6 de abril de 2018

SURPRESA FELIZ


Depois de quase todo o dia sem horas sem corrente eléctrica, o gerador a pedir refrigeração (trabalhou durante 4 horas seguidas, coitado, para aguentar até ao fim da celebração da missa) e a velinha a suspirar para me dar o último fio de luz. Aqueci o arroz e o ful (favas) que, de passagem se diga, estavam fav(ul)osas e pus-me no pátio à fresca, a apanhar o último pó de areia, ao qual ninguém pôde escapar durante estes três últimos dias. Sem uma pontinha de exagero, digo-te que não vi o Sol durante estes três dias, escondido pela tempestade. São dias avermelhados/amarelados como aqui dizem, mas Deus nos livre porque se fossem dias negros como a noite, literalmente falando, como outras vezes acontece, seria muito pior.

E como ia contando, eis que se fez luz de novo, embora já a altas horas da noite.

Surpresa feliz, embora estivesse já a caminho do vale dos lençóis (passe a expressão, mas na verdade aqui, com os meus 42 e mais graus e a comichão da tempestade de areia não uso tal coisa desde janeiro passado). Uma rápida vista de olhos ao correio electrónico e... achei-me pegado ao teclado, a pensar em ti, em vocês, nesta Páscoa Santa a acontecer, mesmo em cima de nós.

O sono passou, muito embora amanhã vai ser dia de pica-boi. E, para mais, estou sozinho já desde há três semanas. São as tais coisas dos missionários quando a comunidade mínima de três é só de dois: foi quase sempre assim neste meu querido Sudão e, mais querido ainda, Darfur. Antes, fui eu três meses a Portugal e agora é a vez do Lorenzo Baccin (férias, operação aos olhos e ao tornozelo). Que os sequestradores não saibam que estou sozinho porque senão ainda acontecerá como daquela outra vez. Mas, felizmente, caso seja preciso defender-me, espero que o Tong Aketch esteja, de novo, amanhã de manhã, como daquela outra vez, em boa forma, como bom soldado que foi, habituado a usar a espingarda ou a fingir que a tem escondida debaixo da jalabia, isto é nas cerual (ceroulas, literalmente, em árabe correcto).

Mas não haverá azar, in sha Allah. Estou em boa forma e disposição, el hamdu lillah. O pior é que os cobres começam a faltar e estamos em obras nas duas escolas de Jir e Taiba. Quando o material é chinês e não há outra escolha acontece isto, refazer o podre que não aguentou sequer um ano. Talvez cometemos o erro de começar obras sem contar com o que se tem na mão, como diz o Evangelho. Mesmo no banco, que seria a minha solução, não tem dinheiro para me dar, muito menos para me emprestar. Diz-me o meu amigo director do banco que espere uns dias até ver, que vai ver se mo arranja. Há pois que confiar em Deus e no Sr. Director. Isto é que vai uma crise, eh?! A rir digamos mas é a verdade pura. O Sudão, os dois Sudãos, estão mesmo na mesma mó de baixo. Bem, dizem que o humor também faz bem. Assim seja por sempre. Ámen!

A propósito, estou aqui a agradecer as amêndoas da Páscoa que a Província Portuguesa me enviou. Essas, juntas com as de outros amigos/as que também têm a missão do Darfur como apontamento na sua vida de cristãos, vão dando até que o meu amigo do banco arranjar o tal pacote das 20.000 libras sudanesas que me prometeu. Caso contrário, já me vejo na cadeia até pagar o último cêntimo. Mas talvez não será mau de todo pois, pelo menos, sei que lá descansarei das canseiras dos dias de tanto trabalho do lado de fora das grades. Também... pela comida que me darão na prisão – ful e lentilhas, sempre da mesma cor, todos os dias e sempre – seria um tanto ao quanto aborrecido. Embora, a verdade se diga, são das melhores comidas que por aqui encontro.

Obrigado a todos vós da Província Portuguesa pela rica oferta da Páscoa. Deus vos recompense em grande por meio daquilo que Ele melhor do que nós sabe.

Bem, já me levantei três vezes e outras tantas voltei a sentar-me. Mas agora é de vez, a esta hora da manhã, (não te digo que horas são). Deus me ajude a ter força para o pica-boi, amanhã. Pedindo desculpa pela tua paciência, se é que conseguiste ler-me até aqui. O vale dos lençóis, desta vez, com pó comichoso ou não, terei que o aguentar.

Aqui, hoje, Quinta-Feira Santa, tivemos quatro gatos-pingados mas a celebração foi muito boa. Fiquei contente mesmo com os poucos 15 paroquianos. Já muito fazem eles, muito boa gente e de muito boa fé. Embora digam eles que não perdoar aos Janjauides, ao governo de El Bashir e de Salva Kiir não é pecado. Deus que os julgue que eu não posso.

De todos os modos, seria talvez muita coisa esperar que venham a todas as celebrações, sendo a que mais sofre de participantes a Quinta-feira.

Em Outubro estamos para entregar a paróquia à diocese. É uma grande pena mas não se pode aguentar mais sem nos podermos mexer lá por longe no trabalho pelas periferias da imensa paróquia do Sul do Darfur. Quando o pessoal e padres sudaneses (Nubas) podem fazê-lo... O bispo Tombe Trille, Nuba, inteligente, muito bom homem de Deus e sério, não teve senão que aceitar a proposta do Provincial. Dar-nos-á uma paróquia onde nos poderemos mover sem problemas de (maior) perto de El Obeid. Mau... de aí já fui eu expulso em 1994 pelos mesmos motivos, da guerra... Mas Deus lá está, como aqui dizem. Mas uma vez, precisamos da vossa oração. Shukran!

O sono fugiu e ainda não voltou. Deus me ajude de manhazinha na operação pica-boi.

Uma boa e Santa Sexta-Feira Santa a prolongar-se pela Páscoa, a grande Páscoa sem fim! Ámen!
Feliz Martins

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