22 de março de 2022

AS TENTAÇÕES DO MISSIONÁRIO


A liturgia católica propõe-nos, no início da quaresma, a contemplação das tentações de Jesus e das nossas próprias tentações. O evangelista Mateus conta que, depois do Batismo, e antes de começar o seu ministério, Jesus foi levado pelo Espírito para o deserto para ser tentado pelo Diabo (Mateus 4, 1-11). Lucas (4, 1-13) inverte a segunda e terceira tentação. Marcos (1, 12-13) nota simplesmente que o Espírito levou Jesus para o deserto onde durante quarenta dias foi tentado por Satanás entre as feras e os anjos que o serviam.

Transformar pedras em pão. Jesus passou quarenta dias a jejuar e, claro, teve fome. O tentador disse-lhe: «Se Tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pão» (versículo 3).

Jesus foi tentado a reverter o poder que o Pai lhe deu para a missão em proveito próprio. Mas respondeu: «Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (versículo 4).

Os missionários vivemos em situações periféricas. A doença, a fome, a iliteracia, a miséria, a falta desenvolvimento das pessoas com quem partilhamos a vida e o Evangelho afetam-nos e apertam-nos o coração. Podemos ser tentados a reduzir o serviço missionário a uma resposta humanitária a estas emergências, mas a proclamação da Palavra é a razão da nossa presença. Aliás, a Palavra é também parte da solução para ultrapassar as desigualdades e os problemas com que as pessoas se debatem porque nos abrem à partilha e ao cuidado mútuo.

Lança-te! Na segunda tentação, o Diabo pôs Jesus sobre o Pináculo do Templo de Jerusalém e disse: «Se Tu és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, pois está escrito: Dará a teu respeito ordens aos seus anjos; eles sustentar-te-ão nas suas mãos para que os teus pés não se firam nalguma pedra» (versículo 6). O Tentador conhece a Bíblia e citou o Salmo 91! Jesus replicou: «Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus» (versículo 7).

Confrontado pela realidade humana, social, cultural e religiosa — e motivado pelo zelo apostólico de querer a todos salvar, o missionário pode ser tentado a lançar-se ao trabalho sem horários nem descanso e depois querer que Deus faça milagres quando a saúde física, espiritual e mental falham. Gastar-se completamente e esperar que Deus tome conta do prejuízo. Não tentar o Senhor Deus é cuidar do corpo, do espírito e da alma. Os anjos ajudam, mas não são responsáveis pelas minhas escolhas.

Poder e glória. Finalmente, Mateus conta o Diabo levou Jesus para o alto de um monte e mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória — a que Lucas ajunta «com o seu poderio» — disse-lhe: «Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares» (versículo 9). A resposta de Jesus foi seca: «Vai-te, Satanás, pois está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto» (versículo 10).

A tentação do poder é a tentação maior! Poder a controlar a consciência, a vida e as escolhas das pessoas, o protagonismo da juventude; poder que pode ser de confrontação com as autoridades locais ou de alianças de interesses não confessados; poder na confrontação inter-religiosa em vez da via do diálogo. Poder na ajuda paternalista que cria dependência.

A tentação do poder e glória também pode ser manifesta na ânsia de protagonismo, de ocupar o centro do palco da evangelização de que o Espírito Santo é o ator principal. Ou de deixar obra feita, uma espécie de monumento ao eu!

Daniel Comboni deixou um remédio simples. No capítulo décimo das Regras do Instituto das Missões para a Nigrícia — a África — escreveu: «o missionário da Nigrícia deve com frequência reflectir e meditar que ele trabalha numa obra de altíssimo mérito, sim, mas muito árdua e laboriosa, para ser uma pedra escondida debaixo da terra que talvez nunca apareça à luz e que entra a fazer parte do alicerce dum novo e colossal edifício, que só os vindoiros verão despontar».

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