Negociações de paz em
Adis-Abeba © MLomayat
Caros amigos e amigas,
muita paz.
Escrevo a vocês com mais
notícias sobre a situação no Sudão do Sul. Mais uma vez, quero em nome do nosso
povo, agradecer a todos vocês pelas orações e manifestações de solidariedade
para com o povo sul-sudanês e para connosco missionários e missionárias
presentes no Sudão do Sul.
Em segundo lugar,
reafirmo que estamos ‘bem’ aqui na missão de Leer. Já passamos por momentos um
tanto difíceis, tensos, mas agora a situação está mais calma em Leer.
Em terceiro lugar, desejo
brevemente descrever a situação no geral. Hoje faz mais de um mês desde que os
conflitos começaram em Juba na noite do dia 15 de Dezembro de 2013 a partir de
uma confusão entre a guarda presidencial e outras forças. O que se desenrolou
depois revela uma trágica briga por poder entre as principais autoridades. O
exército se dividiu entre as forças insurgentes leais ao vice-presidente
deposto e as tropas do governo, envolvendo principalmente as duas maiores
tribos do país.
Juba, a capital do Sudão
do Sul, hoje está mais calma. Muita gente deixou a cidade, mas concentra milhares
que se refugiam nas bases da ONU.
Os conflitos no entanto
se espalharam por outras regiões e hoje afetam sete dos dez estados, sobretudo
nas regiões central e leste do país. Tudo isso tem um grande custo, sobretudo
humano. Além da destruição das poucas estruturas públicas (e algumas privadas),
muita gente perdeu a vida, quase todas pessoas inocentes. Não se sabe ao certo
sobre o número de mortos, mas são milhares. Fala-se em chacina, massacre, estupros,
assaltos e outras graves violações dos direitos humanos.
Estima-se que o número de
pessoas que fugiram de suas cidades por causa dos conflitos passe dos 470 mil.
A maioria delas estão nas bases da ONU, escondidas no mato ou em cidades onde
não há conflitos. Muitos se refugiaram em países vizinhos. Isso gerou uma crise
humanitária enorme. Há pouca comida, água, remédio e abrigo.
É incrível a forma rápida
como chegam armas e munição e é muito triste e revoltante a forma lenta como
chegam alimentos, remédios e proteção. Tem sempre alguns poucos que lucram com
as guerras e conflitos.
Bor, capital do estado de
Jonglei, foi a primeira a ser dominada pelas tropas dissidentes. Hoje, sob
domínio do governo, é uma cidade ‘fantasma’ e destruída. Várias vezes passou
das mãos dos ‘rebeldes’ para as do governo.
Malakal, capital de Upper
Nile e da nossa diocese, foi a segunda a ser dominada. Hoje está nas mãos dos
‘rebeldes’ e parcialmente destruída. Domingo passado um barco com mais de 200
pessoas em fuga naufragou no Rio Nilo. Todas morreram. Um segundo barco sofreu
um acidente.
Bentiu, capital de Unity,
nosso estado, está nas mãos do governo. É outra cidade ‘fantasma’e destruída. A
população fugiu. Milhares vieram para Leer, a maioria caminhando. Homens,
mulheres, crianças, idosos, doentes caminharam 130 km até Leer e outras
localidades em busca de proteção e alimentos. Muitos ainda estão na estrada.
Muita gente foi assaltada no caminho. As tropas ‘rebeldes’ retornaram de Leer
para Bentiu com muitos jovens recrutados para retomarem a cidade. A mesma ação
os ‘rebeldes’ pretendem fazer em Bor.
Em quarto lugar, desejo
descrever como estamos em Leer. A cidade continua isolada. Isso, de certa
forma, garante ‘segurança’. Tropas externas não chegam facilmente. Também não
haveriam razões para um ataque em Leer. O maior momento de tensão foi quando as
tropas do governo tomaram Bentiu dos ‘rebeldes’ e o povo, junto com algumas
tropas ‘rebeldes’, fugiram para Leer. Ainda há muitos soldados em Leer. Com
medo de um ataque, muita gente de Leer fugiu com seus rebanhos para um lugar mais
seguro. Agora começam a retornar a Leer. O que nos traz insegurança e
preocupação é a presença de muitos soldados e civis com armas.
As ONGs que operam em
nosso estado evacuaram. Permaneceram somente os Médicos Sem Fronteiras e a Cruz
Vermelha, além da ONU com algumas forças de sua missão de paz. Nós,
missionários Combonianos e Combonianas, também resolvemos ficar.
As dependências das ONGs
e até da ONU em Bentiu foram violadas e saqueadas. Alguns veículos de
particulares e das ONGs foram tomados à força por soldados ou por civis
armados. Na última quarta-feira, dia 15 de janeiro, três soldados e um
comandante entraram nas dependências da missão e queriam levar os carros da
igreja. Conseguimos convencê-los de não os levar. Foram às dependências das
freiras e queriam levar o carro delas. Chegaram a ameaçar uma irmã comboniana
com um galho para dar-lhe uma surra. Conseguimos intervir e acalmá-los até que
nos deixaram. Ninguém se machucou. Foi o único assédio e animosidade que
sofremos nesses conflitos.
Em situações como a que
vivemos não existe lei. Além da insegurança que se instalou, enfrentamos também
a crise da insegurança alimentar. Os que fugiam para Leer precisam de comida e
no mercado existe pouca e além disso é muito cara. Os refugiados se cadastram com
a Cruz Vermelha, mas infelizmente tem chegado pouco alimento. A fome que já
existia onde o povo comia só uma vez por dia, agora aumenta e tem gente que nem
comida para um dia tem.
A nossa paróquia acolheu
algumas famílias e estamos procurando a melhor forma de ajudá-los. O hospital
de Leer (MSF) está cheio e continua recebendo pacientes feridos de outras
cidades. São trazidos pelos aviões da Cruz Vermelha e dos Médicos Sem
Fronteiras (MSF).
Em quinto lugar, queria
dizer que nem tudo é tragédia. Existe muita solidariedade entre o povo. Em
todas as casas e quintais tem gente. A hospitalidade do povo Nuer é incrível.
Uma viúva com família grande acolhe 15 pessoas em sua casa. Confia na Divina
Providência para manter esse povo todo. Muita gente é acolhida ao longo dos
130km de caminhada. Às vezes é suficiente um copo de água e uma dormida. A fé e
a esperança também são grandes. E assim são muitos pequenos milagres.
Escuta-se muitas estórias
tristes, mas também sobre muita ação solidária. Não é preciso muitas palavras.
O amor fala mais alto concretamente. Além disso, a boa notícia que lhes queria
comunicar é que neste último sábado (18/01/2014) as delegações que negociam o
acordo de paz na Etiópia conseguiram assinar um acordo de paz que foi aceito
pelo presidente. Com isso se espera que os combates se encerrem para permitir
mais negociações. Queira Deus que esse acordo inicial seja cumprido por ambas
as partes e não haja mais mortes e destruição. Deus seja louvado por isso.
No entanto, é preciso
continuar rezando. Muita coisa precisa mudar para que haja paz definitiva. O
acordo para o cessar-fogo, porém, nos traz esperança de paz e um pouco de tranquilidade.
Continuem com as orações pela paz e reconciliação. Muita gente reza por nós e connosco
e já se sente e vê os frutos das orações.
Fiquem com Deus e muito
axé.
Pe. Raimundo Rocha,
Missionário Comboniano em Leer, Sudão do Sul
,
Sem comentários:
Enviar um comentário