LUGARES DO (O)CULTO
Fascinam-me certos lugares de culto entregues ao abandono. Igrejas em ruínas, por exemplo. Uma vez, na Ilha de Moçambique, entrei numa igreja que me pareceu abandonada e encontrei uma velha senhora a varrer o chão. A igreja tinha apenas alguns bancos meio estropiados e, a um dos cantos, uma imagem, em plástico, da Virgem Maria. Porém, estava limpíssima. As paredes exultavam de branco.
A senhora olhou-me sem surpresa:
- Vem rezar?
Disse-lhe a verdade. Não rezo há muito tempo. Uma manhã acordei e descobri que perdera a fé. Nunca mais rezei. Ela pousou a vassoura e sentou-se num dos bancos. Fez um gesto com a mão, convidando-me a ocupar um outro, com apenas três pernas, diante dela:
- Você é feliz?
Pensei um pouco. Não se vive dentro da felicidade. A felicidade é um jardim que quase sempre atravessamos distraídos. Mais tarde ele vem-nos à memória e isso traz-nos um sorriso nos lábios. A lembrança de um jardim não é um jardim, mas cheira bem. Respondi-lhe com outra pergunta:
- A senhora acha realmente que se eu tivesse fé seria mais feliz?
- Não. Acho que se sente feliz é porque não perdeu a fé.
Ficámos a conversar , esquecidas do tempo, até que a luz principiou a esmorecer. A mulher não era católica. Nem sequer cristã. Crescera e fora educada como muçulmana. A revelação espantou-me. O meu espanto, esse, quase a indignou: por que se preocupava ela, sendo muçulmana, com uma velha igreja que os próprios católicos haviam esquecido?
- Essa agora, menina! Só há um Deus. Tem muitos nomes mas é sempre o mesmo.
Penso muito naquela mulher. Penso nela, evidentemente, enquanto escuto o rumor surdo da loucura e da estupidez a galgar as escadas do mundo.
A fé é um assunto demasiado íntimo, e também demasiado sério, para que o devêssemos deixar cair nas mãos dos políticos. Alguém confiaria a gestão da sua vida amorosa a George Bush ou a Condoleezza Rice?
Aliás, alguém confiaria a gestão do que quer que fosse a uma pessoa chamada Condoleezza?
Infelizmente, sim.
Mas não devia ser assim. Não sou tão radical quanto José Saramago, que defende o fim das religiões, ou seja, a morte de Deus, como única forma de alcançar a paz mundial; o que defendo – mesmo conhecendo a dificuldade de tal proposta – é o completo afastamento entre a coisa pública e a coisa íntima, o que inclui as diferentes formas de cada qual se relacionar com o mistério.
Não combato por um mundo sem Deus, mas por um mundo onde as pessoas não façam política em nome Dele.
Fascinam-me certos lugares de culto entregues ao abandono. Igrejas em ruínas, por exemplo. Uma vez, na Ilha de Moçambique, entrei numa igreja que me pareceu abandonada e encontrei uma velha senhora a varrer o chão. A igreja tinha apenas alguns bancos meio estropiados e, a um dos cantos, uma imagem, em plástico, da Virgem Maria. Porém, estava limpíssima. As paredes exultavam de branco.
A senhora olhou-me sem surpresa:
- Vem rezar?
Disse-lhe a verdade. Não rezo há muito tempo. Uma manhã acordei e descobri que perdera a fé. Nunca mais rezei. Ela pousou a vassoura e sentou-se num dos bancos. Fez um gesto com a mão, convidando-me a ocupar um outro, com apenas três pernas, diante dela:
- Você é feliz?
Pensei um pouco. Não se vive dentro da felicidade. A felicidade é um jardim que quase sempre atravessamos distraídos. Mais tarde ele vem-nos à memória e isso traz-nos um sorriso nos lábios. A lembrança de um jardim não é um jardim, mas cheira bem. Respondi-lhe com outra pergunta:
- A senhora acha realmente que se eu tivesse fé seria mais feliz?
- Não. Acho que se sente feliz é porque não perdeu a fé.
Ficámos a conversar , esquecidas do tempo, até que a luz principiou a esmorecer. A mulher não era católica. Nem sequer cristã. Crescera e fora educada como muçulmana. A revelação espantou-me. O meu espanto, esse, quase a indignou: por que se preocupava ela, sendo muçulmana, com uma velha igreja que os próprios católicos haviam esquecido?
- Essa agora, menina! Só há um Deus. Tem muitos nomes mas é sempre o mesmo.
Penso muito naquela mulher. Penso nela, evidentemente, enquanto escuto o rumor surdo da loucura e da estupidez a galgar as escadas do mundo.
A fé é um assunto demasiado íntimo, e também demasiado sério, para que o devêssemos deixar cair nas mãos dos políticos. Alguém confiaria a gestão da sua vida amorosa a George Bush ou a Condoleezza Rice?
Aliás, alguém confiaria a gestão do que quer que fosse a uma pessoa chamada Condoleezza?
Infelizmente, sim.
Mas não devia ser assim. Não sou tão radical quanto José Saramago, que defende o fim das religiões, ou seja, a morte de Deus, como única forma de alcançar a paz mundial; o que defendo – mesmo conhecendo a dificuldade de tal proposta – é o completo afastamento entre a coisa pública e a coisa íntima, o que inclui as diferentes formas de cada qual se relacionar com o mistério.
Não combato por um mundo sem Deus, mas por um mundo onde as pessoas não façam política em nome Dele.
Faíza Hayat em «XIS»
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