MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA A CELEBRAÇÃO DO XLVII DIA MUNDIAL DA PAZ
PARA A CELEBRAÇÃO DO XLVII DIA MUNDIAL DA PAZ
1º DE JANEIRO DE 2014
1. Nesta minha primeira Mensagem para o Dia Mundial da Paz, desejo
formular a todos, indivíduos e povos, votos duma vida repleta de alegria e
esperança. Com efeito, no coração de cada homem e mulher, habita o anseio duma
vida plena que contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à
comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas
irmãos que devemos acolher e abraçar.
Na realidade, a fraternidade é uma dimensão essencial do homem,
sendo ele um ser relacional. A consciência viva desta dimensão relacional
leva-nos a ver e tratar cada pessoa como uma verdadeira irmã e um verdadeiro
irmão; sem tal consciência, torna-se impossível a construção duma sociedade
justa, duma paz firme e duradoura. E convém desde já lembrar que a fraternidade
se começa a aprender habitualmente no seio da família, graças sobretudo às
funções responsáveis e complementares de todos os seus membros, mormente do pai
e da mãe. A família é a fonte de toda a fraternidade, sendo por isso mesmo
também o fundamento e o caminho primário para a paz, já que, por vocação,
deveria contagiar o mundo com o seu amor.
O número sempre crescente de ligações e comunicações que envolvem
o nosso planeta torna mais palpável a consciência da unidade e partilha dum
destino comum entre as nações da terra. Assim, nos dinamismos da história –
independentemente da diversidade das etnias, das sociedades e das culturas –,
vemos semeada a vocação a formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem
mutuamente e cuidam uns dos outros. Contudo, ainda hoje, esta vocação é muitas
vezes contrastada e negada nos factos, num mundo caracterizado pela
«globalização da indiferença» que lentamente nos faz «habituar» ao sofrimento
alheio, fechando-nos em nós mesmos.
Em muitas partes do mundo, parece não conhecer tréguas a grave
lesão dos direitos humanos fundamentais, sobretudo dos direitos à vida e à
liberdade de religião. Exemplo preocupante disso mesmo é o dramático fenómeno
do tráfico de seres humanos, sobre cuja vida e desespero especulam pessoas sem
escrúpulos. Às guerras feitas de confrontos armados juntam-se guerras menos
visíveis, mas não menos cruéis, que se combatem nos campos económico e
financeiro com meios igualmente demolidores de vidas, de famílias, de empresas.
A globalização, como afirmou Bento XVI, torna-nos vizinhos, mas não nos faz
irmãos.[1] As inúmeras situações de desigualdade,
pobreza e injustiça indicam não só uma profunda carência de fraternidade, mas
também a ausência duma cultura de solidariedade. As novas ideologias,
caracterizadas por generalizado individualismo, egocentrismo e consumismo
materialista, debilitam os laços sociais, alimentando aquela mentalidade do
«descartável» que induz ao desprezo e abandono dos mais fracos, daqueles que
são considerados «inúteis». Assim, a convivência humana assemelha-se sempre
mais a um mero do ut des pragmático e egoísta.
Ao mesmo tempo, resulta claramente que as próprias éticas
contemporâneas se mostram incapazes de produzir autênticos vínculos de
fraternidade, porque uma fraternidade privada da referência a um Pai comum como
seu fundamento último não consegue subsistir.[2] Uma verdadeira fraternidade entre os
homens supõe e exige uma paternidade transcendente. A partir do reconhecimento
desta paternidade, consolida-se a fraternidade entre os homens, ou seja, aquele
fazer-se «próximo» para cuidar do outro.
«Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9)
2. Para compreender melhor esta vocação do homem à fraternidade e
para reconhecer de forma mais adequada os obstáculos que se interpõem à sua
realização e identificar as vias para a superação dos mesmos, é fundamental
deixar-se guiar pelo conhecimento do desígnio de Deus, tal como se apresenta de
forma egrégia na Sagrada Escritura.
Segundo a narração das origens, todos os homens provêm dos mesmos
pais, de Adão e Eva, casal criado por Deus à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26), do qual nascem Caim e Abel. Na
história desta família primigénia, lemos a origem da sociedade, a evolução das
relações entre as pessoas e os povos.
Abel é pastor, Caim agricultor. A sua identidade profunda e,
conjuntamente, a sua vocação é ser
irmãos, embora na diversidade da sua actividade e cultura, da sua maneira
de se relacionarem com Deus e com a criação. Mas o assassinato de Abel por Caim
atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua
história (cf. Gn4, 1-16)
põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver
juntos, cuidando uns dos outros. Caim, não aceitando a predilecção de Deus por
Abel, que Lhe oferecia o melhor do seu rebanho – «o Senhor olhou com agrado
para Abel e para a sua oferta, mas não olhou com agrado para Caim nem para a
sua oferta» (Gn4, 4-5) –, mata Abel por inveja. Desta forma, recusa
reconhecer-se irmão, relacionar-se positivamente com ele, viver diante de Deus,
assumindo as suas responsabilidades de cuidar e proteger o outro. À pergunta
com que Deus interpela Caim – «onde está o teu irmão?» –, pedindo-lhe contas da
sua acção, responde: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9). Depois – diz-nos o livro do
Génesis –, «Caim afastou-se da presença do Senhor» (4, 16).
É preciso interrogar-se sobre os motivos profundos que induziram
Caim a ignorar o vínculo de fraternidade e, simultaneamente, o vínculo de
reciprocidade e comunhão que o ligavam ao seu irmão Abel. O próprio Deus
denuncia e censura a Caim a sua contiguidade com o mal: «o pecado deitar-se-á à
tua porta» (Gn 4, 7). Mas
Caim recusa opor-se ao mal, e decide igualmente «lançar-se sobre o irmão» (Gn 4, 8), desprezando o projecto de Deus.
Deste modo, frustra a sua vocação original para ser filho de Deus e viver a
fraternidade.
A narração de Caim e Abel ensina que a humanidade traz inscrita em
si mesma uma vocação à fraternidade, mas também a possibilidade dramática da
sua traição. Disso mesmo dá testemunho o egoísmo diário, que está na base de
muitas guerras e injustiças: na realidade, muitos homens e mulheres morrem pela
mão de irmãos e irmãs que não sabem reconhecer-se como tais, isto é, como seres
feitos para a reciprocidade, a comunhão e a doação.
«E vós sois todos irmãos» (Mt 23, 8)
3. Surge espontaneamente a pergunta: poderão um dia os homens e as
mulheres deste mundo corresponder plenamente ao anseio de fraternidade, gravado
neles por Deus Pai? Conseguirão, meramente com as suas forças, vencer a
indiferença, o egoísmo e o ódio, aceitar as legítimas diferenças que
caracterizam os irmãos e as irmãs?
Parafraseando as palavras do Senhor Jesus, poderemos sintetizar
assim a resposta que Ele nos dá: dado que há um só Pai, que é Deus, vós sois
todos irmãos (cf. Mt 23, 8-9). A raiz da fraternidade está
contida na paternidade de Deus. Não se trata de uma paternidade genérica,
indistinta e historicamente ineficaz, mas do amor pessoal, solícito e
extraordinariamente concreto de Deus por cada um dos homens (cf. Mt 6, 25-30). Trata-se, por conseguinte,
de uma paternidade eficazmente geradora de fraternidade, porque o amor de Deus,
quando é acolhido, torna-se no mais admirável agente de transformação da vida e
das relações com o outro, abrindo os seres humanos à solidariedade e à partilha
activa.
Em particular, a fraternidade humana foi regenerada em e por Jesus Cristo, com a sua morte e
ressurreição. A cruz é o «lugar» definitivo de fundação da fraternidade que os homens, por si
sós, não são capazes de gerar. Jesus Cristo, que assumiu a natureza humana para
a redimir, amando o Pai até à morte e morte de cruz (cf. Fl 2, 8), por meio da sua ressurreição
constitui-nos como humanidade
nova, em plena comunhão com a vontade de Deus, com o seu projecto, que
inclui a realização plena da vocação à fraternidade.
Jesus retoma o projecto inicial do Pai, reconhecendo-Lhe a
primazia sobre todas as coisas. Mas Cristo, com o seu abandono até à morte por
amor do Pai, torna-Se princípio
novo e definitivo de todos nós, chamados a
reconhecer-nos n’Ele como irmãos, porque filhos do mesmo Pai. Ele é a própria Aliança,
o espaço pessoal da reconciliação do homem com Deus e dos irmãos entre si. Na
morte de Jesus na cruz, ficou superada também a separação entre os povos, entre o povo da
Aliança e o povo dos Gentios, privado de esperança porque permanecera até então
alheio aos pactos da Promessa. Como se lê na Carta aos Efésios, Jesus Cristo é
Aquele que reconcilia em Si todos os homens. Ele é a paz, porque, dos dois povos, fez um
só, derrubando o muro de separação que os dividia, ou seja, a inimizade. Criou
em Si mesmo um só povo, um só homem novo, uma só humanidade nova (cf. 2,14-16).
Quem aceita a vida de Cristo e vive n’Ele, reconhece Deus como Pai
e a Ele Se entrega totalmente, amando-O acima de todas as coisas. O homem
reconciliado vê, em Deus, o Pai de todos e, consequentemente, é solicitado a
viver uma fraternidade aberta a todos. Em Cristo, o outro é acolhido e amado
como filho ou filha de Deus, como irmão ou irmã, e não como um estranho, menos
ainda como um antagonista ou até um inimigo. Na família de Deus, onde todos são
filhos dum mesmo Pai e, porque enxertados em Cristo, filhos no Filho, não há «vidas
descartáveis». Todos gozam de igual e inviolável dignidade; todos são amados
por Deus, todos foram resgatados pelo sangue de Cristo, que morreu na cruz e
ressuscitou por cada um. Esta é a razão pela qual não se pode ficar indiferente
perante a sorte dos irmãos.
A fraternidade, fundamento e caminho para a paz
4. Suposto isto, é fácil compreender que a fraternidade é fundamento e caminho para a paz. As Encíclicas sociais dos
meus Predecessores oferecem uma ajuda valiosa neste sentido. Basta ver as
definições de paz da Populorum progressio, de Paulo VI, ou da Sollicitudo rei socialis, de João Paulo II. Da primeira, apreendemos que o
desenvolvimento integral dos povos é o novo nome da paz[3] e, da segunda, que a paz é opus solidaritatis, fruto da
solidariedade.[4]
Paulo VI afirma que tanto as pessoas como as nações se devem
encontrar num espírito de fraternidade. E explica: «Nesta compreensão e amizade
mútuas, nesta comunhão sagrada, devemos (...) trabalhar juntos para construir o
futuro comum da humanidade».[5] Este dever recai primariamente sobre
os mais favorecidos. As suas obrigações radicam-se na fraternidade humana e
sobrenatural, apresentando-se sob um tríplice aspecto: o dever de solidariedade, que
exige que as nações ricas ajudem as menos avançadas; o dever de justiça social, que
requer a reformulação em termos mais correctos das relações defeituosas entre
povos fortes e povos fracos; o dever
de caridade universal, que implica a promoção de um mundo mais humano para
todos, um mundo onde todos tenham qualquer coisa a dar e a receber, sem que o
progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos outros.[6]
Ora, da mesma forma que se considera a paz como opus solidarietatis, é
impossível não pensar que o seu fundamento principal seja a fraternidade. A
paz, afirma João Paulo II, é um bem indivisível: ou é bem
de todos, ou não o é de ninguém. Na realidade, a paz só pode ser conquistada e
usufruída como melhor qualidade de vida e como desenvolvimento mais humano e
sustentável, se estiver viva, em todos, «a determinação firme e perseverante de
se empenhar pelo bem comum».[7] Isto implica não deixar-se guiar pela
«avidez do lucro» e pela «sede do poder». É preciso estar pronto a «“perder-se”
em benefício do próximo em vez de o explorar, e a “servi-lo” em vez de o
oprimir para proveito próprio (...). O “outro” – pessoa, povo ou nação – [não
deve ser visto] como um instrumento qualquer, de que se explora, a baixo preço,
a capacidade de trabalhar e a resistência física, para o abandonar quando já
não serve; mas sim como um nosso “semelhante”, um “auxílio”».[8]
A solidariedade
cristã pressupõe que o
próximo seja amado não só como «um ser humano com os seus direitos e a sua
igualdade fundamental em relação a todos os demais, mas [como] a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de
Jesus Cristo e tornada objecto da acção permanente do Espírito Santo»,[9] como um irmão. «Então a consciência da
paternidade comum de Deus, da fraternidade de todos os homens em Cristo,
“filhos no Filho”, e da presença e da acção vivificante do Espírito Santo
conferirá – lembra João Paulo II – ao nosso olhar sobre o mundo como
que um novo critério para o interpretar»,[10] para o transformar.
A fraternidade, premissa para vencer a pobreza
5. Na Caritas in veritate, o meu Predecessor lembrava
ao mundo que uma causa importante da pobreza é a falta defraternidade entre os povos e entre os homens.[11] Em muitas sociedades, sentimos uma
profunda pobreza relacional,
devido à carência de sólidas relações familiares e comunitárias; assistimos,
preocupados, ao crescimento de diferentes tipos de carências, marginalização,
solidão e de várias formas de dependência patológica. Uma tal pobreza só pode
ser superada através da redescoberta e valorização de relações fraternas no seio das famílias e das
comunidades, através da partilha das alegrias e tristezas, das dificuldades e
sucessos presentes na vida das pessoas.
Além disso, se por um lado se verifica uma redução da pobreza absoluta, por outro não
podemos deixar de reconhecer um grave aumento da pobreza relativa, isto é, de
desigualdades entre pessoas e grupos que convivem numa região específica ou num
determinado contexto histórico-cultural. Neste sentido, servem políticas
eficazes que promovam o princípio da fraternidade,
garantindo às pessoas – iguais na sua dignidade e nos seus direitos
fundamentais – acesso aos «capitais», aos serviços, aos recursos educativos,
sanitários e tecnológicos, para que cada uma delas tenha oportunidade de
exprimir e realizar o seu projecto de vida e possa desenvolver-se plenamente
como pessoa.
Reconhece-se haver necessidade também de políticas que sirvam para
atenuar a excessiva desigualdade de rendimento. Não devemos esquecer o
ensinamento da Igreja sobre a chamada hipoteca
social, segundo a qual, se é lícito – como diz São Tomás de Aquino – e
mesmo necessário que «o homem tenha a propriedade dos bens»,[12]quanto
ao uso, porém, «não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente
possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam
beneficiar não só a si mas também aos outros».[13]
Por último, há uma forma de promover a fraternidade – e, assim,
vencer a pobreza – que deve estar na base de todas as outras. É o desapego
vivido por quem escolhe estilos de vida sóbrios e essenciais, por quem,
partilhando as suas riquezas, consegue assim experimentar a comunhão fraterna com
os outros. Isto é fundamental, para seguir Jesus Cristo e ser verdadeiramente
cristão. É o caso não só das pessoas consagradas que professam voto de pobreza,
mas também de muitas famílias e tantos cidadãos responsáveis que acreditam
firmemente que a relação fraterna com o próximo constitua o bem mais precioso.
A redescoberta da fraternidade na economia
6. As graves crises financeiras e económicas dos nossos dias – que
têm a sua origem no progressivo afastamento do homem de Deus e do próximo, com
a ambição desmedida de bens materiais, por um lado, e o empobrecimento das
relações interpessoais e comunitárias, por outro – impeliram muitas pessoas a
buscar o bem-estar, a felicidade e a segurança no consumo e no lucro fora de
toda a lógica duma economia saudável. Já, em 1979, o Papa João Paulo IIalertava para a existência
de «um real e perceptível perigo de que, enquanto progride enormemente o
domínio do homem sobre o mundo das coisas, ele perca os fios essenciais deste
seu domínio e, de diversas maneiras, submeta a elas a sua humanidade, e ele
próprio se torne objecto de multiforme manipulação, se bem que muitas vezes não
directamente perceptível; manipulação através de toda a organização da vida
comunitária, mediante o sistema de produção e por meio de pressões dos meios de
comunicação social».[14]
As sucessivas crises económicas devem levar a repensar
adequadamente os modelos de desenvolvimento económico e a mudar os estilos de
vida. A crise actual, com pesadas consequências na vida das pessoas, pode ser
também uma ocasião propícia para recuperar as virtudes da prudência,
temperança, justiça e fortaleza. Elas podem ajudar-nos a superar os momentos
difíceis e a redescobrir os laços fraternos que nos unem uns aos outros, com a
confiança profunda de que o homem tem necessidade e é capaz de algo mais do que
a maximização do próprio lucro individual. As referidas virtudes são
necessárias sobretudo para construir e manter uma sociedade à medida da
dignidade humana.
A fraternidade extingue a guerra
7. Ao longo do ano que termina, muitos irmãos e irmãs nossos
continuaram a viver a experiência dilacerante da guerra, que constitui uma
grave e profunda ferida infligida à fraternidade.
Há muitos conflitos que se consumam na indiferença geral. A todos
aqueles que vivem em terras onde as armas impõem terror e destruição, asseguro
a minha solidariedade pessoal e a de toda a Igreja. Esta última tem por missão
levar o amor de Cristo também às vítimas indefesas das guerras esquecidas,
através da oração pela paz, do serviço aos feridos, aos famintos, aos
refugiados, aos deslocados e a quantos vivem no terror. De igual modo a Igreja
levanta a sua voz para fazer chegar aos responsáveis o grito de dor desta
humanidade atribulada e fazer cessar, juntamente com as hostilidades, todo o abuso
e violação dos direitos fundamentais do homem.[15]
Por este motivo, desejo dirigir um forte apelo a quantos semeiam
violência e morte, com as armas: naquele que hoje considerais apenas um inimigo
a abater, redescobri o vosso irmão e detende a vossa mão! Renunciai à via das
armas e ide ao encontro do outro com o diálogo, o perdão e a reconciliação para
reconstruir a justiça, a confiança e esperança ao vosso redor! «Nesta óptica,
torna-se claro que, na vida dos povos, os conflitos armados constituem sempre a
deliberada negação de qualquer concórdia internacional possível, originando
divisões profundas e dilacerantes feridas que necessitam de muitos anos para se
curarem. As guerras constituem a rejeição prática de se comprometer para
alcançar aquelas grandes metas económicas e sociais que a comunidade internacional
estabeleceu».[16]
Mas, enquanto houver em circulação uma quantidade tão grande como
a actual de armamentos, poder-se-á sempre encontrar novos pretextos para
iniciar as hostilidades. Por isso, faço meu o apelo lançado pelos meus
Predecessores a favor da não-proliferação das armas e do desarmamento por parte
de todos, a começar pelo desarmamento nuclear e químico.
Não podemos, porém, deixar de constatar que os acordos
internacionais e as leis nacionais, embora sendo necessários e altamente
desejáveis, por si sós não bastam para preservar a humanidade do risco de
conflitos armados. É precisa uma conversão do coração que permita a cada um
reconhecer no outro um irmão do qual cuidar e com o qual trabalhar para,
juntos, construírem uma vida em plenitude para todos. Este é o espírito que
anima muitas das iniciativas da sociedade civil, incluindo as organizações
religiosas, a favor da paz. Espero que o compromisso diário de todos continue a
dar fruto e que se possa chegar também à efectiva aplicação, no direito
internacional, do direito à paz como direito humano fundamental, pressuposto
necessário para o exercício de todos os outros direitos.
A corrupção e o crime organizado contrastam a fraternidade
8. O horizonte da fraternidade apela ao crescimento em plenitude
de todo o homem e mulher. As justas ambições duma pessoa, sobretudo se jovem,
não devem ser frustradas nem lesadas; não se lhe deve roubar a esperança de
podê-las realizar. A ambição, porém, não deve ser confundida com prevaricação;
pelo contrário, é necessário competir na mútua estima (cf. Rm 12, 10). Mesmo nas disputas, que
constituem um aspecto inevitável da vida, é preciso recordar-se sempre de que
somos irmãos; por isso, é necessário educar e educar-se para não considerar o
próximo como um inimigo nem um adversário a eliminar.
A fraternidade gera paz social, porque cria um equilíbrio entre
liberdade e justiça, entre responsabilidade pessoal e solidariedade, entre bem
dos indivíduos e bem comum. Uma comunidade política deve, portanto, agir de
forma transparente e responsável para favorecer tudo isto. Os cidadãos devem
sentir-se representados pelos poderes públicos, no respeito da sua liberdade.
Em vez disso, muitas vezes, entre cidadão e instituições, interpõem-se
interesses partidários que deformam essa relação, favorecendo a criação dum
clima perene de conflito.
Um autêntico espírito de fraternidade vence o egoísmo individual,
que contrasta a possibilidade das pessoas viverem em liberdade e harmonia entre
si. Tal egoísmo desenvolve-se, socialmente, quer nas muitas formas de corrupção
que hoje se difunde de maneira capilar, quer na formação de organizações
criminosas – desde os pequenos grupos até àqueles organizados à escala global –
que, minando profundamente a legalidade e a justiça, ferem no coração a
dignidade da pessoa. Estas organizações ofendem gravemente a Deus, prejudicam
os irmãos e lesam a criação, revestindo-se duma gravidade ainda maior se têm
conotações religiosas.
Penso no drama dilacerante da droga com a qual se lucra desafiando
leis morais e civis, na devastação dos recursos naturais e na poluição em
curso, na tragédia da exploração do trabalho; penso nos tráficos ilícitos de
dinheiro como também na especulação financeira que, muitas vezes, assume
caracteres predadores e nocivos para inteiros sistemas económicos e sociais,
lançando na pobreza milhões de homens e mulheres; penso na prostituição que
diariamente ceifa vítimas inocentes, sobretudo entre os mais jovens,
roubando-lhes o futuro; penso no abomínio do tráfico de seres humanos, nos
crimes e abusos contra menores, na escravidão que ainda espalha o seu horror em
muitas partes do mundo, na tragédia frequentemente ignorada dos emigrantes
sobre quem se especula indignamente na ilegalidade. A este respeito escreveu João XXIII: «Uma convivência baseada
unicamente em relações de força nada tem de humano: nela vêem as pessoas
coarctada a própria liberdade, quando, pelo contrário, deveriam ser postas em
condição tal que se sentissem estimuladas a procurar o próprio desenvolvimento
e aperfeiçoamento».[17]Mas
o homem pode converter-se, e não se deve jamais desesperar da possibilidade de
mudar de vida. Gostaria que isto fosse uma mensagem de confiança para todos,
mesmo para aqueles que cometeram crimes hediondos, porque Deus não quer a morte
do pecador, mas que se converta e viva (cf. Ez 18, 23).
No contexto alargado da sociabilidade humana, considerando o
delito e a pena, penso também nas condições desumanas de muitos
estabelecimentos prisionais, onde frequentemente o preso acaba reduzido a um
estado sub-humano, violado na sua dignidade de homem e sufocado também em toda
a vontade e expressão de resgate. A Igreja faz muito em todas estas áreas, a
maior parte das vezes sem rumor. Exorto e encorajo a fazer ainda mais, na
esperança de que tais acções desencadeadas por tantos homens e mulheres
corajosos possam cada vez mais ser sustentadas, leal e honestamente, também
pelos poderes civis.
A fraternidade ajuda a guardar e cultivar a natureza
De modo particular o sector produtivo primário, o sector agrícola, tem a vocação
vital de cultivar e guardar os recursos naturais para alimentar a humanidade. A
propósito, a persistente vergonha da fome no mundo leva-me a partilhar convosco
esta pergunta: De que modo
usamos os recursos da terra? As sociedades actuais devem reflectir sobre a
hierarquia das prioridades no destino da produção. De facto, é um dever
impelente que se utilizem de tal modo os recursos da terra, que todos se vejam
livres da fome. As iniciativas e as soluções possíveis são muitas, e não se
limitam ao aumento da produção. É mais que sabido que a produção actual é
suficiente, e todavia há milhões de pessoas que sofrem e morrem de fome, o que
constitui um verdadeiro escândalo. Por isso, é necessário encontrar o modo para
que todos possam beneficiar dos frutos da terra, não só para evitar que se
alargue o fosso entre aqueles que têm mais e os que devem contentar-se com as
migalhas, mas também e sobretudo por uma exigência de justiça e equidade e de
respeito por cada ser humano. Neste sentido, gostaria de lembrar a todos o
necessáriodestino universal dos bens, que é um dos princípios fulcrais
da doutrina social da Igreja. O respeito deste princípio é a condição essencial
para permitir um acesso real e equitativo aos bens essenciais e primários de
que todo o homem precisa e tem direito.
Conclusão
10. Há necessidade que a fraternidade seja descoberta, amada,
experimentada, anunciada e testemunhada; mas só o amor dado por Deus é que nos
permite acolher e viver plenamente a fraternidade.
O necessário realismo da política e da economia não pode
reduzir-se a um tecnicismo sem ideal, que ignora a dimensão transcendente do
homem. Quando falta esta abertura a Deus, toda a actividade humana se torna
mais pobre, e as pessoas são reduzidas a objecto passível de exploração. Somente
se a política e a economia aceitarem mover-se no amplo espaço assegurado por
esta abertura Àquele que ama todo o homem e mulher, é que conseguirão
estruturar-se com base num verdadeiro espírito de caridade fraterna e poderão
ser instrumento eficaz de desenvolvimento humano integral e de paz.
Nós, cristãos, acreditamos que, na Igreja, somos membros uns dos
outros e todos mutuamente necessários, porque a cada um de nós foi dada uma
graça, segundo a medida do dom de Cristo, para utilidade comum (cf. Ef 4, 7.25; 1 Cor 12, 7). Cristo veio ao mundo para nos
trazer a graça divina, isto é, a possibilidade de participar na sua vida. Isto
implica tecer um relacionamento fraterno, caracterizado pela reciprocidade, o
perdão, o dom total de si mesmo, segundo a grandeza e a profundidade do amor de
Deus, oferecido à humanidade por Aquele que, crucificado e ressuscitado, atrai
todos a Si: «Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos
ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão
que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 34-35). Esta é a boa nova que
requer, de cada um, um passo mais, um exercício perene de empatia, de escuta do
sofrimento e da esperança do outro, mesmo do que está mais distante de mim,
encaminhando-se pela estrada exigente daquele amor que sabe doar-se e gastar-se
gratuitamente pelo bem de cada irmão e irmã.
Cristo abraça todo o ser humano e deseja que ninguém se perca.
«Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o
mundo seja salvo por Ele» (Jo 3,
17). Fá-lo sem oprimir, sem forçar ninguém a abrir-Lhe as portas do coração e
da mente. «O que for maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar,
como aquele que serve – diz Jesus Cristo –. Eu estou no meio de vós como aquele
que serve» (Lc 22, 26-27).
Deste modo, cada actividade deve ser caracterizada por uma atitude de serviço
às pessoas, incluindo as mais distantes e desconhecidas. O serviço é a alma da
fraternidade que edifica a paz.
Que Maria, a Mãe de Jesus, nos ajude a compreender e a viver todos
os dias a fraternidade que jorra do coração do seu Filho, para levar a paz a
todo o homem que vive nesta nossa amada terra.
Vaticano, 8 de Dezembro de 2013.
FRANCISCUS
[4]Cf. João Paulo II , Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 39: AAS 80 (1988), 566-568.
[13] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a
Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 69; cf. Leão XIII, Carta
enc. Rerum novarum (15 de Maio de 1891), 19: ASS 23 (1890-1891), 651; João Paulo II , Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 42: AAS 80 (1988), 573-574; Pont. Conselho
«Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
178.
[16] Francisco, Carta ao Presidente Vladimir Putin (4 de Setembro de 2013): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 8/IX/2013), 5.
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