22 de fevereiro de 2024

PROVOCAÇÕES DO PAPA À MISSÃO NA ETIÓPIA


O Papa Francisco publicou a Exortação Apostólica Laudate Deum (LD) sobre a crise climática, dirigida a todas as pessoas de boa vontade, na festa de São Francisco de Assis, oito anos depois da inovadora Carta Encíclica Laudato si' (LS) sobre o cuidado da nossa casa comum.  

O ecoPapa regressa ao tema, porque o nosso «maltratado planeta» está a entrar em colapso e as alterações climáticas estão a causar estragos por todo o lado. O Papa explica:

«Já passaram oito anos desde a publicação da carta encíclica Laudato si’, quando quis partilhar com todos vós, irmãs e irmãos do nosso maltratado planeta, a minha profunda preocupação pelo cuidado da nossa casa comum. Mas, com o  passar do tempo, dou-me conta de que não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando dum ponto de rutura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida que o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e noutros âmbitos» (LD 2).

Que desafios a Laudate Deum coloca à missão comboniana na Etiópia? Retiro cinco provocações concretas da Exortação Apostólica.


1. Pequeno é importante: «Pequenas mudanças podem provocar alterações importantes» (LD 17).

Os católicos na Etiópia são, de facto, uma Igreja muito pequena, com menos de um milhão de fiéis (cerca de 0,8 por cento da população). A província dos Combonianos também é pequena: 24 missionários em oito comunidades e mais dois a caminho. A pequenez pode criar um complexo de inferioridade, levando-nos a escondermo-nos na nossa zona de conforto — as nossas missões — à margem da sociedade. 

No entanto, Jesus apresenta o Reino de Deus em termos de pequenez: um grão de mostarda, um pouco de fermento. Ele chama o seu pequeno rebanho para ser a luz, o sal e o fermento do mundo — três coisas que, em grandes quantidades, representam desastre seguro.

O Papa apela à Igreja Católica e aos Combonianos na Etiópia para que vivam a sua cidadania plena sem medo. A Igreja dá um grande contributo para a educação e a saúde. Deveria também ser uma voz profética líder para os que não têm voz em tempos de agitação ao longo de linhas de fratura étnicas a nível regional e nacional, especialmente em questões de Justiça, Paz e Integridade da Criação.


2. Humildade: «Repensamos a nós próprios para nos compreendermos de maneira mais humilde e mais rica» (LD 68).

Como Combonianos, passámos por uma grande mudança histórica, especialmente no Vicariato Apostólico de Hawassa: de fundadores com uma história missionária de grande sucesso, passámos a ser um grupo pequeno entre os seus muitos agentes pastorais. 

Comboni queria os seus missionários santos e capazes... e humildes (Escritos 6655). Para Comboni, a humildade é uma virtude fundamental para o serviço da missão, «fundamento de todas as virtudes» (Escritos 2814). 

Este processo de desempoderamento torna-nos participantes da própria kenosis de Jesus. A missão não é nossa. É missio Dei, missão de Deus. Somos humildes trabalhadores na vinha de Deus. Este processo de auto-esvaziamento deve também afetar a nossa relação com as pessoas que servimos e as suas culturas, tirando as sandálias do nosso etnocentrismo para decolonizar o serviço missionário.


3. Multilateralismo: «A globalização propicia intercâmbios culturais espontâneos, maior conhecimento mútuo e modalidades de integração dos povos que levarão a um multilateralismo “a partir de baixo” e não meramente decidido pelas elites do poder» (LD 38).

O multilateralismo é para a sociedade civil o que a ministerialidade é para a Igreja: um forte remédio para o elitismo e o clericalismo — onde os clérigos sabem tudo, fazem tudo e mandam em todos. Deve vir «a partir de baixo»: ao promover uma Igreja ministerial, temos de ouvir a comunidade cristã, dando-lhe poder e permitindo-lhe definir o próprio roteiro.


4. Transição energética: «Quanto à necessária transição para energias limpas, como a eólica, a solar e outras, abandonando os combustíveis fósseis, não se avança de forma suficientemente rápida» (LD 55).

O carbono é o principal agente da crise climática mundial. A transição energética para fontes renováveis é a única forma de a travar e inverter. Temos de reduzir a nossa pegada de carbono de duas formas: (1) preferindo a energia solar ao gasóleo para iluminar as nossas casas; (2) mantendo os nossos carros em bom estado de conservação, uma vez que não temos dinheiro para comprar veículos eléctricos ou novos. Outras medidas: programar viagens, partilhar carros e, sempre que possível, utilizar meios de transporte locais.


5. Percurso de reconciliação: «Convido cada um a acompanhar este percurso de reconciliação com o mundo que nos alberga e a enriquecê-lo com o próprio contributo, pois o nosso empenho tem a ver com a dignidade pessoal e com os grandes valores» (LD 69).

São muitas as escolhas que assinalam a nossa participação nesta reconciliação global. Entre elas distingo

  • optar por um estilo de vida simples, ecológica e economicamente sustentável para reduzir a pegada de carbono e contrariar o consumismo;
  • comer menos carne e mais proteínas de origem vegetal, porque as vacas contribuem para o aquecimento global através do metano que libertam;
  • comprar a granel ou em embalagens maiores e escolher embalagens de vidro, papel ou metal para reduzir a poluição causada pelo plástico;
  • reduzir os desperdícios e reciclar; 
  • comprar roupas em segunda mão nos mercados locais para contrariar a moda, que é responsável por dez por cento das emissões de carbono;
  • utilizar computadores, telemóveis e outros aparelhos até ao fim da sua vida útil, resistindo à tentação de mostrar o último modelo; 
  • manter as nossas casas reparadas, sem perdas de energia e de água
  • reflorestar os nossos terrenos com espécies autóctones, evitando o eucalipto. 

«Tudo concorre para o conjunto» (LD 70), afirma Francisco. Juntemos a nossa pequena parte para salvar o planeta e a nós próprios da catástrofe eminente que paira sobre a nossa casa comum.

12 de fevereiro de 2024

DEUS MENOR


No sorriso desdentado das crianças enxergo o rosto resplandecente de Deus.

Nos olhos traquinas e curiosos da pequenada  vejo o olhar translúcido de Deus.

No brincar despreocupado dos miúdos contemplo a força criativa de Deus.

No dormir tranquilo do bebé
adoro o descanso de Deus,
a sua eternidade.

Nos soluços esfomeados, doridos dos mais pequenos
sinto o Deus que sofre connosco.

Deus-connosco,
Emanuel.

10 de fevereiro de 2024

NA VIDA, NA MORTE, NO AMOR UNIDOS



Faz dois meses que os pais partiram: o Ti Amadeu depois do meio-dia de domingo, 10 de dezembro, a Ti Livina depois das 04h00 de segunda, 11.

Tinha falado com eles por vídeo-chamada na sexta-feira anterior e estavam tão bem. O pai recuperava de uma infecção no hospital de Penafiel e falou da alta iminente. Entretanto, A mãe foi levada para o São João, no Porto, no dia 9, para exames depois de uma queda em casa.

O coração do pai, depois de 89 anos de trabalhos e canseiras, entrou em falência. Conforme ele piorava em Penafiel a mãe — que não acusou nenhuma lesão da queda — começou a piorar de uma pneumonia que contraiu durante o breve internamento hospitalar. Parecia que, apesar da distância entre Penafiel e o Porto, os dois comunicavam entre si. Depois de 66 anos de casados nem a morte os separou. A mãe acabou transferida para Penafiel pouco antes de falecer.

Durante o velório e nos dias que se seguiram, muitas pessoas falaram da beleza deste amor, do lado romântico do seu finamento. Os meus amigos gujis, com quem partilho o diário viver no sul da Etiópia, também disseram o mesmo: casal enterrados juntos na mesma sepultura é sinal de um amor enorme.

A missa de corpo presente, presidida pelo senhor bispo de Lamego, o meu amigo D. António Couto, e animada pelo coro de cerca de três dezenas de padres do clero de Lamego e Guarda e do Instituto Comboniano a que pertenço, foi uma sentida homenagem aos pais por uma igreja a abarrotar de familiares e amigos.

Todavia, ficar órfão de pai e mãe em menos de 24 horas é uma experiência avassaladora. Quando soube que o pai faleceu através da chamada dominical costumeira fui chorar para trás da igreja da missão.

Soube da morte da mãe por volta das 16h00 quando cheguei a Adis-Abeba, a Nova-Flor que é a capital etíope.

A notícia tinha chegado muito antes, mas tinha os óculos de ler no saco de viagem e só abri o telemóvel depois de oito horas para cobrir os cerca de 450 quilómetros que separam Qillenso — onde vivo — da capital. Os meus olhos transformaram-se na nascente de um rio de dor.

Veio ainda a incerteza de que talvez não conseguisse participar nos funerais devido a problemas burocráticos com a renovação do meu cartão de estrangeiro residente na Etiópia.

Porém, graças ao empenho do meu provincial e de outras pessoas para conseguir autorização para deixar o país e ao adiamento dos funerais por um dia, consegui estar presente no último adeus aos pais e receber os pêsames de tanta gente — conhecidos e desconhecidos, dois ingredientes fundamentais para iniciar o meu luto com a minha família.

As semanas seguintes foram dedicadas à burocracia para deixar tudo em ordem antes do regresso à Etiópia. A Drª Liliana Ferreira, a quem reconhecidamente agradeço, foi fundamental neste processo.

Como família dorida, respeitamos a memória dos nossos pais, avós e bisavós celebrando o Natal juntos na casa deles e dando as prendas que tinham combinado com a minha irmã Armanda.

Regressei à Etiópia menos de um mês depois como turista e… com mais meia dúzia de quilos. A mana e os vizinhos trataram-me bem de mais! A anca, essa queixa-se.

De volta a Qillenso, foi a vez de ritualizar o luto à moda dos gujis. No primeiro domingo, à tarde, fi-lo com os católicos de Qillenso. Reunimo-nos em grande número no salão paroquial. 

Abraçaram-me e disseram-me palavras de alento. Depois pediram que lhes contasse a morte dos pais e os funerais. No fim, partilhamos um pão de trigo redondo com cerca de um metro de diâmetro com refrigerantes, café e leite.

Nas semanas seguintes vieram delegações das capela de Hindhale, Urdata e Badeye. O ritual e as narrativas repetiram-se.

As sobras do pão, dos refrigerantes e do leite ficavam connosco.

A vida continua!

Gosto muito de ler, mas durante o primeiro mês não tinha disposição para virar uma página que fosse nem de escrever nada. Dois meses depois, começo a normalizar a minha rotina.

Agora não falo nem brinco com os pais através da vídeo-chamada dominical, mas nas asas da oração de intercessão pela família alargada, pela paz na Etiópia e no Sudão do Sul. Creio na comunhão dos santos.

Além da foto deles que sempre me acompanha nas andanças de andarilho do Evangelho, uso uma volta de ouro que a mãe fez com o seu cordão de solteira, dividido em três para a Celeste, para a Armanda e para mim; e a aliança das bodas de ouro do pai. 

Trago-os sobretudo no meu código genético e na memória. Sei que estão em paz, que estão bem, que estão com Deus!

A morte súbita dos pais, poupou-os a outros sofrimentos. Agradeço a Deus por isso. E pelo testemunho de que nem a morte separou quem Deus uniu — como escrevemos na lápide da campa.

Deixo também uma palavra de agradecimento sentido a todas as pessoas que suavizaram a nossa dor com gestos tão carinhosos e próximos nos funerais e no tempo que passei em Portugal.

Agradeço ao senhor Dom António Couto, que presidiu às exéquias; ao pároco de Cinfães, P. Francisco Marques, que foi incansável no acompanhamento dos pais em vida e nos preparativos para os funerais; ao provincial dos Combonianos, P. Fernando Domingues, que me foi buscar ao aeroporto e também esteve presente na missa de sétimo dia; aos membros da família comboniana (seculares, leigos, irmãs, irmãos e padres); às generosas gentes de Cinfães tão próximas e solidárias também nas ofertas que me entregaram para a missão; aos familiares do lado do pai e da mãe; aos amigos de perto e de longe; a todos os que estiveram connosco em tão dorido momento e nos fortaleceram…

Os gujis dizem Bayee galaatooma! Muito obrigado!