31 de janeiro de 2020

«CONSAGRADOS PARA EVANGELIZAR»


SEMANA DO CONSAGRADO – 2020
MENSAGEM

Consagrados para evangelizar, o lema escolhido para a Semana do Consagrado de 2020, aponta para a principal razão de ser de cada Instituto, Congregação ou Sociedade de Vida Apostólica. A Igreja, na sua pluralidade de expressões, existe para evangelizar na fidelidade ao mandato de Jesus Cristo e às inspirações do Espírito Santo.

Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco convida os cristãos para uma nova etapa evangelizadora. Esta prioridade da vida da Igreja, para ser concretizada de modo eficaz, precisa de se revestir de alegria e de novidade. A alegria irradiada por quem se reconhece salvo, amado e escolhido por Deus. A novidade que acontece «sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho», condição para que possam despontar «novas estradas, métodos criativos, formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de significado para o mundo atual» (EG, 11).

As várias formas de Vida Consagrada têm um contributo específico e decisivo a dar neste processo evangelizador. Tal como sucedeu nas grandes vagas da evangelização, em que foi essencial o papel das comunidades monásticas, das ordens e dos institutos missionários, também agora, essas e outras formas de consagração se revestem de grande importância. A especificidade do contributo dos consagrados e consagradas para a evangelização «consiste, primariamente, no testemunho de uma vida totalmente entregue a Deus e aos irmãos (…) Ela mostra eloquentemente que quanto mais se vive de Cristo, tanto mais se pode servi-Lo nos outros, aventurando-se até aos postos da vanguarda da missão e abraçando os maiores riscos» (VC, 76).

A missão evangelizadora de cada consagrado, assumida segundo o projeto da própria congregação ou instituto e em diálogo e comunhão com outras realidades eclesiais, é verdadeiramente profética. Ela assenta no testemunho de uma vida centrada em Deus, confirmada na radicalidade do seguimento de Jesus e no serviço à Igreja. O próprio estilo de vida comunitário e a vivência da pobreza, castidade e obediência são sinais proféticos que interpelam o mundo e disponibilizam para a missão.

A Vida Consagrada é um dos maiores tesouros da vida da Igreja. As suas variadas expressões são prova de que, ao longo dos séculos, homens e mulheres crentes, iluminados pelo Espírito e cheios do fogo do amor Deus, souberam encontrar instrumentos adequados para a evangelização. No nosso tempo é necessário o discernimento para perceber o que Deus pede a cada pessoa e instituição. Um discernimento que inclui a escuta da Palavra de Deus, a docilidade ao Espírito e a capacidade de ler e interpretar os sinais dos tempos. Mesmo que a realidade de hoje se afigure complexa, os desafios imensos e os meios limitados, nenhuma destas circunstâncias dispensa que a motivação evangelizadora seja o grande objetivo de todas as opções.

A Semana do Consagrado é ocasião para conhecer melhor esta realidade tão rica e multiforme da vida da Igreja. É também oportunidade para reconhecer e valorizar o trabalho que os vários institutos e congregações desenvolvem ao serviço da sociedade, nos mais variados domínios. Mas é sobretudo momento para dar graças a Deus pelo testemunho e dedicação dos consagrados e consagradas na ação evangelizadora da Igreja, e para pedir que o Senhor a todos renove no entusiasmo pela missão.

+António Augusto de Oliveira Azevedo
Presidente da Comissão Episcopal das Vocações e Ministérios

28 de janeiro de 2020

AUSCHWITZ NUNCA MAIS









Visitei o campo da morte
peregrino pesaroso,
penitente contrito
de coração aflito
no lugar da grande desumanização
dos dois lados do arame farpado,
dos dois lados do fuzil apontado.
Como eu, tantos outros,
novos e velhos
caminham cabisbaixos,
rostos crispados pela memória da morte
nas alamedas da sorte
entre blocos de desnorte,
dobrados pelas milhões de vidas ceifadas,
pelas almas penadas.
O trabalho liberta? A morte liberta?
Não! Só a Verdade nos faz livres
nos diz iguais.
Os óculos, os utensílios,
os cabelos expostos
recordam os milhões de irmãos que ali finaram
vítimas da tirania louca da raça pura.
Os fornos esfriaram
mas os espíritos dos corpos
reduzidos a fumo e cinza
pairam vivos na memória,
na consciência coletiva,
na história.
A carruagem dos animais,
queda, parada junto ao cais,
na paragem derradeira,
traiçoeira,
grita Auschwitz nunca mais.
Compungido, dobro a cabeça 
em silencioso respeito
neste campo santo,
lugar de pranto e de espanto,
porque eu sou vítima e algoz,
sou manso e sou feroz,
sou ternura e sou atroz.

23 de janeiro de 2020

ONDAS


As ondas deslizam, enrodilhadas,
sobre o chão líquido
da maré baixa.
Desenrolam-se com estrondo
contra a areia fina
que cicia com a carícia molhada.
Esse vai e vem telúrico
carrega-me a alma,
liga-me ao útero da vida
pelo cordão da brisa salgada.
As ondas devolvem à orla
despojos de náufragos,
conchas partidas que já foram lares,
troncos e ramos de árvores passadas,
restos do lixo
despejado no grande cesto salgado,
detritos de sonhos desfeitos
contra as escarpas da realidade.
Deus fala-me
através da paleta de cores vivas
do sol poente,
rodela de fogo quente
que mergulha, preguiçosa, no mar
sem se molhar
sem se diluir
para voltar a nascer.
Ondas do meu contentamento
levai-me no vento
para lá do horizonte,
até à minha Fonte.

8 de janeiro de 2020

A VIDA É BELA, MAS CURTA


"Estou totalmente imobilizado, mas sinto e vivo uma plenitude de mente e coração e sonho uma realização que antes desconhecia. Esta cadeira de rodas tornou-se para mim o melhor púlpito.”

O ano de 2010 marca uma mudança na vocação e missão do padre Manuel João Pereira Correia, missionário comboniano natural de Penajoia, Lamego. Ordenado sacerdote a 15 de agosto de 1978, ele vive os primeiros anos de sacerdócio na comunidade comboniana de Coimbra, dedicando-se à animação missionário e à pastoral juvenil. Em 1985 é destinado ao Togo, na África ocidental, onde trabalha até 1993, ano em que é chamado a Roma para coordenar a formação no instituto comboniano. Regressa ao Togo no ano de 2002 e é eleito superior provincial dos combonianos no Togo, Gana e Benim.

No fim do ano de 2010 vem a reviravolta inesperada, assim descrita por ele aos amigos: “No próximo dia 28 de dezembro deixarei o Togo e regressarei à Europa, sem saber o que me espera. A doença que me foi diagnosticada (esclerose lateral amiotrófica) segue o seu curso, levando-me com ela (de bom ou de mau grado!), convidando-me a um olhar diferente sobre a vida. Revisitando lugares e pessoas, a mente foge-me, por vezes, para o passado, recordando o que foi a primeira vez da minha chegada à missão como jovem missionário de 34 anos, cheio de sonhos e entusiasmo. Já lá vão quase 25 anos! Tudo então era novo para mim. Lancei-me de corpo, alma e coração, nesta aventura. As dificuldades iniciais de adaptação ao clima, o esforço para aprender a língua e os costumes, o empenho exigido pela nova cultura... não esmoreceram o meu entusiasmo. Hoje muita coisa mudou. Mudou a África, as suas gentes, o rosto da igreja e dos missionários... E mudei eu também, naturalmente!”

A mudança em ato vai afastá-lo para sempre da África. Ele interpreta-a como uma passagem de testemunho: “É grande sem dúvida a satisfação de ver outros recolherem a tocha do ideal missionário que animou a nossa existência, prontos a continuar agora a nossa tarefa. Mas regressar para ficar é sempre um momento doloroso para um missionário cuja pátria e vida é a missão.”

Olha para este regresso forçado à Europa como uma nova oportunidade e um recomeço, assim descrito aos amigos: “Regresso sereno, convencido que o Senhor continuará fiel à promessa que me fez: Eu estarei sempre contigo para dar sentido à tua vida! Regresso convencido que... o melhor está ainda para vir! Como o vinho do milagre de Jesus nas núpcias de Caná! Por isso termino a minha missão em África louvando o Senhor e acolhendo o seu convite a ... repartir de novo! Com o meu passo incerto, da doença, revejo-me criança a aprender a caminhar. Aonde me levará o caminho não sei. Mas sinto que Deus me convida à confiança, a abandonar-me nas Suas mãos.”

O caminho é determinado pela natureza da doença, que avança e lhe retira os movimentos, a começar pelos membros inferiores. O P. Manuel João é destinado a Roma, para fazer parte da equipa que coordena a formação permanente do instituto. Ele resiste ao percurso da doença, movimentando-se com muletas e cadeira de rodas, superando os prognósticos médicos. Mas em 2016 tem que deixar Roma para, como ele diz “ser transferido para uma comunidade onde possa ter uma assistência melhor” já que a sua “inseparável companheira, a ELA (esclerose lateral amiotrófica) não o deixa.” Vai para Verona para, nas suas palavras “responder a mais uma chamada de Deus a deixar as minhas seguranças e partir, mais uma vez, em missão. Trata-se da penúltima missão, já que a última ser-nos-á conferida no Paraíso. Disponho-me a vivê-la com o empenho e a generosidade dos trabalhadores da última hora da parábola evangélica.” Aos amigos, assegura: “Não parto sozinho, levo-vos no coração. Estou-vos agradecido pela amizade e oração, que me obtiveram o milagre da serenidade e da alegria, que me têm acompanhado na doença.”

No ano de 2018 outro momento de viragem marca o seu caminho, assim descrito aos amigos: “Há seis meses, tive uma crise respiratória, fui hospitalizado de urgência, durante quatro longas semanas, e foi-me feita a traqueotomia. Agora respiro ligado a uma máquina e é com dificuldade que consigo fazer-me compreender. De todos os modos, não perdi o bom humor e, apesar dos transtornos próprios da doença, estou bem! Encontro-me sereno, um dom que Deus me concede graças a vós. É verdade que me encontro sempre mais limitado no meu corpo, agora praticamente paralisado, mas não me falta o sorriso e a boa disposição, louvando a Deus cada dia pelo dom da vida. Não podendo usar os dedos para escrever, ou a voz para ditar, tive que aprender a usar o apontador ocular, isto é, estou a escrever-vos... com os olhos! Maravilhas da técnica!”

A esclerose lateral amiotrófica é uma doença neurológica, ao momento, incurável. Paulatinamente retira à pessoa os movimentos musculares, reduzindo o corpo a uma prisão do espírito. Mas o espírito voa e o coração continua a alargar-se á medida dos sonhos, confidencia o P. Manuel João: “Quem não sentiu renascer no seu coração a criança que continua a acreditar nos sonhos? O nosso coração é um poço inesgotável de desejos! Pena é que neles acreditemos apenas por alguns momentos.” É pelos sonhos e desejos que começamos esta nossa conversa, numa tarde de fim de verão, em Verona.


P- Costumas dizer que a vida é bela, mas é curta para realizar os nossos sonhos. Qual é a importância do sonho?

R- “Para mim, o sonho dá uma orientação, o sonho é algo que está diante de nós e nos faz crescer. É uma meta. Naturalmente, do ponto de vista humano, e também do ponto de vista da fé, o sonho é a vontade de crescer, de ir adiante, de não se contentar com a banalidade, de alimentar o desejo de crescer na aventura da vida. O sonho é, assim, um respiro de futuro.

Do ponto de vista humano, o sonho é um projeto, algo que nos colocamos diante como meta. Do ponto de vista da fé, há uma transformação porque o sonho é apelo de Deus, que nos chama a mudar de perspetiva, a passar do nosso projeto à sua promessa... Não sou eu que ponho diante de mim uma meta (com o meu sonho...); mas é Deus que pro-mete, põe diante de mim o seu projeto, o seu sonho. Eu passei a olhar para a minha doença e situação, como um projeto, uma promessa que Deus me pôs diante... A vocação missionária é sempre uma promessa de Deus.”

P- Para muitas pessoas a doença põe em crise a relação com Deus. Como te relacionas com Deus, no processo da tua doença?

R- “Deus concedeu-me a graça de aceitar esta prova, e com a aceitação, a graça da serenidade, que sempre me acompanha e que mantenho ao fim de cada dia. Mas claro, também me perguntava: porque é que isto aconteceu a mim? Mas também sempre me respondia: e porque é que não devia acontecer a ti? Porque é que acontece a outros e a ti não devia acontecer? Nesse sentido, percebi que não sou privilegiado, sou como todos os demais e também a mim aconteceu. Isto faz-me percorrer um caminho de comunhão e solidariedade com todos aqueles que sofrem, de uma maneira especial com os doentes da esclerose lateral amiotrófica.”

P- Tiveste um sonho missionário, na tua adolescência e juventude, um sonho cheio de ação. Como vives a vocação nesta situação de imobilidade?

R- “Às vezes vem-me de pensar no que podia fazer se não tivesse esta doença que me conduziu à imobilidade total. Mas eu penso que esta é a condição, este é o lugar, onde eu vivo a minha vocação missionária e que a minha vida é mais fecunda. Com esta doença estou num pequeno espaço, mas posso semear e viver com fecundidade apostólica. Deus pode fazer, e faz, coisas grandes mesmo neste pequeno espaço em que vivo. Experimento que, pequenas coisas que eu antes pouco valorizava, como a palavra, o sorriso, a serenidade, a capacidade de escuta e empatia... me surpreendem também a mim como meios de graça que Deus usa para tornar a minha vida fecunda. Esta cadeira de rodas tornou-se para mim o melhor púlpito.”

P- O que é que faz um missionário que nada pode fazer, além de pensar?

R- “Graças a Deus, a doença comigo foi muito benévola, porque apesar da minha situação de imobilidade posso continuar a ler e escrever através do computador. Ao início, pensei que a minha vida seria breve, olhando às estatísticas. Mas a verdade é que já superei a média e já vou quase em dez anos.

Foi uma surpresa, e nos primeiros anos pensei que tinha que aproveitar bem a vida, qualificar bem o meu tempo, com o desejo de pensar e aprofundar valores. O tempo permitiu-me revisitar o passado e transformar tudo ... como se fosse uma sementeira em que a semente semeada morre para dar fruto. Então a revisitação da minha vida foi ocasião para eu agradecer a Deus tudo o que eu pude fazer com a Sua ajuda ...”

P- O sonho e a realidade ... como é que se vê o mundo da altura de uma cadeira de rodas, o teu lugar de observação?

R- “Uma coisa que me acompanhou desde o início, certamente como graça, foi descobrir que toda a circunstância na vida pode ser uma oportunidade. Este pensar foi uma graça, a chave que me abriu a porta a uma vida motivada, especialmente nos primeiros anos da doença.

No início, a doença é como um muro que corta completamente todas as perspetivas de vida, os sonhos que se tinham, as realizações que se queriam fazer. A doença, de certo modo, cancela toda a promessa. Pouco a pouco entrou-me a convicção que, em qualquer circunstância, a vida oferece-nos sempre novas oportunidades. Talvez possa parecer que a doença nos rouba as possibilidades que sonhávamos. Mas a vida apresenta-nos outras possibilidades, oportunidades que, no final, se revelam muito mais fecundas.

Para mim, foi como se uma porta se abrisse neste muro negro, impenetrável, que era a doença ... um muro que à direita, à esquerda, por cima ou por baixo, parecia um obstáculo não superável. A descoberta desta porta, na obscuridade do muro, foi uma graça, a descoberta de um mundo de oportunidades que nunca tinha sonhado e que me permitiu olhar a vida de uma outra perspetiva, viver num horizonte cheio de surpresas.”

P- Podes voar com o espírito, mas no corpo estás dependente dos outros em tudo. Como vives esta dependência?

R- “Às vezes cansa-me um pouco esta situação. Mas ajuda-me muito o pensar que Jesus viveu trinta anos de vida escondida e só três de vida ativa. E o momento supremo da sua fecundidade apostólica foram os três dias da sua paixão e morte, quando ele se consignou, se abandonou nas mãos dos outros. Ao culminar a sua vida pública, o momento supremo e definitivo foram dias de passividade... que pode ser fecunda e mais eficaz que a atividade.

A vida do homem está cheia de atividade, orgulhamo-nos do que fazemos. Mas não podemos ignorar que é quando deixamos que Outro faça através de nós, que somos realmente fecundos, de uma fecundidade que nos ultrapassa. Na nossa passividade, ajudamos, também, os outros a crescer na sua capacidade de serviço e de amor.”

P- Felizmente consegues acompanhar a vida da Igreja e do mundo. Como é que vês a vida da igreja do nosso tempo, de modo particular a igreja missionária?

R- “A primeira palavra que me vem à mente é crise. Vivemos um momento de crise, incluso na vida missionária. Mas este momento é também uma nova oportunidade. Os tempos são ainda de obscuridade e de alguma confusão. Mas eu creio que esta crise, que é de purificação, será de regeneração, de primavera para a Igreja.”

P- O teu primeiro trabalho foi com os jovens. Os jovens parecem ter medo da doença, do sofrimento, do empenho de uma vocação para toda a vida, como a missionária... Como os vês?

R- “Nessa altura, a seguir à minha ordenação sacerdotal, eu era também jovem. Foi um tempo (os anos 70 do século passado) de muito entusiasmo. Eu acho que os jovens que encontrei nessa primeira experiência apostólica, se encontravam, de certo modo, numa situação diferente da atual. Jovens com entusiasmo, com garra, que sonhavam a transformação das suas vidas e da sociedade, que sentiam a fascinação da vocação missionária, embora com as debilidades e incertezas de todos os jovens, dúvidas que também eu tinha experimentado na minha vida e na minha história.

A situação atual é diferente: os jovens vivem num contexto social, das redes sociais, mais individualista, amorfo e dispersivo, que não os ajuda a identificar-se com um projeto. A vida e a sociedade de hoje apresentam uma variedade infinita de possibilidades. Não se trata de projetos que se materializem... São possibilidades que permanecem ao nível de ilusões e os jovens não conseguem agarrar-se a um projeto concreto e perseguir um objetivo de vida.

Há uma grande dispersão e isso, junto à falta de uma perspetiva de fé, leva a que a vocação missionária, como qualquer outra vocação que implique um compromisso para toda a vida, se tornem, de certa maneira, projetos inconcebíveis. Eu creio que hoje só se pode colocar a proposta da vocação num contexto de fé, tanto a vocação missionária como a vocação ao matrimónio cristão.

Os jovens hoje têm medo do empenho, como nós também tínhamos... só que nós tínhamos mais pontos de referência, no entusiasmo e nas motivações da sociedade da igreja do nosso tempo. Os jovens que conheci em África vivem em contextos mais difíceis, e nesse sentido têm mais capacidade para abraçar o sofrimento e lutar.”

P- Sentes-te realizado, como pessoa, como sacerdote e missionário?

R- “No Evangelho, Jesus diz-nos que Deus nos visita de três maneiras.

Em primeiro lugar, como noivo / esposo das nossa vidas, aquele que realmente pode colmar a nossa sede de amor e felicidade. O bonito e desafiante da vida é viver na sua expectativa, prontos para O acolher como Amor da nossa vida.

Em segundo lugar, como senhor / patrão, que nos confia os dons da vida para os fazermos crescer e frutificar, para nossa felicidade e para a felicidade dos outros. É generoso connosco, mas vem para nos pedir contas. O desafio, e o bonito da vida, é vivermos com sentido de responsabilidade, com mãos abertas e operosas, para receber e compartir, acolher e fazer crescer os nossos dons.

Em terceiro lugar, o Senhor visita-nos como ladrão que nos pode surpreender e roubar-nos o que temos ou pensamos ter. Esta imagem sugere vigilância e acentua a surpresa da Sua vinda e sempre me provocou medo quando refletia sobre ela.

Com a doença, o Senhor visitou-me revestido de ladrão, que me foi roubando os movimentos, primeiro os membros inferiores, depois os superiores, os movimentos da cabeça... Mas Ele é bom e atua como bom ladrão, que tira uma coisa para deixar outra ainda maior. Desde o começo, tive o dom de aceitar a doença com serenidade e, pouco a pouco, descobrir que, se o Senhor me tirava alguma coisa, deixava-me outra maior; esvaziava-me de algo para me encher D’Ele mesmo, dos Seus dons. Agora estou totalmente imobilizado, mas sinto e vivo uma plenitude de mente e coração, de afeto e espírito, e sonho uma realização que antes desconhecia.”

Entrevista de: Manuel Augusto Lopes Ferreira, missionário comboniano

7 de janeiro de 2020

AREIAS PERIGOSAS


A extracção ilegal de inertes põe em perigo vidas e ecossistemas.

A areia pode ser um dos elementos mais humildes da Natureza, mas é, depois da água e antes dos combustíveis fósseis, o recurso natural com mais procura mundial. É usada da construção civil à alta tecnologia, na produção de ecrãs para telemóveis e chips para computadores. Tornou-se uma das mercadorias mais escassas e cobiçadas, sendo o terceiro negócio ilegal global mais lucrativo depois da indústria da pirataria e falsificação e do tráfico de drogas.

O crescimento das cidades e das infra-estruturas exige cada vez mais areia para a construção civil. A China e a Índia são os mercados mais vorazes.

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) denunciou que a extracção de areia dos leitos dos rios e dos fundos marinhos está a causar problemas ecológicos muito graves e deu origem a uma máfia que controla o comércio da sílica no Camboja, Vietname, Índia, Quénia e Serra Leoa.

«A escala do desafio relacionado com a extracção de areia e cascalho torna-o num dos maiores desafios de sustentabilidade do século XXI», revelou o PNUMA num relatório recente. O organismo calcula que o mercado consome por ano entre 40 e 50 mil milhões de toneladas de inertes com impactos ambientais gigantescos. A areia usada só em 2012 dava para construir um muro de 27 metros de largura por outros tantos de altura ao longo da linha do equador.

Com as minas esgotadas, a indústria tira a areia dos leitos dos rios e dos fundos marinhos. As praias de Marrocos, Quénia, Moçambique e África do Sul estão a ser afectadas pela extracção – muitas vezes ilegal – de areias para a construção local e para exportação.

A Espanha importa areia de Marrocos para refazer as praias das ilhas Canárias e uma empresa chinesa está a explorar areias em Nagonha, na costa moçambicana, exploração que, segundo a Amnistia Internacional, está a pôr em risco a subsistência da comunidade local.

No Quénia, a reconstrução dos mais de 600 quilómetros da ligação ferroviária entre a capital e Mombaça, e a extensão desse porto de mar, usou cinco milhões de toneladas de areias dragadas do fundo do oceano. A extracção põe em perigo as praias de Diani, um dos destinos turísticos mais frequentados no Sul do país, e o recife de coral da área, afectando ainda alguns locais de desova das tartarugas marinhas.

A extracção ilegal de areia nos vales de Durban, na África do Sul, está a pôr em perigo os rios locais, o abastecimento de água e a orla marítima de Golden Mile, uma das atracções turísticas mais famosas da zona. Pelo menos onze crianças morreram afogadas nos charcos deixados pelos escavadores de areia e há crianças a operar máquinas pesadas que, além de esventrarem os rios, deixam uma pegada de poluição forte.

Sem areia, não se pode construir. Infelizmente, a dos desertos é demasiado macia para ser usada no betão. Assim, é necessária uma política que regule a exploração sustentável da sílica com estudos de impacto ambiental e o recurso a fontes alternativas – incluindo a moagem de granito e a reciclagem de entulhos – para proteger ecossistemas, florestas, leitos dos rios e praias, que são o ganha-pão para muitas comunidades. O Uganda, que não tem mar, já tem legislação para preservar os ecossistemas da exploração da areia.