23 de janeiro de 2025

DA TERRA DAS ORIGENS


Cheguei à Etiópia pela primeira vez há trinta e um anos. Nessa altura, o país apresentava-se aos visitantes como a pátria de «Treze meses de sol». A frase publicitária jogava com o facto de o ano etíope ter treze meses: doze de trinta dias e um de cinco (ou seis, se o ano universal for bissexto) para acertar as contas com o calendário solar.

Agora, a saudação transformou-se. «Bem-vindos à Terra das origens!», dizem. O novo chavão prende-se com o facto de na Etiópia se ter encontrado há precisamente meio século o esqueleto humanóide fossilizado mais antigo e completo à data. Pertencia a uma fêmea, baptizada de Dinkenesh – Lúcia em amárico, a Eva dos paleoantropólogos. Don Johanson, o paleontologista norte-americano que encontrou os fósseis, contou à CNN que nessa noite estavam a ouvir a canção «Lucy and the Sky with Diamonds» dos Beatles e alguém sugeriu chamar Lucy ao achado. O nome pegou!

O fóssil do antepassado entre o símio e o humano tem cerca de 3,2 milhões de anos e veio revolucionar a percepção da evolução: antes pensava-se que os nossos antepassados na cadeia da evolução ainda eram quadrúpedes (caminhavam com pés e mãos), mas Dinkenesh é definitivamente bípede. Mede cerca de um metro de altura e pertence à nova espécie Australopitecus afarensis (de Afar, a região onde foi encontrada, uma das áreas mais baixas e quentes do globo). Uma cópia dos quarenta e sete ossos encontrados encontra-se exposta na Museu da Universidade de Adis-Abeba. Entretanto, na mesma região, e dez anos depois, foram encontrados os restos de humanóides com mais de 4,5 milhões de anos, catalogados com o nome de Ardipithecus ramidus. A Etiópia é, de facto, a terra das nossas origens, um paraíso na Terra.

Viver na Abissínia é uma experiência humana e religiosa única. Regressei ao país há três anos e encontrei-o profundamente transformado. Duas décadas de grande progresso e industrialização levaram a electricidade e a rede móvel até aos seus recantos, o asfalto é carpete negra estendida por todo o país, o ensino superior foi democratizado. Os Etíopes vivem melhor e a população duplicou, de 63 para 126,5 milhões (os dados são do Banco Mundial).

14 de janeiro de 2025

REFLEXOS DO DIVINO

Durante as férias de Natal, um casal de judeus messiânicos quis reencontrar-se com o grupo de beduínos a quem, a nosso convite, ofereceram um curso de hebraico. 

Os judeus messiânicos são judeus que acreditam em Jesus (Yeshua) como o Messias, combinando tradições judaicas e cristãs.  

Encontrámo-nos à tarde no jardim de infância da aldeia. 

– O que podemos levar às suas famílias para lhes dar um sentido de celebração, de Natal? – perguntaram-nos.

Os membros da comunidade messiânica organizaram-se para partilhar um presente de Natal com as famílias beduínas.

A prenda foi apenas um pretexto para o reencontro. O afeto mútuo e a proximidade que se criaram eram evidentes. Nos seus rostos, notava-se o prazer de ver os seus professores e de falar com eles em hebraico.  

Num ambiente fraterno, cerca de catorze beduínos árabes palestinianos, na sua maioria casados, partilham em hebraico as suas vidas: a dificuldade de encontrar trabalho depois da guerra, o número de filhos, e... os seus sonhos. 

Riam-se e surpreendiam-se uns aos outros ao ouvir esses sonhos, talvez verbalizados pela primeira vez: uma casa, um cavalo, um lugar seguro para viver, um lar feliz, a paz. 

O sonho do casal messiânico é que, através da aprendizagem de línguas, se construam caminhos de paz e compreensão.  

– És amiga da professora que fala hebraico, certo? O meu pai fala hebraico! – disse uma rapariga orgulhosa da escola que visitámos no dia seguinte. 

– Gostaste dos presentes? – perguntei-lhe. 

O seu rosto estava radiante com um grande sorriso que quase mostrava os queques, chocolates, doces e guloseimas que tinham recebido. 

– Obrigado, obrigado! – repetiu ele, sorrindo.  

Tal como aconteceu com Jesus, ficamos muitas vezes espantados com a sua grande fé e confiança em Deus. Apesar da incerteza, dos conflitos, da perda de terras, de casas e de direitos, encontram na sua fé uma âncora para resistir.

A resiliência destas comunidades beduínas ensina-nos que a esperança floresce em pequenas ações: um reencontro, um presente especial no Natal, um chá partilhado no frio do deserto, um sorriso perante a incerteza ou a aprendizagem de bordados ancestrais que preservam tradições e reforçam a identidade. 

Nestas ações simples, encontramos o rosto de um Deus próximo que caminha com a humanidade e a sua criação.

Através destes momentos, compreendemos que a solidariedade, o desejo de ligação e a dedicação à inclusão são reflexos profundos do Divino.

Ir Cecília Sierra

Comboniana no Deserto da Judeia

9 de janeiro de 2025

NATAL EM JANEIRO



Não, não são rosas em janeiro – que aqui também as há – mas é Natal! Os etíopes celebram o nascimento de Jesus no dia 7 de janeiro, a data do Natal ortodoxo. E porquê? Porque os ortodoxos não aceitaram o calendário gregoriano, obra do Papa Gregório XIII em 1582, e continuam a seguir o vetusto calendário juliano a contar desde 46 antes de Cristo.

Como se celebra o Natal católico na Etiópia? 

A preparação difere. Os católicos que seguem o Rito Etíope ou Alexandrino – das quatro dioceses do Norte chamadas eparquias – têm um advento de seis semanas com jejum obrigatório para padres e monges, mas que os leigos também seguem: até ao meio-dia (ou até às três da tarde) não comem nada; depois carne, ovos e produtos lácteos estão fora do menu. Os que seguem o Rito Latino, a maioria dos fiéis – oito dioceses chamadas vicariatos apostólicos e uma prefeitura – fazem as quatro semanas de preparação sobretudo com oração intensificada.

Eu celebrei o Natal na Igreja Paroquial, em Qillenso, e na capela de Chirra, a comunidade mais jovem da missão.

A igreja de Qillenso estava decorada com o presépio – as imagens vieram da Europa: a Etiópia tem uma grande tradição na produção de ícones e outras pinturas, mas é pobre na escultura – e com junco pelo chão. As pessoas trajaram de festa com os vestidos tradicionais guji (em que predomina o branco com motivos decorativos a negro e encarnado, as cores da bandeira oromo) ou com trajes nacionais: brancos com bordados multicolor. E com penteados a condizer!

A celebração estava marcada para as 9h00, mas as pessoas chegaram tarde. Eram 10h00 quando a missa começou. A energia dos cânticos e das orações encheu o templo! Senti uma paz enorme enquanto presidi à eucaristia que demorou hora e meia.

Depois, os miúdos vieram comigo a casa para receberem dois rebuçados cada um! É um costume que se repete cada domingo. Às vezes levam biscoitos. 

Na igreja, a celebração continuou com as prestações dos três coros paroquiais: das casadas, dos jovens com alguns adultos pelo meio e das adolescentes. Normalmente cada coro apresenta duas canções.

Eu estava atrasado e tive de correr para Chirra que fica a doze quilómetros de Qillenso, ao lado da estrada asfaltada. 

A comunidade tem cerca de quatro anos e reúne-se para rezar na cabana da família que vendeu o terreno para estabelecer a comunidade. Cada capela tem um campo para cultivo e auto-sustento. Querem uma capela, mas primeiro queremos reforçar a Igreja das pedras vivas!

A capela-cabana estava cheia como nunca com muitas crianças sentadas no junco que cobria o chão. Fitas de papel higiénico e balões decoravam o espaço.

Quando cheguei já iam na segunda leitura. É costume começar a celebração da Palavra quanto o padre se atrasa. 

Depois da oração dos fiéis benzi as camisolas que a comunidade mandou fazer para a ocasião com a frase «Para mim viver é Cristo» (Filipenses 1, 21) em guji estampada com uma cruz.

No final da Eucaristia, as crianças e os jovens vestiram as camisolas e o filho mais novo do catequista leu um poema alusivo à quadra que escreveu na tradição guji. Depois todos cantaram e pularam! E as 54 crianças e jovens receberam de presente um terço de plástico luminoso, que o Santuário de Fátima me ofereceu há dois anos.

Para terminar trouxeram dois grandes pães para serem partilhados por todos juntamente com copo de chá. Para o catequista, para alguns anciães e para mim havia também hititu, o iogurte local. A mesa da Eucaristia é mesa fraterna.

Quando cheguei a Qillenso já passava das 14h00, mas ainda havia gente no salão paroquial. No fim da missa e das atuações na igreja, houve pão e café para os graúdos e refrigerantes para os miúdos. 

Jesus, através do mistério da Encarnação, fez-nos filhos de Deus e irmãos uns dos outros. O Natal é a festa da fraternidade.

A celebração mudou-se para casa à volta do almoço melhorado onde não faltaria a tradicional galinha cozida num molho espesso e bem condimentado.

A comunidade comboniana de Qillenso festejou o seu Natal com a ceia. Comemos galinha com injera (o pão tradicional etíope em forma de panqueca gigante) regada com uma garrafa de vinho tinto etíope, oferta do ecónomo provincial. Para terminar, panetone – o «bolo-rei» italiano com um dedal de uísque (da mesma procedência) e pipocas, preparadas pela cozinheira.

Assim celebramos o Natal de 2017 de acordo com as contas etíopes.

Bom Natal!