14 de janeiro de 2025

REFLEXOS DO DIVINO

Durante as férias de Natal, um casal de judeus messiânicos quis reencontrar-se com o grupo de beduínos a quem, a nosso convite, ofereceram um curso de hebraico. 

Os judeus messiânicos são judeus que acreditam em Jesus (Yeshua) como o Messias, combinando tradições judaicas e cristãs.  

Encontrámo-nos à tarde no jardim de infância da aldeia. 

– O que podemos levar às suas famílias para lhes dar um sentido de celebração, de Natal? – perguntaram-nos.

Os membros da comunidade messiânica organizaram-se para partilhar um presente de Natal com as famílias beduínas.

A prenda foi apenas um pretexto para o reencontro. O afeto mútuo e a proximidade que se criaram eram evidentes. Nos seus rostos, notava-se o prazer de ver os seus professores e de falar com eles em hebraico.  

Num ambiente fraterno, cerca de catorze beduínos árabes palestinianos, na sua maioria casados, partilham em hebraico as suas vidas: a dificuldade de encontrar trabalho depois da guerra, o número de filhos, e... os seus sonhos. 

Riam-se e surpreendiam-se uns aos outros ao ouvir esses sonhos, talvez verbalizados pela primeira vez: uma casa, um cavalo, um lugar seguro para viver, um lar feliz, a paz. 

O sonho do casal messiânico é que, através da aprendizagem de línguas, se construam caminhos de paz e compreensão.  

– És amiga da professora que fala hebraico, certo? O meu pai fala hebraico! – disse uma rapariga orgulhosa da escola que visitámos no dia seguinte. 

– Gostaste dos presentes? – perguntei-lhe. 

O seu rosto estava radiante com um grande sorriso que quase mostrava os queques, chocolates, doces e guloseimas que tinham recebido. 

– Obrigado, obrigado! – repetiu ele, sorrindo.  

Tal como aconteceu com Jesus, ficamos muitas vezes espantados com a sua grande fé e confiança em Deus. Apesar da incerteza, dos conflitos, da perda de terras, de casas e de direitos, encontram na sua fé uma âncora para resistir.

A resiliência destas comunidades beduínas ensina-nos que a esperança floresce em pequenas ações: um reencontro, um presente especial no Natal, um chá partilhado no frio do deserto, um sorriso perante a incerteza ou a aprendizagem de bordados ancestrais que preservam tradições e reforçam a identidade. 

Nestas ações simples, encontramos o rosto de um Deus próximo que caminha com a humanidade e a sua criação.

Através destes momentos, compreendemos que a solidariedade, o desejo de ligação e a dedicação à inclusão são reflexos profundos do Divino.

Ir Cecília Sierra

Comboniana no Deserto da Judeia

9 de janeiro de 2025

NATAL EM JANEIRO



Não, não são rosas em janeiro – que aqui também as há – mas é Natal! Os etíopes celebram o nascimento de Jesus no dia 7 de janeiro, a data do Natal ortodoxo. E porquê? Porque os ortodoxos não aceitaram o calendário gregoriano, obra do Papa Gregório XIII em 1582, e continuam a seguir o vetusto calendário juliano a contar desde 46 antes de Cristo.

Como se celebra o Natal católico na Etiópia? 

A preparação difere. Os católicos que seguem o Rito Etíope ou Alexandrino – das quatro dioceses do Norte chamadas eparquias – têm um advento de seis semanas com jejum obrigatório para padres e monges, mas que os leigos também seguem: até ao meio-dia (ou até às três da tarde) não comem nada; depois carne, ovos e produtos lácteos estão fora do menu. Os que seguem o Rito Latino, a maioria dos fiéis – oito dioceses chamadas vicariatos apostólicos e uma prefeitura – fazem as quatro semanas de preparação sobretudo com oração intensificada.

Eu celebrei o Natal na Igreja Paroquial, em Qillenso, e na capela de Chirra, a comunidade mais jovem da missão.

A igreja de Qillenso estava decorada com o presépio – as imagens vieram da Europa: a Etiópia tem uma grande tradição na produção de ícones e outras pinturas, mas é pobre na escultura – e com junco pelo chão. As pessoas trajaram de festa com os vestidos tradicionais guji (em que predomina o branco com motivos decorativos a negro e encarnado, as cores da bandeira oromo) ou com trajes nacionais: brancos com bordados multicolor. E com penteados a condizer!

A celebração estava marcada para as 9h00, mas as pessoas chegaram tarde. Eram 10h00 quando a missa começou. A energia dos cânticos e das orações encheu o templo! Senti uma paz enorme enquanto presidi à eucaristia que demorou hora e meia.

Depois, os miúdos vieram comigo a casa para receberem dois rebuçados cada um! É um costume que se repete cada domingo. Às vezes levam biscoitos. 

Na igreja, a celebração continuou com as prestações dos três coros paroquiais: das casadas, dos jovens com alguns adultos pelo meio e das adolescentes. Normalmente cada coro apresenta duas canções.

Eu estava atrasado e tive de correr para Chirra que fica a doze quilómetros de Qillenso, ao lado da estrada asfaltada. 

A comunidade tem cerca de quatro anos e reúne-se para rezar na cabana da família que vendeu o terreno para estabelecer a comunidade. Cada capela tem um campo para cultivo e auto-sustento. Querem uma capela, mas primeiro queremos reforçar a Igreja das pedras vivas!

A capela-cabana estava cheia como nunca com muitas crianças sentadas no junco que cobria o chão. Fitas de papel higiénico e balões decoravam o espaço.

Quando cheguei já iam na segunda leitura. É costume começar a celebração da Palavra quanto o padre se atrasa. 

Depois da oração dos fiéis benzi as camisolas que a comunidade mandou fazer para a ocasião com a frase «Para mim viver é Cristo» (Filipenses 1, 21) em guji estampada com uma cruz.

No final da Eucaristia, as crianças e os jovens vestiram as camisolas e o filho mais novo do catequista leu um poema alusivo à quadra que escreveu na tradição guji. Depois todos cantaram e pularam! E as 54 crianças e jovens receberam de presente um terço de plástico luminoso, que o Santuário de Fátima me ofereceu há dois anos.

Para terminar trouxeram dois grandes pães para serem partilhados por todos juntamente com copo de chá. Para o catequista, para alguns anciães e para mim havia também hititu, o iogurte local. A mesa da Eucaristia é mesa fraterna.

Quando cheguei a Qillenso já passava das 14h00, mas ainda havia gente no salão paroquial. No fim da missa e das atuações na igreja, houve pão e café para os graúdos e refrigerantes para os miúdos. 

Jesus, através do mistério da Encarnação, fez-nos filhos de Deus e irmãos uns dos outros. O Natal é a festa da fraternidade.

A celebração mudou-se para casa à volta do almoço melhorado onde não faltaria a tradicional galinha cozida num molho espesso e bem condimentado.

A comunidade comboniana de Qillenso festejou o seu Natal com a ceia. Comemos galinha com injera (o pão tradicional etíope em forma de panqueca gigante) regada com uma garrafa de vinho tinto etíope, oferta do ecónomo provincial. Para terminar, panetone – o «bolo-rei» italiano com um dedal de uísque (da mesma procedência) e pipocas, preparadas pela cozinheira.

Assim celebramos o Natal de 2017 de acordo com as contas etíopes.

Bom Natal!

26 de dezembro de 2024

BORDAR EM PONTO DE ESPERANÇA


Chegou radiante, com a sua pequena almofada bordada e cosida à mão. Mostrou-ma com orgulho: 

– Não é linda? Diz-me que está bonita!

Peguei na almofada bordada e examinei-a com atenção. 

Ao reparar na minha expressão de dúvida, acrescentou rapidamente:

– Bem, eu estou a aprender... Mas diz-me que estou a ir bem.

Ela é uma mulher beduína muito bonita. 

A sua filha acaba de casar com o filho da irmã.

É um costume beduíno comum de casamento entre parentes próximos.

– A almofadita está bem feita. Porém, não a podemos enviar para outro país com o enchimento que puseste! – expliquei-lhe. 

Ela não desanimou. Na aula seguinte, trouxe-a de volta, sem o enchimento.  

– Achas que a vão comprar? – pergunta com esperança no olhar.

– Vamos ver! – respondi-lhe, confiante de que alguém vá apreciar o seu esforço.

A almofadita é o seu primeiro trabalho no curso de bordado beduíno que iniciámos há três meses. 

É muito mais do que um objeto: é um símbolo de esperança no meio de uma realidade cada vez mais incerta e desafiante. 

A paz tarda em chegar, mas, entretanto, eles bordam, sonham e confiam.

Será que, ao ler esta mensagem, apreciaria o trabalho dela ou o das outras 160 mulheres que estão a aprender e a produzir com esperança? 

Cada ponto carrega consigo esforço, dedicação e confiança. Cada produto tem a sua história e é uma história de resiliência e esperança no meio do conflito.

 Ir. Cecília Sierra,

Missionária Comboniana entre beduínas no Deserto da Judeia

22 de dezembro de 2024

NATAL DE MISSIONÁRIOS PORTUGUESES EM ÁFRICA


 

“Temos de viver no essencial, e o essencial é Jesus”

No Sudão do Sul, maioritariamente cristão, ou na Etiópia, onde os católicos são apenas 1% da população, a quadra natalícia é vivida com grande devoção e alegria, apesar das dificuldades e do aumento da insegurança. É o testemunho deixado à Renascença por uma religiosa e um padre, ambos missionários combonianos.

O Natal cristão é celebrado em todos os cantos do mundo, e mesmo nos mais longínquos e improváveis encontramos missionários portugueses. É o caso do Sudão do Sul, o país mais jovem do mundo. “Estou aqui há cinco anos”, conta à Renascença a irmã Beta Almendra. Esta missionária comboniana diz que “a maioria dos sudaneses são cristãos”, mas que enfrentam graves problemas de sobrevivência.

“As maiores dificuldades deste país são básicas: educação, saúde, água, luz, estradas. São coisas que ainda estamos a sonhar tê-las com qualidade”, diz a missionária.

A irmã Beta Almendra dá como exemplo a situação a que chegaram os próprios funcionários públicos: “Só para imaginar, o governo não paga os salários há um ano! Portanto, quem é professor, quem trabalha no setor público, não recebe há um ano. Como é que se sobrevive? Com as organizações não governamentais, com a Igreja. Há muita, muita corrupção, porque todos estão a tentar ganhar alguma coisa extra para sobreviverem. Estamos com muitas dificuldades”

Apesar disso, garante que o Natal será vivido com alegria, e deixa uma mensagem de esperança.

“Vamos à missa, rezamos, comemos, dançamos, com crianças, adultos, com os coros das paróquias. Celebramos o Natal com muita fé, com muito amor e carinho, Jesus está no meio de nós. Ele vive e é Ele que nos dá esta esperança, de que 2025 vai ser melhor! A mensagem que deixo para todos é que realmente Jesus esteja no nosso coração. Tudo o resto é muito supérfluo, roupas, comida, viagens…. Temos que viver no essencial e o essencial é Jesus. É a nossa força, é a nossa paz, é a nossa liberdade. Feliz Natal!”.

 

Etiópia. Minoria cristã só celebra o Natal a 7 de janeiro

O padre José da Silva Vieira, também ele comboniano, já esteve em missão no Sudão do Sul. Antigo provincial em Portugal, onde esteve à frente da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP), há três anos voltou à Etiópia, onde já tinha sido missionário, entre 1993 e 2000. “Estou a trabalhar entre o povo Guji, no sul da Etiópia. É uma missão geograficamente muito extensa”.

No país vive-se alguma insegurança nesta altura. “Sim, há alguma insegurança na zona, à volta da cidade de Adola. Tivemos de fechar algumas capelas, devido aos combates intermitentes entre os soldados do governo e os rebeldes do Exército de Libertação. Esta insegurança não nos permite visitar essas zonas, e é pena, porque as pessoas ficam sem assistência dos missionários”.

O padre José Vieira conta que na Etiópia os cristãos são uma minoria. “A Igreja Católica é uma Igreja pequenina, não chegamos sequer a 1% da população. Seremos um milhão de católicos, num panorama de 120 ou 130 milhões de habitantes”.

Mas, apesar de ser pequena está dividida em dois ritos. “As quatro dioceses do Norte seguem o rito oriental etíope e têm uma maneira própria de preparar e viver o Natal. O Advento, para eles, tem seis semanas, durante as quais fazem jejum todos os dias. Não comem carne, produtos lácteos, ovos, está tudo fora do cardápio alimentar. No dia do Natal, que é a quebra do jejum, aí há uma grande festaque começa na igreja e depois continua nas casas com uma refeição, em que voltam a comer carne”.

A sul é tudo diferente. “Nós, nas oito dioceses do Sul, a que chamamos de vicariatos apostólicos, seguimos o rito latino vertido para as línguas locais. Temos quatro domingos do Advento, e depois, no dia do Natal, há uma Eucaristia celebrada com muita alegria. A igreja é decorada com balões, põe-se erva no chão como sinal de festa, e a Missa é comprida, bem cantada, bem rezada, bem dançada, como é costume aqui. As pessoas também vestem roupas novas, e a liturgia também continua em família, com um almoço melhorado”.

Este ano vai passar o Natal na comunidade da cidade. "Normalmente vou almoçar com as missionárias da caridade, as irmãs de Santa Teresa de Calcutá. São elas que nos dão o almoço e o jantar enquanto nós trabalhamos na cidade”, conta.

Na Etiópia seguem o calendário ortodoxo. “Só celebramos o Natal no dia 7 de janeiro, e não no dia 25 de dezembro, porque o calendário litúrgico que os católicos seguem na Etiópia é o calendário da Igreja Ortodoxa da Etiópia” explica. Mas assinalam com grande devoção o dia do batismo do Senhor.

“Há essa curiosidade: embora a celebração do Natal seja muito bonita e bem participada, em que a Igreja se enche de cor e alegria, a celebração maior na quadra natalícia é o Timkat (também conhecido como a Epifania etíope, em que se celebra o Batismo de Jesus no Rio Jordão, e que será assinalado a 19 de janeiro de 2025). “Aí é que realmente o Mistério da Encarnação do Senhor é celebrado extensivamente. A festa começa no dia anterior, dia 18, normalmente os ortodoxos celebram sempre durante a noite, como vigília. A Eucaristia acaba com uma grande bênção a toda a multidão, com água benta”.

“É outra das realidades que experimentamos na Etiópia, onde o Natal tem dois momentos, o momento do nascimento do Senhor e depois o momento do seu batismo e da sua manifestação como Salvador do mundo”, sublinha.

Para o padre José Vieira, o Natal “é uma quadra eminentemente missionária. Nós, os missionários, enquanto contemplamos o Mistério de Belém, contemplamos o mistério da nossa vocação. Como Jesus encarnou a nossa história, também nós somos chamados a encarnar a história, a cultura, o espaço em que manifestamos, através da nossa vida e através da pregação, o amor de Deus para com todos os povos. No meu caso, o povo Guji, no sul da Etiópia”.

Ângela Roque, Rádio Renascença

17 de dezembro de 2024

DEUS, MINHA MÃE


Por defeito profissional, quando leio um romance, procuro notar qual é a relação do autor com Deus. Valter Hugo Mãe, no seu Deus na escuridão – uma ficção que tem a Medeira como cenário – fala de Deus como mãe. Porque, como escreve Afonso Cruz em Flores, «Deus não é macho».

No décimo capítulo, que leva o título do livro, o autor escreve no primeiro parágrafo, que «Deus é certamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciam a presença, o regresso dos filhos». 

E prossegue: «Deus é exatamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez maior saudade. [...]. Deus, como as mães, corre os dias inteiros à janela e escuta. [...] A casa de Deus tem a chave do lado de fora, debaixo de um vaso. Toda a gente o sabe. É tique de todas as mães que dormem lá dentro vulneráveis q qualquer ladrão. [...] Exatamente como as mães, Deus cozinha os seus pratos favoritos e acredita que agora ficarão para sempre.»

Esta ideia de Deus como mãe não é estranha à Bíblia. Devido à nossa cultura, desenvolvemos muito o conceito de Deus-Pai e esquecemos o de Deus-Mãe. No livro do Deuteronómio lemos: «Desprezas a Rocha que te deu à luz, esqueces o Deus que te gerou» (Deuteronómio 31:18, na tradução da Bíblia de Jerusalém; a Bíblia dos Capuchinhos, traduz: «Desprezaste o Rochedo que te gerou, e esqueceste o Deus que te formou»).

O profeta Isaías também fala de Deus como mãe. No capítulo 49, Deus pergunta: «Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas?» E responde: «Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria!».

No último capítulo do livro, Deus promete: «Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei».

O povo guji, com quem vivo, partilha a mesma intuição. Começa as orações tradicionais invocando «Deus nosso Pai, Deus nossa Mãe, Deus nosso Avô, Deus nossa Avó, Deus nosso Bisavô, que nos deu à luz!»

Eu aprendi a rezar com eles, a invocar Deus por. novos nomes. A missão é circular: evangelizamos e somos evangelizados. Anunciamos Deus e aprendemos novas formas de dizer Deus. 

Tomas Halik, teólogo checo que, juntamente com José Tolentino Mendonça, me inspira, escreve em O sonho de uma nova manhã, o seu livro mais recente, que «a evangelização sob a forma de inculturação pressupõe [...] também a disponibilidade para compreender a nossa própria fé de uma nova e mais profunda forma, num novo contexto cultural». O sublinhado é dele.

Voltando ao Deus na escuridão, Valter Hugo Mãe apresenta uma definição de oração interessante: rezamos para dizer a Deus aonde estamos. 

As rezas são uma espécie do transmissor que identifica os aviões e marcam a sua posição no céu: «Se Deus pudesse, escreveria a cada filho uma carta de amor para o convencer a vir em visita. Mas o paradeiro do filho só se descortina pela prece. Sem isso, Deus guarda as cartas que escreve sem ter para onde as enviar. Espera. No que à visão de seus filhos se refere, Deus espera na escuridão. Seu candeeiro é Seu nome na boca do filho.» 

Genial!

10 de dezembro de 2024

CELEBRAR A PADROEIRA





Qillenso – a missão entre o povo guji da Etiópia onde sirvo – foi estabelecida oficialmente em 1981, dedicada à Senhora das Dores. Entretanto, a festa da padroeira passou a ser comemorada a 8 de dezembro, Senhora da Imaculada Conceição. 

Oficialmente a paróquia continua dedicada à Senhora das Dores. Porém, a data da solenidade foi mudada por duas razões. 

Primeiro, setembro e outubro são, aqui, o ponto alto da estação das chuvas. Quando chove, chove mesmo e estorva a organização e as deslocações.

Depois, em setembro os produtos agrícolas – milho, café, repolho, cereais – estão a crescer. Em dezembro, em plena estação seca o tempo das colheitas dá muito mais de comer e dinheiro para comprar.

A festa deste ano celebrou-se no domingo, dia 8, mas os preparativos começaram nos dias anteriores. Os jovens ensaiaram a dramatização da parábola do filho pródigo e os coros deram lustro às atuações.

Na sexta, um grupo de mulheres lavou o chão e as cortinas da igreja. 

No sábado, as adolescentes assearam o templo depois da reunião semanal. 

Algumas mulheres, ajudadas pelo catequista Mi’essa e por um dos anciãos da comunidade, estiveram até às duas da manhã a migar couves e repolhos, a raspar cenoiras e a cozer pão – bolos de trigo de um palmo de diâmetro e dois dedos de altura – para o almoço da festa. Devido a um apagão de mais de 24 horas, as mulheres trabalhavam de pilhas amarradas à cabeça.

Para a festa paroquial, participaram representantes de quatro das cinco capelas do centro. De Gosa, a 35 quilómetros mais a norte, não é fácil arranjar transporte ao domingo. As Missionárias da Caridade, as Irmãs de Santa Teresa de Calcutá, também marcaram presença com um grupo de jovens de Adola, o centro citadino da missão.

A igreja, que é pequena, estava à pinha, com as crianças sentadas nos degraus do altar e o corredor central e outros espaços com bancos e cadeiras extra. Estava decorada com bandeirinhas no exterior e balões e ervas de junco no interior.

A missa estava marcada para as 9h30. Porém, começou uma hora depois. Como é uso, foi bem participada, cantada e dançada. Coube-me presidir, ladeado pelo pároco e pelo seminarista que vive connosco, os catequistas da zona e os acólitos.

Depois da eucaristia – que demorou mais de duas horas – os jovens apresentaram a encenação inculturada da parábola da misericórdia. A assembleia seguiu o drama muito atenta e gozosa!

Os coros atuaram depois: os três de Qillenso (mulheres casadas dirigidas por Mi’essa, jovens com alguns adultos penetras e adolescentes) e os das capelas. Todos trajados a preceito. Entre atuações foram leiloados os produtos levados para o ofertório: milho, café, manteiga, uma galinha...

Já passava das 15h00 quando fomos para o salão paroquial para o almoço. Um momento sempre alegre. A ementa foi simples, mas nutritiva: um bolo de pão com um prato de vegetais cozidos. A comida estava saborosa.

Depois veio o grande desafio de futebol entre a equipa de Qillenso e a seleção do resto das capelas. Um jogo bem disputado e aferroado: os da casa levaram os hóspedes de vencida. E também houve alguma briga de permeio. É costume!

Assim se celebrou a Senhora das Dores no dia da Senhora da Imaculada Conceição de Qillenso com uma mensagem fundamental: «Temos mãe!». A declaração que o papa Francisco repetiu, emocionado, em Fátima há sete anos e meio, durante a eucaristia do centenário das aparições. Ainda ressoa dentro de mim.

 

2 de dezembro de 2024

AZUL DO CÉU

Hoje o pintor encheu de anil
o céu por cima de mim.
Sem fiapo de nuvem

nem grão de poeira.
Um azul que envolve 
e devolve,
e enche o olhar de paz
e o coração!
Um céu que leva
para além dele,
atrás do horizonte:
cor de infinito 
sobre tela breve.
Este azul celeste,
da mana-saudade,
que também é dele,
fundo, altaneiro,
regressa-me ao dia primeiro 
quando a Voz criadora anelou:
"Faça-se luz!"
A luz? 
Azul anilado,
índigo!