12 de maio de 2023

LITURGIAS VIVAS






O Missal Romano é o livro que a Igreja Católica usa para as suas liturgias. Tem, a negro, tudo o que se deve dizer e explica em letras vermelhas pequenas — as chamadas rubricas — como e quando dizer ou fazer silêncio. 

Os liturgistas, os especialistas versados em liturgia e que velam pelo modo do celebrar católico, defendem as rubricas com unhas e dentes. Um bispo comentou comigo, aparentemente citando o Papa Francisco, que é mais fácil negociar com um terrorista que com um liturgista! A imagem é eminentemente exagerada, mas ilustra bem a tensão que existe em certos sectores.

As liturgias que celebramos nas igrejas e nas capelas da missão de Qillenso podem escapar ao controlo das letrinhas vermelhas do missal, mas são celebrações cheias de vida e cheias de Deus. Muitas vezes dou comigo a pensar até que ponto as rubricas  não são uma tentativa de manter o Espírito Santo — através de quem rezamos — refém da suposta arte — e ordem — do bem celebrar.

Os africanos celebram com o corpo todo e com a vida inteira.

Os cânticos têm uma expressão corporal própria que vai da voz à dança, do ulular às palmas ritmadas. Há cânticos em que a assembleia litúrgica se expressa de uma forma quase tumultuosa: começam a balançar o corpo e os braços para a frente e para trás nas estrofes e no refrão pulam e a batem palmas num exercício exaustivo e cheio de alegria. Chamam-lhe xabe-xabá e acaba por ser um ato de louvor em que todos se associam com as forças que têm, desde a exuberância das pré-adolescentes ao cansaço das velhinhas.

Normalmente os diálogos entre o presidente e a assembleia são proclamados num tom próximo da cadência da liturgia ortodoxa, emprestando um ambiente sonoro de recolhimento à celebração.

A oração dos fiéis é espontânea. As pessoas contam as suas estórias e pedem a ajuda de Deus para as ultrapassar ou louvam-n’O por as ter abençoado depois de uma doença, de um animal perdido, de um acidente… No passado costumavam durar até meia hora. Agora restringem-se a meia dúzia de intenções ou menos.

Durante o ofertório a assembleia faz uma procissão para trazer as oferendas ao altar. Normalmente dão dinheiro, mas também trazem leite, café, cevada, couves, milho e outros produtos agrícolas. Ocasionalmente apresentam um animal (vitelo, cabra, ovelha ou galinha). No passado usávamos as ofertas em género para ajudar os pobres da comunidade. Quando regressei, encontrei a tradição de leiloarem no fim da missa os produtos para juntarem ao dinheiro do ofertório que é usado para a manutenção da igreja e das capelas e outras despesas da missão.

Na liturgia, foram introduzidos alguns detalhes novos. Durante a elevação da Hóstia consagrada, depois de todos proclamarem «Meu Senhor e meu Deus», cantam «Jesus, Pão da Vida» três vezes. Depois, na elevação do Cálice, repetem a oração «Meu Senhor e meu Deus» e cantam «Jesus, Cálice da Vida, Alfa e Omega, que não é mudado». A oração eucarística conclui com triplo amen solene cantado três vezes.

Como oração de graças comum usamos a oração «Alma de. Cristo» proclamada por toda a comunidade em tom próprio.

No final da Eucaristia, os grupos etários — crianças, jovens e mulheres — costumam brindar a comunidade com dois cânticos cada. Normalmente são originais treinados durante o encontro semanal: as mulheres reunem-se às quartas-feiras à tarde e os jovens e crianças aos sábados de manhã.

Talvez o que mais caracteriza as liturgias é o uso do tempo. John Mbiti, um filósofo queniano e pastor anglicano, escreveu que os africanos não contam o tempo, mas fazem-no. E fazem-no sobretudo na liturgia. Uma missa semanal leva quase uma hora, a de domingo duas horas, e a da festa do orago pelo menos três (e acaba com uma refeição comum). O tempo da celebração é sagrado e ninguém olha para o relógio, embora alguns dos mais novos às vezes saiam discretamente a meio da celebração.

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