22 de julho de 2019

PODEMOS – E DEVEMOS – ATREVER-NOS



Ultimamente sinto-me Abrão. Explico: o velho caldeu estava a ficar muito preocupado. Há dez anos que sonhava com o filho prometido pelo Senhor, mas não havia maneira de Sara, a esposa, engravidar e o seu herdeiro seria o escravo Eliézer de Damasco.

Neste horizonte de dúvida, o Senhor volta a avocar a promessa de um herdeiro fruto das suas entranhas, primícia de uma descendência incontável como as estrelas do céu e as areias do mar. E renova a aliança com Abraão – que tem que espantar as aves de rapina (para não devorarem as carcaças do sacrifício) enquanto se sente profundamente ensonado, apavorado e deprimido (Génesis 15, 1-12. 17-18).

A estiagem vocacional que nos assola faz-me identificar com o velho Abrão. Não é melhor tirar as botas, calçar os chinelos e sentar-se no sofá a ver o tempo correr? Ou então: por que não tentar uma solução de recurso, fora do âmbito da providência divina, como Sara fez ao pedir ao marido para fazer um filho com Agar, a sua escrava… Deu bronca!

O Papa Francisco lança-nos um repto importante na Exortação Apostólica Cristo Vive que escreveu aos jovens e a todo o povo de Deus.

No nº 274 escreve: «Se partimos da convicção de que o Espírito continua a suscitar vocações para o sacerdócio e para a vida religiosa, podemos “voltar a lançar as redes” em nome do Senhor, com toda a confiança. Podemos atrever-nos, e devemos fazê-lo, a dizer a cada jovem que se interrogue sobre a possibilidade de seguir este caminho».

Temos que afugentar «as aves de rapina» do desânimo e do insucesso, combater a sonolência do cansaço, o pavor e trevas que nos habitam e continuar a insistir com o Senhor da seara que envie mais operários para a sua seara – é esta a primeira tarefa do discípulo missionário – e a apostar na pastoral vocacional juvenil como no-lo recorda o Capítulo de 2015: «As diversas circunscrições serão estimuladas a fazer uma opção mais clara pelos jovens, realizando mesmo um plano pastoral juvenil de rosto comboniano» (Documentos Capitulares 2015, 45.8.)

Este «plano pastoral juvenil de rosto comboniano» pressupõe missionários alegres e felizes na sua entrega ao Senhor ao serviço da Missão de Deus em todas as idades e comunidades que «sejam lugares de acolhimento com uma atitude “em saída”, abertas aos que são atraídos pelo nosso testemunho missionário: isto nos ajudará a viver relações renovadas» (Documentos Capitulares 2015, 48.3.). E não torres de marfim ou covas de urso para hibernar…

Os Documentos Capitulares vão mais além: «abrindo-nos aos jovens e acolhendo-os, promovemos comunidades vocacionais que ao mesmo tempo se renovam na paixão missionária» (Documentos Capitulares 2015, 37).

O testemunho comunitário e pessoal de uma paixão missionária que se mantém viva apesar da contagem imparável dos anos e comunidades de portas abertas, acolhedoras e vocacionais são os elementos mais importantes e o recurso número um para uma pastoral vocacional que dê frutos.

Há que juntar-lhe o respeito pelos jovens como território sagrado do nosso serviço missionário – como recorda Francisco: «O coração de cada jovem deve, portanto, ser considerado “terra sagrada”, portador de sementes de vida divina, diante da qual nos devemos “descalçar” para nos podermos aproximar e penetrar a fundo no Mistério» (Cristo vive, 67).

A avaliação do caminho feito pelo Movimento JIM e a elaboração de um plano estratégico 2020-2025 é parte deste ato de fé na pastoral vocacional juvenil com rosto comboniano e em família comboniana em Portugal.

Abraço-te com carinho e desejo-te umas férias retemperantes e cheias de graças.

19 de julho de 2019

32 ANOS


Hoje faz 32 anos que Dom António Castro Xavier Monteiro, bispo de Lamego, impôs-me as mãos e ordenou-me padre missionário na Igreja paroquial de Cinfães.

Nessa altura, escrevi na estampa-recordação, citando Paulo na 1.ª Carta ao amigo Timóteo: «Dou graças Àquele que me confortou, a Jesus Cristo, nosso Senhor, porque me julgou digno de confiança, chamando-me ao ministério.»

Hoje, esse agradecimento é ainda maior e mais espantoso pelo conforto, pela confiança e pela partilha que Jesus fez comigo em 32 anos de ministério vivido em tantas latitudes e com pessoas tão diferentes e sempre tão lindas.

O Salmo 115 da missa de hoje disse-me o que havia de fazer para celebrar a minha ordenação: «Que poderei retribuir ao Senhor Deus por tudo aquilo que ele fez em meu favor? Elevo o cálice da minha salvação, invocando o nome santo do Senhor.»

Sim, o Senhor fez tanto por mim e para lhe agradecer elevo o cálice da minha vida, faço um brinde ao seu Amor com todas as pessoas que trago no coração. É interessante como num órgão tão pequeno pode caber tanta gente... E há sempre lugar para mais um.

O teólogo Tomas Halik diz que escolheu ser cristão por causa do paradoxo da fé: cabe lá tudo e o seu contrário.

É o que sinto visitando a avenida da memória do meu sacerdócio: há graça e pecado, há luz e trevas, há alegria e lágrimas, há tanta tanta gente que me quer bem e que representa o carinho amoroso que Deus tem por mim!!!

Termino este memorial com uma pequena confissão: o P. Acácio Soares, abade de Cinfães e pessoa de referência para mim, dizia que o dia mais feliz do seu serviço paroquial foi a minha ordenação. Por isso, queria colocar uma lápide de mármore na Igreja para perpetuar a memória da festa.

Eu nunca concordei e ele não a colocou. E porquê? Porque tinha mede de um dia decidir mudar de rumo e talvez casar... Se não o fiz, foi porque o Senhor é fiel e me faz fiel.

18 de julho de 2019

GUERRA (NADA) SANTA



Os jiadistas continuam activos na África Ocidental.

Apesar de o Estado Islâmico ter sido derrotado no Iraque e na Síria, a jiade – a guerra (nada) santa islâmica – continua a semear violência e morte no Mali, Burkina Faso e Níger.

Os jiadistas e o Governo do Mali estão atados num conflito mortal sem solução armada no Centro do país. Os holofotes estão virados para os líderes religiosos que devem mediar as negociações entre as partes envolvidas no conflito que matou muitos civis indefesos e alguns elementos das forças de paz da ONU.

Militantes islâmicos ligados à al-Qaeda desencadearam uma série de ataques contra igrejas e escolas no Norte do Burkina Faso. A 20 de Março, assaltaram uma escola e mataram quatro professores. O ataque levou ao encerramento de um milhar de estabelecimentos de ensino e deixou 150 mil alunos sem aulas. Entre 5 de Abril e 26 de Maio, terroristas islâmicos mataram 18 católicos (incluindo um padre) e pelo menos seis protestantes em cinco ataques distintos a igrejas e a uma procissão do 13 de Maio.

O Papa Francisco apresentou em 2016 o Burkina Faso como exemplo de tolerância religiosa. Mais de metade da população é muçulmana e o seu modo de viver a fé pode ser considerado blasfemo para os integralistas salafitas. A campanha violenta contra os cristãos pode querer inverter a boa convivência entre crentes de fés diferentes e impor uma versão do Islão mais ortodoxa.

No Níger, o Boko Haram – um movimento jiadista com origem na vizinha Nigéria – tem intensificado os ataques no Sul do país. Atacam sobretudo forças de segurança para capturar armamento, mas recentemente atacaram a sede de uma organização não-governamental. Entretanto, a 13 de Maio um grupo não identificado assaltou a missão católica de Dolbel, na fronteira com o Burkina Faso e o Mali. O pároco ficou ferido. O ataque confirmou rumores de que as missões católicas – e sobretudo os padres – são alvos a atacar.

Os grupos extremistas islâmicos estão também a afectar o Norte do Benim, Togo e Gana. A expansão para as florestas a sul do Sahel dá-lhes protecção contra os ataques das forças governamentais.

Esta onda de militância muçulmana armada na África Ocidental para a imposição de uma prática islâmica mais radical ao jeito do salafismo, promovido pela Arábia Saudita e financiado com os petrodólares, põe em causa a boa vizinhança secular que pessoas de credos diferentes têm praticado. Afecta ainda a vida dos muçulmanos comuns, aqueles que recitam o credo, rezam, dão esmola, cumprem o jejum do Ramadão, se tiverem meios peregrinam a Meca e vivem em paz com os seus vizinhos de outras religiões, gente com quem convivi na Etiópia e no Sudão do Sul.

Os actos dos militantes muçulmanos radicais representam o Islão como religião violenta e obscurantista, contra a educação e contra a cultura. Islão rima com salam (paz em árabe), mas também é verdade que o Alcorão e a cimitarra andaram juntos como juntos andaram a cruz e a espada. A obra Vivências Cristãs em Contexto Islâmico, do Professor Adel Yussef Sidarus, da Universidade de Évora, dá a entender que o Islão medieval foi criador de filosofia e ciência e manteve um forte diálogo científico com médicos cristãos.

É pena que haja quem teime em usar e perverter o Islão para fins políticos de domínio.

16 de julho de 2019

DA «NOIVA DAS AREIAS»


                                                                                              
Caro/a amigo/a

Já passaram 21 dias desde que cheguei à minha nova missão de El Obeid. Tinha prometido escrever-te mas, ao mesmo tempo, queria fazê-lo só quando tivesse melhores notícias para te dar. Além disso, desde que cheguei aqui não houve, absolutamente, possibilidade de internet. As autoridades apoiam a junta militar de Cartum que cortou todo o tipo e forma de comunicação. Tudo isso tem favorecido o atraso desta minha carta.

Situada na zona central do Sudão, El Obeid é uma cidade histórica conhecida pelo sugestivo e engraçado apelido de arussat el rimal, a noiva das areias. Mas nestes últimos tempos, esse belo título pouco tem de condizente e harmonioso com a realidade. Os carros armados, espalhados pelas ruas da cidade fazem parte do cenário do dia-a-dia. O estado de alerta é permanente por parte dos soldados que procuram evitar inoportunos e suspeitosos ajuntamentos de pessoas. É comum encontrar um piquete militar também à porta das padarias e nas bombas de combustível, onde se formam longas filas durante todo o dia. E não é raro acontecer que o pão e o combustível acabem antes de chegar a nossa vez! Por outro lado, por mais controlo ameaçador que as milícias imponham sobre tudo e todos, os rumorejos e murmúrios não deixam de se ouvir aqui e além: «Afinal, estamos muito pior do que antes… desde há mais de meio ano que andamos nisto.»

Mas é na populosa capital do país que reside a maior expectativa. À entrada do mercado ouvem-se conversas com esperança. Um jovem vestido à europeia diz para quem está à sua volta: «Estou muito optimista com o que irá acontecer amanhã em Cartum, na grande demonstração/greve da desobediência civil».

«Vai ser um verdadeiro sucesso», confirmou a vendedeira de tremoços, aí ao meu lado. E, com orgulho e brio, continuou: «Essa manifestação em pleno centro de Cartum vai ser uma marcha milionária; são palavras da minha filha que acaba de me telefonar de lá. E disse-me também que ela e os colegas de trabalho não vão faltar nessa grande demonstração». Depois, voltou-se para mim: «E tu, khauaja (estrangeiro), que dizes? Não tenhas medo, os soldados estão do outro lado do mercado, não nos ouvem». O riso, sem disfarce, de quem ouviu a tão animada tremoceira dispensou a resposta que me ficou no pensamento: a esperança não desiste, a democracia já vem perto.

Todavia, não há só notícias tristes. Certamente, a melhor notícia é aquela em que também eu estou incluído: Jesus Cristo e a sua igreja estão no meio deste povo, onde os cristãos são uma minoria. Mas não insignificante. E eu sou muito feliz por poder partilhar a minha vida com esta gente de costumes, crenças e religiões tão variadas. Uma das coisas que me impressiona é que encontro bastante frequentemente duas religiões (o cristianismo e islão) que convivem de forma pacífica nos vários membros de uma mesma família. Isso estimula o meu contacto com este povo e facilita o diálogo inter-religioso. Outro aspecto a ter muito em conta neste meio ambiente é o trabalho missionário no apostolado com os refugiados, na sua maioria cristãos que chegam do Sul do Sudão, nosso país vizinho, ameaçados com problemas de conflitos armados.

Eu não me considero novo no Sudão, onde passei 27 anos como missionário. No entanto, a arussat el rimal (a noiva das areias) e as suas gentes maioritariamente de etnia Nuba é para mim uma área com desafios muito peculiares. Como membro novo que sou da comunidade comboniana com residência nesta cidade, dou graças a Deus pelos meus três colegas (dois italianos e um congolês) que não se poupam em trabalhos para me introduzir em cheio em todos os sectores do trabalho missionário a desenvolver nestes lugares tão necessitados de evangelização.
Feliz da Costa Martins 
Missionário comboniano em El Obeid, Sudão

NB: Como diz a canção «Eu tenho uma carta escrita, não tenho por quem na mande». Na verdade, esta minha carta já estava uns longos dias à espera… mas a internet só chegou hoje (dia 12 julho). E, então, pois aí vai.