândace do levantamento sudanês tem nome: Alaa Salah, 22 anos, estudante de Engenharia e Arquitectura em Cartum. Define-se no Twitter como «mulher sudanesa, líder das raparigas novas do Sudão», «a voz e o rosto da luta da mulher sudanesa». Nunca esperou que a sua foto corresse mundo, mas está contente «porque o mundo viu que há uma revolução no Sudão». Diz-se uma entre um milhão de manifestantes.

«Dois terços dos manifestantes no Sudão são mulheres. Mulheres são metade da sociedade. Não podemos ter uma revolução sem mulheres. Não podemos ter democracia sem mulheres. Acreditámos que éramos capazes, e fizemo-lo», escreve noutro tuíte.

Alaa é o ícone mais recente da participação feminina nos levantamentos da História. A Wikipedia fez uma lista de meia centena de mulheres que encabeçaram revoluções das quais uma dúzia é africana: desde 280 antes de Cristo, quando a princesa Quilónis tomou parte activa durante o cerco a Esparta, até Aya Virginie Touré, a pacifista que organizou 45 mil mulheres contra Laurent Gbagbo, o presidente costa-marfinense que não queria abandonar o poder apesar de perder as eleições de 2010.

As mulheres africanas são a espinha dorsal da vida e da economia no continente e estão a mudar a sociedade, a cultura e a política. No fundo, estão a reclamar o poder que lhes foi tirado. Os anciãos gujis, do Sul da Etiópia, contaram-me, invocando a lenda das origens, que no princípio eram governados por mulheres, uma memória partilhada por outros povos.

A foto viral de Alaa é uma afirmação enorme das mulheres num país que vive o Islão radical. Junta-se a uma longa série de imagens poderosas recentes que documentam a força da mulher na política africana: a mulher do sutiã azul que foi despida e brutalmente agredida pela polícia no Cairo (Egipto) durante a Primavera Árabe de 2011; as idosas acholis ugandesas que se despiram em 2015 para protegerem a terra ancestral da cobiça do Governo; as mulheres etíopes que raparam o cabelo, solidárias com os presos políticos oromos em 2016; a adolescente sul-africana que usou um penteado afro para denunciar o racismo nos códigos de traje impostos pelas escolas, no mesmo ano; e a bailarina Melissa Ziad, que, com o «protesto poético», simboliza a revolta popular argelina.

As mulheres estão a reclamar o lugar de direito que têm na narrativa histórica dos povos africanos contada em demasia no masculino.