15 de outubro de 2024

ADEUS, HIENA



O dia acordou cheio de sol, lindo mesmo. A cozinheira deu-me os bons dias com cara de caso. «Buchi morreu!», disse, triste.

Bichi era como ela tratava o nosso rafeiro. Eu chamava-lhe Halala, Hiena em guji, por causa das suas cores quando era cachorrito.

Hiena apanhou o portão da missão aberto à noite, foi para a estrada e foi apanhado por um tuque-tuque, os táxis daqui. Fiquei triste, porque estava afeiçoado ao cachorro.

Veio para a missão de Qillenso há menos de meio ano. Tinham-nos matado o Bobi. Fui à aldeia vizinha comprar carne com a cozinheira e ela meteu-o na caixa do todo-o-terreno.

Vi-o quando chegamos a casa. Tremia como varas verdes – nunca tinha andado de carro – e estava cheio de pulgas. Guyyate pegou no spray para mosquitos e resolveu o problema.

Hiena – ou Halala – detestava a água. Quando lhe dava banho chorava como uma criança. Era difícil apanhá-lo perto de casa. Até para lhe tirar as carraças, que eram mais que muitas. Gostava de dormir num monte de palha seca.

Entretanto, cresceu e eu deixei de o lavar. Mas ganhou confiança de novo e gostava de ser acarinhado.

Comia tudo: ossos, restos de comida, bananas, abacates, milho cozido ou cru... O que lhe aparecesse à frente. «Boquinha de missionário!», comentava o meu colega.

Era pequeno de corpo, mas tinha um caminhar vaidoso, altivo, seguro de si.

O seu ladrar estridente à noite punho tudo a milhas.

Quando estava fora de Qillenso por algum tempo, fazia uma festa à minha chegada: corria à frente do carro e quando saía punha-se a grunhir de uma maneira especial à procura de miminhos.

Às vezes, quando cantávamos ele uivava. Nunca entendi se era a fazer pouco de nós ou para cartar connosco.

Durante a oração da manhã e da tarde gostava de se coçar contra os nossos pés, na sala de estar.

Durante as refeições esperava pacientemente por um bocado de pão ou outro petisco.

Cresceu com a gata e os dois filhotes. Mas ultimamente gostava de lhes dar umas corridas. E a comida era toda para ele. Tive de começar a alimentar os gatos no topo de um poço alto onde ele não chegava.

Gostava muito de brincar com as pessoas, sobretudo com os miúdos, que fugiam dele a pés juntos, porque tinham medo de ser mordidos...

É interessante como nos afeiçoamos aos animais. Fiquei muito triste quando mataram o Bibi e mais triste ainda quando o Halala foi atropelado...

Vamos ter de arranjar outro cachorrito, porque de noite os guardas vão dormir para casa e a missão fica escancarada...

MISSIONÁRIOS SEGUNDO O CORAÇÃO DE COMBONI


Os membros do XIX Capítulo Geral dos Missionários Combonianos escreveram na introdução à prioridade da Espiritualidade dos Documentos Capitulares 2022 (DC ’22): «Radicados em Cristo, unidos a São Daniel Comboni, vivemos um contacto constante com o Senhor na oração que se torna vida e missão, incentiva todo o nosso trabalho e as nossas prioridades, humaniza as nossas relações, motiva a nossa ação e a torna fecunda» (DC '22, 11).

Vivemos em Cristo, juntamente com São Daniel Comboni, e transformamos a oração na seiva vivificante que nos dá força para viver de modo fecundo a missão que somos e as nossas relações pessoais.

Os capitulares acrescentaram: «Sonhamos com uma espiritualidade que nos permita continuar a crescer como família fraterna de consagrados radicados em Jesus, na sua Palavra e no seu Coração, e contemplá-lo nos rostos dos pobres e na experiência vivida por São Daniel Comboni para ser missão» (DC '22, 12).

Este sonho deixou em mim uma marca indelével desde a primeira vez que li os documentos do capítulo. Nele se explicitam os ingredientes fundamentais que fazem a nossa vida espiritual: Jesus, a quem Charles de Foucault chamava «meu irmão e Senhor», a sua Palavra, o seu Coração, os pobres e a experiência de Comboni.

Na reflexão de hoje aprofundarei «a experiência vivida por São Daniel Comboni para ser missão» à luz da sua inspiradora homilia em Cartum, Sudão, quando regressou àquela Igreja como Provigário Apostólico.

A nossa família missionária é constituída por Missionários Combonianos, Irmãs Missionárias Combonianas, Missionárias Seculares Combonianas e Leigos Missionários Combonianos. Comboni faz parte do nosso nome, porque é o nosso pai e a nossa herança comum. Ele é o GPS do nosso ser missão; caminhamos sobre as suas pegadas.

 

HOMILIA DE CARTUM

O P. Daniel Comboni foi nomeado Provigário Apostólico para a África Central a 26 de maio de 1872. A 11 de junho, a missão da África Central foi confiada ao seu Instituto por decreto de Pio IX.

Antes, a 1 de janeiro do mesmo ano, tinha fundado o Instituto das Pias Madres da Nigrícia – as Irmãs Missionárias Combonianas – em Montorio, Verona, e no mesmo mês tinha dado início aos Annali del Buon Pastore, semente de tantas revistas e publicações combonianas nos quatro continentes que fazem dos meios de comunicação social um campo de evangelização na tradição comboniana.

A 20 de setembro de 1872, Comboni partiu de Trieste na sua sexta viagem a África. Seis dias depois estava no Cairo. A 26 de janeiro de 1873, partiu do Cairo para Cartum. A expedição inclui pela primeira vez algumas irmãs europeias. A 4 de maio, depois de 99 dias de uma longa e cansativa viagem pelo Nilo e pelo deserto, o Provigário é acolhido solenemente em Cartum. Uma semana depois, a 11 de maio, apresenta o seu projeto de missão através de uma homilia.

A prática, proferida em árabe, foi traduzida pelo P. Giovanni Battista Carcereri e publicada nos Annali del Buon Pastore.

Revisitemo-la de novo:

Estou muito contente de finalmente me encontrar de novo entre vós, depois de tantas vicissitudes penosas e de tantos ansiosos suspiros. O primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia e, deixando tudo o que me era mais querido no mundo, vim, faz agora dezasseis anos, a estas terras para oferecer o meu trabalho como alívio para as suas seculares desgraças. Depois, a obediência fez-me voltar para a Europa, dada a minha enfraquecida saúde, que os miasmas do Nilo Branco em Santa Cruz e em Gondokoro tinham incapacitado para a ação apostólica. Parti para obedecer; porém, entre vós deixei o meu coração e, tendo-me recomposto como Deus quis, os meus pensamentos e os meus atos foram sempre para convosco.

E hoje, finalmente, recupero o meu coração voltando para junto de vós para o abrir na vossa presença ao sublime e religioso sentimento da paternidade espiritual, da qual quis Deus que fosse investido, faz agora um ano, pelo supremo chefe da Igreja Católica, nosso senhor o Papa Pio IX. Sim, eu sou vosso pai e vós meus filhos e como tais pela primeira vez vos abraço e estreito contra o meu coração. Estou-vos muito reconhecido pelas entusiásticas receções que me tendes dispensado: demonstram o vosso amor de filhos e persuadem-me de que quereis ser sempre a minha alegria e o meu diadema, como sois o meu dote e a minha herança.

Tende a certeza de que a minha alma vos corresponde com um amor ilimitado para todo o tempo e para todas as pessoas. Eu volto para o meio de vós para nunca mais deixar de ser vosso e totalmente consagrado para sempre ao vosso maior bem. O dia e a noite, o Sol e a chuva encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender as vossas necessidades espirituais; o rico e o pobre, o são e o doente, o jovem e o velho, o patrão e o servo terão sempre igual acesso ao meu coração. O vosso bem será o meu e as vossas penas serão também as minhas.

Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós. Não ignoro a gravidade do peso que lanço sobre mim, já que, como pastor, mestre e médico das vossas almas, terei de velar por vós, instruir-vos e corrigir-vos; defender os oprimidos sem prejudicar os opressores, reprovar o erro sem censurar o que erra, condenar o escândalo e o pecado sem deixar de ter compaixão pelos pecadores, procurar os transviados sem encorajar o vício: numa palavra, ser ao mesmo tempo pai e juiz. Mas resigno-me a isso, na esperança de que todos vós me ajudareis a levar este peso com júbilo e com alegria em nome de Deus.

Sim, antes de tudo confio no teu trabalho, reverendo padre e meu caríssimo vigário-geral: em ti, que foste o primeiro que me ajudou nesta obra da missão para a regeneração da Nigrícia e o primeiro que arvoraste o estandarte da santa cruz no Cordofão e ensinaste àqueles povos os primeiros rudimentos da fé e da civilização. E também confio em vós, estimados sacerdotes irmãos meus e filhos neste apostolado, uma vez que sereis os meus braços na ação de dirigir pelos caminhos do Senhor o seu povo e ao mesmo tempo meus anjos conselheiros. E igualmente confio em vós, veneráveis irmãs, que com mil sacrifícios vos associastes a mim para colaborar comigo na educação da juventude feminina. E do mesmo modo confio em todos vós, senhores, porque sempre querereis confortar-me com a vossa obediência e docilidade às afetuosas insinuações que o meu dever e o vosso bem me aconselhem a fazer-vos.

Quanto a si, ilustre representante de S. M. I. R. A. o imperador Francisco José I, nobre protetor desta vasta missão, enquanto com prazer lhe agradeço quanto fez até agora por ela, apresso-me a exprimir-lhe a esperança de que quererá continuar a render gloriosamente a homenagem da espada à cruz, a defender os direitos da nossa religião divina, no caso de serem ignorados e espezinhados.

E agora é a vós a quem me dirijo, ó piedosa Rainha da Nigrícia, e, aclamando-vos como Mãe amorosa deste vicariato apostólico da África Central entregue aos meus cuidados, atrevo-me a suplicar-vos que nos recebais solenemente sob a Vossa proteção a mim e a todos os meus filhos, para que nos guardeis do mal e nos dirijais para o bem.

Ó Maria, Mãe de Deus, o grande povo dos negros dorme ainda na sua maior parte nas trevas e sombras da morte: apressai a hora da sua salvação, aplanai os obstáculos, dispersai os inimigos, preparai os corações e enviai sempre novos apóstolos a estas remotas regiões tão infelizes e necessitadas.

Meus filhos, eu confio-vos neste dia solene à piedade dos Corações de Jesus e de Maria, e, no ato de oferecer por vós o mais aceitável dos sacrifícios ao Altíssimo Deus, rogo humildemente que seja derramado sobre as vossas almas o sangue da redenção, para as regenerar, para as sarar, para as embelezar na medida da vossa necessidade, a fim de que esta santa missão seja fecunda para a vossa salvação e para a glória de Deus. E assim seja (Escritos 3156-3164).

Esta homilia foi proclamada há 151 anos. Tem 867 palavras na tradução portuguesa. É curta, mas muito motivadora. Continua a inspirar as missionárias e os missionários de Comboni. É parte integrante do nosso património missionário. Nele encontramos o código genético da nossa espiritualidade comboniana e do modo de ser missão. 

 

A MISSÃO EM TRÊS TEMAS

A partir da homilia de Comboni, gostaria de refletir convosco sobre três temas:

1.         A missão é aliança;

2.         A missão é permanente;

3.         A missão faz-se em rede.

 

1. A MISSÃO É ALIANÇA

A missão, à luz de Comboni, é uma aliança esponsal e martirial com Deus, com os seus missionários e com as pessoas com quem vive e a quem serve.

Comboni pronuncia na sua homilia afirmações muito fortes e profundas. Sublinho sete: 

-      O primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia;

-      Entre vós deixei o meu coração e, tendo-me recomposto como Deus quis, os meus pensamentos e os meus atos foram sempre para convosco;

-      Pela primeira vez vos abraço e estreito contra o meu coração;

-      Quereis ser sempre a minha alegria e o meu diadema, como sois o meu dote e a minha herança;

-      Eu volto para o meio de vós para nunca mais deixar de ser vosso e totalmente consagrado para sempre ao vosso maior bem;

-      O vosso bem será o meu e as vossas penas serão também as minhas;

-      Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós. 

Estas frases fazem-me lembrar a declaração de pertença de Rute a Noemi, sua sogra: «Onde tu fores, eu irei contigo e onde pernoitares, aí ficarei; o teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus» (Rute 1,16).

Esta é a pertença nupcial, este é o coração da aliança de Comboni com os africanos. Esta deveria ser a nossa própria aliança com as pessoas com quem vivemos e a quem servimos. O Papa Francisco escreveu na sua primeira exortação apostólica, o programa do seu papado, que «a missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo» (Evangelii gaudium, 268). Não podemos separar Jesus do seu povo. Eles são um só.

Esta aliança esponsal brota do coração: Comboni usa a palavra coração(ões) seis vezes na sua homilia. É uma aliança cordial que brota do amor: a palavra aparece três vezes no sermão. Sinto o palpitar do seu coração. Enquanto em Itália os políticos proclamavam «Roma ou morte!» a partir da segurança das suas zonas de conforto, Comboni em África dizia com a sua vida «Nigrícia ou morte!». Desafiava a morte com a sua vida. Morreu em Cartum há 143 anos. Tinha 50 anos. A sua morte é o selo do seu amor pelos africanos.

Paulo diz-nos, naquele belíssimo hino ao amor, que «ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me vale» (1 Coríntios 13,3). Uma missão sem amor é inútil!

O Cardeal José Tolentino Mendonça – poeta, místico e mestre de espiritualidade – escreveu que «não há amor se não houver excesso de amor». 

Para entrar nesta relação cordial com os GUJIS, o nosso povo, temos de dizer com a nossa vida: a tua língua é a minha língua, a tua cultura é a minha cultura, a tua noção de tempo é também a minha; os teus sonhos são os meus sonhos, as tuas alegrias são as minhas alegrias, os teus problemas são os meus problemas, as tuas esperanças são as minhas esperanças; e a minha vida é tua.

É assim que exercemos o sentido de pertença às pessoas que servimos. Podem chamar-nos farenji – estrangeiro, mas, na verdade, somos farenji guji! Quando algumas pessoas expressam surpresa por eu, de alguma forma, falar guji, digo-lhes: «Eu sou guji, mas quando nasci, lavaram-me com lixívia e a minha pele estragou-se!» E rimo-nos juntos. 

Por outro lado, cada vocação é um chamamento pessoal e único. No entanto, somos chamados a viver a nossa própria vocação numa comunhão de vocações: os nossos Institutos. Para vivermos a nossa aliança conjugal com os gujis precisamos de temperar a nossa vida com uma boa pitada de ubuntu, a filosofia de vida africana que afirma que «eu sou porque nós somos». Não somos agentes solitários de evangelização. Temos de recuperar «o prazer espiritual de ser povo», como diz o Papa Francisco. O Papa dedica um capítulo inteiro a este tema na Evangelii gaudium.

Comboni proclamou: «o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós». Esta é a dimensão martirial da missão: dar a vida pelo povo que se serve. Segundo a segundo, dia a dia, ano a ano.

A Igreja reconhece dois tipos de martírio: o vermelho e o branco. Aqueles que são mortos por ódio à fé e aqueles que sofrem uma morte lenta devido à sua constância quotidiana. 

O martírio vermelho é o mais fácil e chama mais a atenção. No entanto, somos convidados a dar a nossa vida, a viver o dia-a-dia com as pessoas que servimos no centro do nosso coração. A permitir que sejam elas a ditar a nossa agenda diária. A enfrentar com um sorriso as dificuldades quotidianas. A permanecer no lugar mesmo quando os outros fogem. Este é o martírio branco. Não é apelativo e pode ser muito doloroso. No entanto, este era o modo de Comboni ser missão na África Central.

 

2. A MISSÃO É PERMANENTE

Comboni proclamou na sua homilia: «O dia e a noite, o Sol e a chuva encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender as vossas necessidades espirituais; o rico e o pobre, o são e o doente, o jovem e o velho, o patrão e o servo terão sempre igual acesso ao meu coração».

Estamos sempre em estado de missão. A missão é permanente: «O dia e a noite». Somos missionários para todas as condições meteorológicas: «O Sol e a chuva». Somos missionários cordiais para todos: «terão sempre igual acesso ao meu coração». Os que amamos ou gostamos e aqueles que, de alguma forma, não gostamos.

A missão não é um tempo parcial nem um passatempo. É o nosso respirar, o nosso viver, o nosso morrer. O serviço missionário não é apenas uma entre as muitas coisas que fazemos. Não é mais um parêntesis na nossa agenda pessoal quotidiana. 

É uma disponibilidade constante para amar: «encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender» – diz Comboni. «Sempre!», sublinha.

É cordial: brota do coração da Santíssima Trindade e dirige-se ao coração do mundo inteiro através do nosso próprio coração. É missio Dei (como diz o decreto conciliar Ad gentes), não é a minha missão, não é a missão do meu instituto.

O Papa Francisco escreveu na sua primeira exortação apostólica: «Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar» (Evangelii gaudium 273).

A missão é ontológica: faz parte do meu ser, do meu viver, da minha identidade. Somos missionários porque amamos as pessoas com quem vivemos, sempre. Nós não fazemos missão – diriam alguns confrades: «Fare il missionario!» –, nós somos uma missão. Sempre e em todo o lado!

Somos uma missão para iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar. Que descrição de trabalho! Estes são os verbos com que conjugamos a missão, a sua gramática.

Francisco introduz a sua declaração com estas palavras: «A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser».

ad gentes não é territorial: é cordial. O coração é o território da missão. A missão torna-se um encontro de corações: o coração de Deus com o coração do seu povo através do coração missionário. Somos missionários por estarmos permanentemente e totalmente no coração das pessoas, por trazê-las sempre no nosso coração. 

«Nisto uma pessoa se revela enfermeira no espírito, professor no espírito, político no espírito..., ou seja, pessoas que decidiram, no mais íntimo de si mesmas, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias exigências. Deixará de ser povo» – conclui o Papa.

Assim, também nós somos desafiados a ser missionários no espírito, «pessoas que decidiram [...] estar com os outros e ser para os outros», sempre, sem zonas cinzentas de privacidade que condicionem a nossa opção de estar para os outros.

 

3. A MISSÃO FAZ-SE EM REDE

Comboni, na sua homilia programática, proclama que conta – ele diz «confio» – com o trabalho do seu Vigário-geral, dos seus sacerdotes e irmãos, das veneráveis Irmãs, dos senhores presentes e do representante do imperador austríaco. 

Por outras palavras, Daniel Comboni sabe que o sucesso da sua missão como Provigário Apostólico para a África Central depende da cooperação dos seus colaboradores eclesiais, da sociedade civil – os senhores – e do poder político – o representante do imperador – que, segundo as suas próprias palavras, «quererá continuar a render gloriosamente a homenagem da espada à cruz, a defender os direitos da nossa religião divina, no caso de serem ignorados e espezinhados».

Não somos missionários no singular, nem podemos ser missionários sozinhos. Jesus enviou os Doze e os Setenta e dois, dois a dois. Precisamos de trabalhar em rede com outras pessoas – igreja local à qual pertencemos, missionários leigos, sociedade civil, agentes humanitários, líderes religiosos e membros de outras igrejas, políticos, etc. – para sermos a missão que Deus quer que sejamos. 

Os DC ‘22, sobre a prioridade Ministerialidade ao serviço da requalificação, exprimem o compromisso de «aviar um diálogo e uma colaboração com as Igrejas locais para desenvolver pastorais específicas e trabalhar em rede com os movimentos populares» (DC '22, 31.4)

Hoje, como outrora, a missão é sinodal: caminhamos juntos, trabalhamos juntos, vivemos juntos, acreditamos juntos.

O plano de Comboni era um sonho de colaboração em rede de todos os institutos missionários trabalhando juntos, uma ampla coligação para preparar os africanos para serem salvadores e regeneradores de si mesmos. Infelizmente, este grande projeto não se materializou.

Comboni queixava-se do «maldito egoísmo religioso e fradesco que impera em quase todas as ordens religiosas: “A ordem e depois Cristo e a Igreja”. [...] Não é grande coisa o bem que se faz, diz o frade, se não provém da ordem» (Escritos 2387). Por isso estamos aqui: porque outros institutos não trabalharam com Comboni, ele fundou os seus dois institutos para levar por diante o projeto. Somos um monumento a esta incapacidade de pensar para além da própria ordem, de trabalhar em rede para a glória de Deus.

Hoje, a realidade é tão complexa que não somos capazes de a enfrentar sozinhos, seja na evangelização, na educação, na saúde, na assistência... Precisamos de juntar as nossas ideias, os nossos recursos e as nossas forças para sermos transformadores efetivos da sociedade. Precisamos da experiência e da força uns dos outros para sermos eficazes na prestação de serviços.

 

APELO À MÃE

Comboni chama à Mãe Maria «precioso alívio do missionário» (Escritos 262). Não podia deixá-la de fora da sua missão, do seu programa pastoral: dirige-se a ela no final da homilia.

Reza: 

E agora é a vós a quem me dirijo, ó piedosa Rainha da Nigrícia, e, aclamando-vos como Mãe amorosa deste vicariato apostólico da África Central entregue aos meus cuidados, atrevo-me a suplicar-vos que nos recebais solenemente sob a Vossa proteção a mim e a todos os meus filhos, para que nos guardeis do mal e nos dirijais para o bem.

Ó Maria, Mãe de Deus, o grande povo dos negros dorme ainda na sua maior parte nas trevas e sombras da morte: apressai a hora da sua salvação, aplanai os obstáculos, dispersai os inimigos, preparai os corações e enviai sempre novos apóstolos a estas remotas regiões tão infelizes e necessitadas.

Esta é também a nossa oração, hoje e sempre. Amém!

 

Qillenso, 10 de outubro de 2024 – 143º aniversário do dies natalis de São Daniel Comboni.

11 de outubro de 2024

VICARIATO DE HAWASSA CELEBRA DOIS MISSIONÁRIOS DISTINTOS




A 10 de outubro de 2024, a Igreja Católica de Hawassa celebrou dois distintos missionários com uma Eucaristia de réquiem na sua catedral.

O Vicariato Apostólico celebrou a memória dos combonianos, a Ir. Maria Sarina Nici e o P. Nicolino Di Iorio. 

Foi um modo diferente de assinalar a solenidade de São Daniel Comboni, fundador dos dois institutos.

Os dois missionários nasceram na Itália e regressaram à Casa do Pai na primeira semana de outubro. 

A Ir. Sarina faleceu em Verona, Itália, a 1 de outubro de 2024, com 92 anos. 

O P. Nicola faleceu em Adis-Abeba a 6 de outubro de 2024. Tinha regressado de umas férias de cinco semanas com os pais em Itália e estava a descansar do voo quando a irmã morte o chamou. Tinha 66 anos.

A Eucaristia foi presidida pelo Bispo capuchinho Dejene Hidoto, Vigário Apostólico de Sodo.

D. Seyoum Franso, Vigário Apostólico de Hosanna, o P. Juan Núñez, Administrador Apostólico de Hawassa, e o P. Asfaha Yohannes, Superior Provincial dos Missionários Combonianos na Etiópia, concelebraram com cerca de 50 sacerdotes, diocesanos e missionários.

O P. Juan, Administrador Apostólico, deu as boas-vindas aos participantes no início da Missa. 

Agradeceu ao P. Nicola pelo seu incansável trabalho em Hawassa. “Agora, ele está a descansar no céu”, disse.

A catedral estava repleta com muitos religiosos e religiosas de diferentes congregações que servem o Vicariato de Hawassa ou vindos de foraa e de outros fiéis. 

A liturgia foi celebrada em amárico e sidamo.

O P. Tsegaye Getahun, secretário-geral do Vicariato de Hawassa, fez a homilia, recordando o ministério do P. Nicola.

No final da celebração, a Ir. Weynshet Tadesse Haile, responsável pelas Irmãs Missionárias Combonianas na Etiópia, e o P. Asfaha apresentaram as histórias de vida dos dois missionários defuntos.

A Ir. Sarina entrou para as Irmãs Missionárias Combonianas na Eritreia. 

Depois da formação, iniciou o seu serviço missionário no Bahrein e no Iémen do Sul durante 16 anos.

Entretanto, foi transferida para a Etiópia e serviu nas missões de Dilla, Dongora, Hawassa, Meki e Addis Abeba durante 28 anos. Foi também formadora nos Seminários Menores de Hawassa e Meki. 

A promoção das mulheres era o seu grande amor. O Comboni College for Women de Hawassa é um monumento ao seu trabalho pioneiro. 

Há quatro anos, foi transferida para a Casa-Mãe das Irmãs Combonianas em Verona, Itália, devido à idade e saúde.

“A Ir. Sarina era uma pessoa verdadeiramente espiritual que valorizava em tudo a sua vocação de irmã religiosa. A sua vida influenciou e continua a influenciar muitas pessoas. A sua generosidade, a sua bondade e o seu cuidado para com os outros foram um exemplo e um testemunho do seu profundo amor a Deus e da sua fé, que brotava de uma humanidade bondosa e gentil”, sublinhou a Ir. Weynshet.

O P. Nicola foi ordenado em 1986 e trabalhou em Itália até vir para o Vicariato de Hawassa em 1995. 

Permaneceu na Terra das Origens até à sua morte prematura, exceto por um período de quatro anos em Itália, entre 2012 e 2016. 

Serviu as missões de Tullo, Fullasa, Teticha e Daye entre o povo Sidama. 

Foi também reitor do Seminário Maior de Hawassa em Adi- Abeba e ecónomo provincial dos Combonianos na Etiópia.

Nos últimos quatro anos foi vice-Administrador Apostólico de Hawassa, ajudando o P. Núñez, Administrador Apostólico. 

O P. Nicola estava também empenhado na formação permanente das religiosas, sobretudo através de um retiro mensal, e na Missa dominical em inglês para a comunidade internacional em Hawassa.

Foi celebrado como um administrador e missionário generoso, afável, dedicado e excecional.

“Imagino o P. Nicola a repetir as palavras de São Daniel Comboni: 'Eu morrerei, mas a minha obra não morrerá'”, afirmou o P. Asfaha.

O P. Tesfaye Tadesse, Superior Geral dos Missionários Combonianos e membro radical da província etíope, enviou a sua mensagem de condolências à província e ao vicariato de Hawassa.

“Todos nós agradecemos a Deus pelo dom de Abba Nicola, um grande Comboniano capaz, espiritualmente rico e humanamente generoso”, escreveu o P. Tesfaye.

O P. Tesfaye agradeceu ao P. Nicola pelas suas qualidades humanas e espirituais, pela sua partilha de fé, pela sua simplicidade, pelo seu dom de criar amizade, pelos seus gestos de caridade.

Alguns representantes de grupos eclesiais, incluindo um catequista de Daye, celebraram também os dois missionários e a sua herança.

A Eucaristia memorial terminou com um almoço fraterno. 

As comunidades combonianas femininas e masculinas de Hawassa, juntamente com alguns missionários e  missionárias de Adis-Abeba, Haro Wato, Daye e Qillenso, concluíram o dia de São Daniel Comboni com uma hora de adoração à volta de uma das suas últimas cartas desde Cartum.

7 de outubro de 2024

DESCANSA EM PAZ, ABBA NICOLA


Esta manhã tinha missa na capela de Badeye. Parei junto à torre da Ethiocom. A net estava muito fraca e tinha curiosidade de saber como ficou o Porto-Braga. 2-1! Boa.

Ia continuar a viagem, mas notei que o ícone do WhatsApp marcava muitas mensagens não lidas. A primeira que abri era do Grupo dos Religiosos do Vicariato. O P. Juan Núñez, comboniano espanhol que é administrador apostólico de Hawassa, tinha escrito: «Queridos padres, irmãos, irmãs, fiéis cristãos: tenho esta manhã uma notícia muito triste a comunicar: o P. Nicola veio da Itália no sábado à noite. Foi descansar. Como ontem ele não saiu do quarto, foram ver e encontraram-no morto. É cedo para dar mais informações. Fá-lo-emos ao longo do dia. O que podemos fazer agora é rezar».

Fiquei incrédulo, com o coração partido! Deve ser engano. Voltei a ler a mensagem. Depois fui ao Grupo dos Combonianos na Etiópia. O provincial tinha postado a mesma notícia com o detalhe de que os pais pedem que seja sepultado na Itália.

Fui para Badeye a chorar. Dei a notícia à dúzia de pessoas que enfrentaram a chuva para celebrar a missa. O catequista conhecia o Abba Nicola – como o chamávamos. Rezamos pelo seu eterno descanso e pelos seus velhos pais.

O Abba Nicola (Nicolino) Di Iorio tinha 66 anos, 27 dos quais vividos na Etiópia sobretudo entre o povo Sidama no Vicariato de Hawassa.

Conhecemo-nos em Elstree, Inglaterra, em 1982, estudantes de teologia. Tínhamos feito os votos no mesmo dia, a 6 de junho de 1981. Ele em Venegono, eu em Santarém. Esteve um ano em Chicago, nos Estados Unidos da América. Em 1982 foi transferido para Elstree. 

Era muito tranquilo e organizado. O seu quarto era modelo de arrumação. Um dia com o António Bonato decidimos pôr tudo fora do sítio e fomos para o quarto do lado para ver como reagia à nossa partida. Entrou, re-arrumou tudo e voltou a sair sem dizer palavra!

Voltamos a encontrar-nos na Etiópia em 1993: ele foi trabalhar com os Sidama e eu com os vizinhos Gujis. Por algum tempo foi superior do Seminário Maior de Hawassa em Adis-Abeba e ecónomo provincial na Etiópia.

Reencontramo-nos em novembro de 2021. Desta feita era Administrador Apostólico adjunto, assistindo o Abba Juan Núñez. Disseram-me que fazia parte da terna de padres propostos para bispo de Hawassa. Os outros dois eram etíopes: um comboniano e um jesuíta. Esperava que fosse o meu bispo. A diocese ficava em boas mãos. Era um pastor dedicado e comprometido.

O Abba Nicola vivia a cem por cento o seu trabalho de administração. Reuniões mais reuniões. Visitas às diversas missões. Também organizava retiros mensais para as religiosas de Hawassa e presidia à missa dominical em inglês para a comunidade internacional em Hawassa, feita sobretudo de estudantes do Sudão do Sul. 

Em Hawassa, recebia-me com um abraço e, da última vez com um chocolate, no seu escritório. Achei-o muito cansado. Havia desmaiado duas vezes. Mais de uma vez lhe disse para vir passar uns dias comigo a Qillenso. 

«Lá a rede telefónica é muito fraca e podes descansar sem ninguém te chatear» – expliquei. Foi adiando...

Em agosto encontrámo-nos em Hawassa pela última vez. Disse-me que ia passar cinco semanas com os pais no sul da Itália em setembro e outubro. Aconselhei-o a tirar pelo menos dois meses de férias. Disse que não podia.

Agora descansa no abraço terno e eterno de Deus.

O Abba Nicola foi missionário na Etiópia entre 1993 e 2012. Nesse ano foi destinado à Itália, mas regressou à Terra das origens em 2017. 

O Dr. Pedro Nascimento é um Leigo Missionário Comboniano que trabalhou dois anos na Etiópia, entre o povo Gumuz. Quando soube do falecimento do Abba Nicola mandou-me esta mensagem: «Recebi a triste notícia do falecimento do padre Nicola... Com a sua personalidade forte, fez imenso! Foi ele, juntamente com o padre Sisto, que me foi buscar ao aeroporto, foi ele que fez tudo para irmos visitar as missões combonianas [no Vicariato de Hawassa]; foi ele que nos primeiros tempos cuidou de nós. Um verdadeiro homem de Deus, a quem chamei de amigo! Um testemunho para mim!»

A comboniana Ir Graça Almeida também trabalhou na Etiópia entre os Sidama. «Nicola era uma boa pessoa com todos. Uma bondade e uma gentileza que o distinguia. Que Nicola descanse agora nos braços de Deus» – escreveu-me.

O P. Endrias Shamena Keriba, comboniano etíope na África do Sul, postou no Grupo dos Combonianos: «Querido Abba Nicola... serás recordado para sempre pelo povo da Etiópia pela tua dedicação e amor que tinhas no teu coração. Nós continuamos a amar-te na tua eternidade com o Senhor. Ora por nós».

A Deus, meu irmão, amigo, companheiro. Descansa no Paraíso. Mereces depois de tanto labutar em Hawassa. E intercede junto de Deus pela paz na Etiópia.

4 de outubro de 2024

INGLÊS NO DESERTO

 

Mais de trinta senhoras beduínas participaram na primeira reunião. Perguntamos-lhes se queriam aprender a bordar ou inglês.

«As duas coisas!» – responderam.

«Uma coisa de cada vez.» – propusemos.

No fim, escolheram inglês.

A maioria das alunas que vieram para a primeira aula de inglês não esteve na reunião preparatória. São quase todas caras novas. Jovens. 

As aulas são dadas debaixo de um alpendre de zinco. O chão é de relva sintética.

São cerca de trinta as jovens que frequentam as aulas de inglês nesta aldeia beduína. Estão ansiosas por aprender. Foram divididas em três grupos de acordo com o nível de cada uma.

Estão tão sedentas de aprender que chegam meia hora antes das aulas. As irmãs Lulu, Júlia e eu estamos encantadas.

Hoje, a aula é sobre o uso dos verbos ser, estar, haver, ter, poder no presente, passado e futuro. 

Eu começo.

«Nasci em Tangamandapio.» – digo, marcando um pontinho no mapa do continente americano. 

Digo-lhes que sou missionária comboniana, que somos muitas em todo o mundo e que é um privilégio servir na Terra Santa.

«Eu trabalho desde os três anos!» – conta outra. 

«O meu pai tem duas esposas. A minha mãe está na Jordânia e a mãe dela,» – diz, apontando para a sua irmã – «está na Palestina. Chegamos no dia em que começaram as aulas de inglês. Eu não queria vir para a Palestina, mas, agora que frequento as aulas, estou contente por ter vindo!» – disse, com um sorriso rasgado.

«Eu estou noiva!» –  disse outra aluna. «Vou casar no ano que vem.»

Estamos convidadas para o casamento.

«Se eu pudesse frequentava o magistério!» – explicou outra.

Com o vocabulário aprendido continuamos a alinhavar diálogos. E a entreter vidas e sonhos.

Ir Cecília Sierra

Missionária Comboniana a trabalhar com beduínos no Deserto da Judeia

30 de setembro de 2024

COMBONIANOS EM BEIRUTE ESTÃO BEM


Os membros da comunidade comboniana em Beirute, a capital do Líbano, encontram-se bem. A notícia foi dada pelo Provincial do Egito-Sudão a que pertence a comunidade libanesa.

A comunidade é composta por um formador e quatro estudantes de teologia que se preparam para o serviço missionário no mundo árabe.

O P. Diego Dalle Carnobare (no centro da foto com o formador e os estudantes) visitou a comunidade na semana passada. 

«Desta vez não estou a enviar um “boletim de guerra” do Sudão (onde a guerra continua apesar de os meios de comunicação a terem esquecido), mas do Líbano onde vim a semana passada para visitar os nossos escolásticos e o seu formador», o provincial escreveu numa mensagem.

«Os ataques estão a ser feitos nos lugares estratégicos de Hesb. O Líbano é um país pequeno, mas está dividido em áreas. Para aqueles que não vivem na área xiita a vida parece decorrer normalmente. Nós estamos no norte de Beirute numa área cristã e estamos distantes das explosões das bombas e das colunas de fumo no sul da cidade», continuou. 

«Hoje, enquanto conduzíamos para casa na estrada principal no litoral, vimos com os nossos próprios olhos que entre quatro e cinco viaturas em direção ao norte uma estava cheia de xiitas a fugir da zona de guerra: carros e camiões sobrelotados com mulheres, crianças, malas e colchões. Para onde exatamente? Cada família segue a própria direção nestas viagens de esperança», o P. Diego explicou.

A força aérea israelita transformou o sul do Líbano e o sul de Beirute no teatro da guerra contra o Hezbollah. 

As Nações Unidas dizem que pelo menos 720 pessoas foram mortas no Líbano e 211 mil deslocadas durante a primeira semana de bombardeamentos aéreos intensos. 

«O Líbano é uma pérola de beleza rara, mas a crueldade dos poderosos desconhece alguma razão», conclui a mensagem o P. Diego enquanto pede orações pela paz.

29 de setembro de 2024

MESKEL: CELEBRAR A CRUZ


Ortodoxos e Católicos na Etiópia celebram a Exaltação da Santa Cruz a 27 de setembro e, para a Igreja Católica, a comemoração litúrgica é solenidade nacional. A celebração chama-se simplemente Meskel (cruz em amárico) ou Fanno (em oromo).

As celebrações começam na tarde da véspera com a preparação de uma meda de lenha arranjada à volta de uma cruz comprida feita com duas varas. Depois de benzida, a lenha é incendiada e enquanto arde as pessoas cantam e dançam à sua volta. Quando a cruz cai, os entendidos observam a sua posição que é prenúncio – bom ou mau – para o ano que começou há apenas 17 dias.

Depois, moços formam pequenos grupos e, de paus na mão, vão para as estradas parar viaturas e cantar na esperança de algum dinheiro em troca. No passado recebiam pão, mas hoje o dinheiro é mais prático para quem dá e para quem recebe. No ano novo a cantoria e o peditório foram feitos por meninas que, em vez de paus, empunham flores.

No dia 27, celebra-se o rito da Exaltação da Santa Cruz. Os ortodoxos fazem-no durante a noite com a Sagrada Liturgia – como chamam à Missa – que começa por volta das duas ou três da manhã e se prolonga até ás sete ou oito. A celebração, muito cantada, é transmitida através de poderosos altifalantes que disturbam o sono dos não ortodoxos.

Os católicos celebramos a Eucaristia a horas mais «católicas» durante a manhã. Eu iniciei a Eucaristia na capela de Gosa, a 35 quilómetros a norte de Qillenso, às sete horas e o meu colega às nove na igreja paroquial.

Depois da liturgia na igreja, que termina com dois ou três hinos cantados por cada faixa etária (adolescentes, jovens, adultos e mulheres), a celebração passa para casa. Da ementa do almoço faz parte o doro wot, frango estufado num molho espeço de piripiri e outras especiarias com alguns ovos, acompanhado por injera, o pão típico da Etiópia, feito com farinha de tief na forma de uma panqueca gigante. Um colega espanhol chama-lhe «manta».

Os gujis, o povo a quem de alguma maneira também pertenço, juntam às celebrações da Cruz uma corrida de cavalos na tarde do dia 27 de setembro.

Pessoas e quadrúpedes juntam-se na colina sobre uma área plana e relvada. As meninas – mais que os rapazes – põem as roupas tradicionais e as tiaras, gargantilhas e brincos de missangas. As montadas são engalanadas com arreios de couro ricamente decorados onde predomina o encarnado. Os ginetes também se vestem de festa. Há grande excitação no ar!

Os anciãos delimitam a pista da corrida no prado verde com ramos de árvores. Os cavaleiros desafiam-se dois a dois para ver quem faz o percurso mais rápido.

Polícias e milicianos mantêm o espaço da corrida desimpedido à força de vergastadas para afastar a pequenada excitada.

Este ano a corrida acabou mal começou. Um cavalo, depois da volta de aquecimento, caiu, esperneou-se e morreu ali à frente de todos. 

A culpa, pelo que escutei, foi do ancião que, de manhã, tinha benzido a pista da corrida. Era voz corrente que ele não tinha balli (poder) para o fazer e, por isso, a montada morreu!

Quando deixei o lugar – porque o horizonte negro prometia borrasca a sério, que veio quando cheguei a casa – os mais velhos continuavam a discutir o insólito facto e a ponderar a causa.

Também falavam em coletar dez birr, o equivalente a menos de dez cêntimos do euro na moeda nacional, a cada participante com dinheiro no bolso para compensar o dono pela perda do equídeo.

17 de setembro de 2024

OS DESAFIOS DA POLIGAMIA

Relatório de Síntese da primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre «Uma Igreja Sinodal em Missão» deixou uma tarefa específica ao Simpósio das Conferências Episcopais de África e Madagáscar (SECAM na sigla em inglês), encorajando-o «a promover um discernimento teológico e pastoral sobre o tema da poligamia e sobre o acompanhamento das pessoas que vivem em uniões poligâmicas, que se aproximam da fé.»

O portal aciafrica.org, da Associação para a Informação Católica em África, que acompanha de perto o dia-a-dia da Igreja Católica no continente, reportou duas respostas à tarefa. Em dezembro, a IMBISA, organização que engloba as conferências episcopais de nove países da África Austral, pediu aos teólogos para iluminarem as práticas da iniciação e da poligamia. A resposta da SECAM veio em abril com o estabelecimento de uma comissão (de teólogos, na maioria) para refletir sobre o a proposta do Sínodo. As deliberações seriam apresentadas na assembleia plenária do organismo continental, agendada para julho no Ruanda. 

São João Paulo II deixou o mesmo convite aos bispos africanos depois do primeiro Sínodo sobre a Igreja em África. Dom Armido Gasparini, o então bispo de Hawassa, no sul da Etiópia, contou-me, frustrado, que tentou introduzir a questão numa reunião da Conferência Episcopal. Contudo, o arcebispo de Adis-Abeba, o cardeal Paulos Tzadua, cortou a discussão pela raiz, afirmando de que na Etiópia não havia poligamia. Que entre os amaras e os tigrinos não haja poligamia é possível; estas etnias foram evangelizadas há séculos. No Sul, entre os povos que foram anexados à Etiópia no fim do século XIX, a situação é bem diferente. A título de exemplo, na missão de Qillenso, onde sirvo, dois católicos têm famílias numerosas: o senhor Borama tem 32 filhos de três esposas enquanto o senhor Elema tem 27 filhos de cinco. No passado, perdemos um número de bons catequistas por terem entrado em uniões matrimoniais adicionais.

 

UMA QUESTÃO COMPLEXA

A questão da poligamia é uma matéria complexa de tratar. Envolve antropologia, sociologia, cultura, tradição e ética, entre outros aspetos. Na internet, há grandes discussões sobre o tema. Se o rei Salomão teve 700 esposas, porque temos de ter só uma? – perguntam alguns internautas.

Entre os gujis, com quem trabalho, nos anos 90 do século passado, era comum um homem por volta dos 30-40 anos tomar uma segunda ou mais esposas, dependendo da capacidade económica. Cada casamento pressupõe sempre o pagamento de um dote à família da noiva. A poligamia não é uma questão de perversão sexual, mas de prestígio pessoal e social. A importância de um homem na cultura guji é medida pelos filhos que tem e pelo gado que possui. Nós, os missionários, não temos filhos, mas temos algumas cabeças de gado.

A poligamia entre os gujis coloca alguns desafios concretos: normalmente o primeiro filho é aquele de quem o pai cuida, porque é o primogénito que lhe dá o nome. Quando nasce o primeiro filho o pai e a mãe deixam de ser chamados pelos nomes próprios para serem tratados por pai ou mãe do nome do filho nascido. Cada esposa tem a própria habitação e os outros rebentos ficam sob o cuidado das mães. O pai vai andando de casa em casa. As novas gerações são sensíveis a esta desigualdade de tratamento e, pelo que observo, a poligamia está em declínio entre os gujis.

 

REVISITAR AS ESCRITURAS

Segundo a prática católica, quando um homem polígamo pede para ser batizado depois da catequese do catecumenado, deve escolher uma esposa e despedir as outras. Para os gujis, a primeira esposa é sempre a mais importante. Mesmo que ela aceite que o marido pretenda uma mulher mais nova, se ela quiser voltar ele é obrigado a recebê-la.

Uma vez, em conversa com uma missionária luterana alemã, abordamos a prática da sua Igreja de batizar o marido polígamo com toda a família. Indaguei das bases para essa opção. Ela respondeu que, na primeira carta que Paulo escreveu ao seu colaborador Timóteo, o apóstolo dos gentios explica que a condição para ser bispo ou diácono é que «seja marido de uma só mulher». Este detalhe revela que, embora a comunidade cristã guardasse os ensinamentos de Jesus em relação ao matrimónio – união indissolúvel entre um homem e uma mulher para a vida –, admitia exceções. De facto, a exigência de ser marido de uma só mulher indicia que havia cristãos em uniões poligâmicas.

O acompanhamento pastoral das pessoas em uniões poligâmicas pede uma revisitação do Novo Testamento. Jesus é claro: «Desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e serão os dois um só. Portanto, já não são dois, mas um só. Pois o que Deus uniu não o separe o homem» (Marcos 10, 6-9). Os discípulos quando registaram tal exigência, reagiram dizendo que se é assim, não convém casar-se. 

Este é o princípio-base do matrimónio cristão: uma união monogâmica heterossexual para a vida. Contudo, a leitura atenta do Testamento cristão, revela que desde o princípio a Igreja admitiu exceções a este princípio radical. 

O evangelista Mateus afirma por duas vezes que o divórcio é possível no caso de porneia, palavra grega de significado amplo, traduzida por união ilegal, fornicação, imoralidade sexual, adultério para os ortodoxos (Mateus 5, 32, repetido em 19, 9). Paulo, escrevendo aos cristãos em Corinto, na Grécia, permite que se uma das partes de um casal gentio receber o batismo e a outra quiser abandonar a união, a parte cristã pode recasar (1 Coríntios 7, 12-15). Esta exceção é chamada de privilégio paulino. Vimos antes que, os candidatos a bispo e diácono deviam ser maridos de uma só mulher (1 Timóteo 3, 2. 12) o que pressupõe haver poligamia entre as comunidades cristãs.

Há que juntar a estas exceções o privilégio petrino, a faculdade do papa de dissolver um matrimónio em benefício da fé de uma das partes. No caso de uma união poligâmica, por exemplo, a Igreja considera válido só o primeiro casamento. Contudo, o privilégio petrino concede ao marido poligâmico escolher a esposa de entre as mulheres que tem.

 

ACOMPANHAMENTO DE UNIÕES POLIGÂMICAS

A poligamia é uma realidade transversal ao continente africano, do Cairo ao Cabo. Qual é o acompanhamento possível das pessoas em uniões poligâmicas que se aproximam da fé? O SECAM prometeu apresentar uma reflexão teológica e pastoral em julho, mas não consegui encontrar nada.

A meu ver, e partindo da experiência de missionário entre uma etnia que pratica a poligamia, esta resposta tem de ser dada a nível teológico e a nível pastoral, com a mesma criatividade, justiça e licença da primeira comunidade cristã. Não pondo em causa os ensinamentos do Senhor sobre o matrimónio, admitiram algumas exceções. O importante é que a salvação de uma pessoa – de um polígamo que pede o batismo – não ponha em causa a salvação de terceiros (as esposas que tem de abandonar para ser batizado). Nalgumas culturas, a prostituição é o caminho possível para as mulheres abandonadas pelo marido.

Uma opção possível, é a prática pastoral que seguimos na missão de Haro Wato há duas ou três décadas: quando um homem polígamo terminava o catecumenado, o período de formação para receber o batismo, recebia um nome cristão e um crucifixo, mas só era batizado no fim da sua vida. Assim, acautelávamos o bem-estar de todas as suas esposas. Reconheço que se trata de uma meia-solução: o candidato polígamo é introduzido aos mistérios da fé, mas fica de fora da comunhão dos batizados. Outra opção pode ser a prática da Igreja Luterana de admitir no seu seio toda a família, administrando o batismo ao marido e a todas as esposas e os filhos que o desejem. Mas o discernimento pedido às conferências episcopais pode encontrar outras soluções que acautelam a dignidade de todas as pessoas envolvidas em uniões poligâmicas.