Juba: Cemitério de Malakia
O culto dos antepassados
é um dado cultual e social transversal em África. Os Africanos acreditam que os
mortos fazem parte da vida de cada dia.
Na África, é comum
que os antepassados sejam percebidos como intermediários entre a(s)
divindade(s) e os vivos, muito próximo da doutrina católica da comunhão dos
santos, uma visão que deu origem também a uma cristologia africana que
apresenta Jesus como o antepassado comum.
Os antepassados são
recordados e respeitados na maioria das culturas africanas como fonte de bênção
e para evitar maldições. Um provérbio africano diz que negligenciar os
antepassados traz má sorte. Por isso, é normal que as culturas africanas
desenvolvam ritos para propiciar os mortos e evitar catástrofes pessoais e
colectivas. O escritor nigeriano Chinua Abache descreve, na sua primeira
novela, Things Fall Apart, o choque cultural provocado pela chegada dos
administradores ingleses e missionários na cultura igbo. Okonkwo, o herói do
livro, queima uma igreja para apaziguar os antepassados e proteger a cultura e
as tradições das influências externas.
No meu serviço
missionário, experimentei duas maneiras diferentes de tratar os antepassados em
contextos culturais rural e urbano.
Os Gujis, do Sul da
Etiópia, entendem a morte como um acto de violência que é preciso propiciar com
o sacrifício de um animal – normalmente um touro – sobre a campa do defunto
depois de um período de luto que pode ir de dias a um ano ou mais, dependendo
da importância social do falecido. A celebração da nagefatiisa (fazer as
pazes) no final do luto culmina com uma refeição do animal sacrificado cujo
sangue restabelece a harmonia que a morte violou. Depois de a nagefatiisa
terminar, os antepassados são deixados em paz, excepto se alguma filha do
falecido for estéril: nesse caso, a família reúne-se à volta da sepultura, que
normalmente fica junto à casa da família, e pede ao antepassado que levante a
maldição e permita que a mulher conceba.
Os mortos são
colocados no túmulo com muito cuidado e as sepulturas são marcadas com uma
estaca de uma árvore local que ganha raízes com facilidade. Quando nos
ofereceram o terreno para construir a missão de Haro Wato, exigiram que não
perturbássemos dois conjuntos de sepulturas dentro da propriedade. Concordámos
que a igreja fosse construída sobre um dos grupos e o outro, um pequeno bosque
de árvores e trepadeiras, encontra-se intocável no meio do cafeal.
A memória dos
antepassados também é importante para determinar linhagens e casamentos. Os
miúdos gujis tinham muito orgulho em enunciar os nomes dos descendentes até
pelo menos à décima geração e não entendiam porque é que eu só sabia o nome do
meu pai e do meu avô. Depois, quando um rapaz escolhe a noiva, os anciãos
investigam se as duas linhagens não se cruzavam para sancionar a união.
Em Juba, no Sudão do
Sul, fui confrontado com uma atitude totalmente oposta à dos Gujis. O cemitério
de Malakia, um dos maiores da cidade, transformou-se num bosque onde as pessoas
fazem as necessidades antes de o dia despontar e parte do campo santo foi
ocupada por armazéns, uma fábrica de engarrafamento de água e pelas barracas
provisórias dos sem-casa, afectados pela urbanização de Juba.
Não é que os mortos
não sejam celebrados condignamente: o sepultamento é feito entre orações,
cânticos e danças de pesar e o luto termina com a teskar muito
semelhante à nagefatiisa dos Gujis, uma celebração pública imponente e
longa que inclui orações, cânticos, a evocação do defunto e uma refeição.
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