29 de outubro de 2021

DE VOLTA A ONDE FUI FELIZ


«O missionário deve estar disposto a tudo: à alegria e à tristeza, à vida e à morte, ao abraço e à despedida. E a tudo isso estou disposto também eu», escreveu o jovem padre Daniel Comboni ao pai pouco depois de chegar a Santa Cruz, a missão entre os dincas que o acolheu na margem do Sudd, o grande pantanal do Sudão do Sul.

Visto esta disposição na hora em que me preparo para regressar à Etiópia 21 anos depois.

É a estação da alegria e da tristeza. Alegria de partir finalmente para um sonho que foi adiado em 2007 e em 2013 para aceitar outros serviços que me foram pedidos no Sudão do Sul e em Portugal.

Tristeza das saudades.

Da vida e da morte: é preciso dizer adeus para poder dizer olá!

Dos abraços e da despedida. E eu gosto muito de abraços…

E também dos agradecimentos!

O meu enorme bem-hajam, antes de mais, à Trindade bondosa por estes quase oito anos vividos dentro de portas exercendo um cargo de liderança que nunca ambicionei e que me fez crescer em humanidade e humildade!

Aos meus irmãos missionários pela confiança, paciência e fraternidade que me brindaram!

Aos meus pais, irmãs e restante família pelo apoio e pelo carinho!

A todas as amigas e amigos por encarnarem a ternura de Deus por mim.

Parto 29 anos mais velho do que da primeira vez! Com uma prótese na anca, com olhos e ouvidos mais cansados, com menos cabelo, dentes e forças para Qillenso, a missão que me acolheu, mas que está muito diferente 21 anos depois a começar pelo alcatrão na estrada.

Inspiram-me as palavras de Paulo aos cristãos de Tessalónica: «tanta afeição sentíamos por vós, que desejávamos ardentemente partilhar convosco não só o Evangelho de Deus mas a própria vida, tão queridos nos éreis».

Estou mais velho, mais cansado, mas parto por amor ao povo que me amou durante oito anos e que me fez renascer, para partilhar o Evangelho e a vida, a minha vida. O que dela resta…

Algumas vozes interpelam-me: «Porque partes? Aqui és tão preciso!». Alguém foi mais franca: «Parece-me uma inutilidade ires… Cá também há trabalho de missão, se calhar até bem mais necessário».

Peço emprestados uns versos à grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen: «E eu tenho de partir para salvar / Quem sou, para saber qual é o nome / Do profundo existir que me consome / Neste país de névoa e de não ser».

Parto porque tenho de partir, sair da minha zona de conforto, ir às periferias da vida dizer «Deus ama-te» através do meu amor, pobre e pequeno.

E levo-te contigo no coração: não vou sozinho, não ficas sozinha, não ficas sozinho.

Parto, porque a missão é um privilégio, é uma graça! De Deus.
                                                                                                                         José Vieira

10 de outubro de 2021

CELEBRAR COMBONI, CELEBRAR A MISSÃO


10 de Outubro de 2021, Festa de São Daniel Comboni

«Também nós, circundados como estamos de tal nuvem de testemunhas, deixando de lado todo o impedimento e todo o pecado, corramos com perseverança a prova que nos é proposta, tendo os olhos postos em Jesus, autor e consumador da fé» (Hebreus 12, 1-2)

Caríssimos confrades, saudações e orações de Roma e BOA FESTA do nosso Pai e Fundador São Daniel Comboni!

São Daniel Comboni tinha escrito a 23/09/1867, «o meu Plano é aprovado por um grande número de bispos… Por isso, eu tento por todos os meios. Se não conseguir nada, Deus contentar-se-á com a boa intenção. Claro que não me pouparei a fadigas, nem a viagens, nem a vida para que a empresa vingue: eu morrerei com a África nos lábios» (Escritos 1441). São Daniel faleceu a 10 de Outubro de 1881, há 140 anos, circundado dos seus missionários e missionárias, aos quais e às quais pediu a fidelidade à missão, fixando o seu olhar em Jesus e repetindo «Meu Jesus, misericórdia».

Regressei há poucos dias de Cartum onde São Daniel Comboni faleceu e onde a sua presença continua graças à vida, ao testemunho e ao serviço dos missionários e missionárias combonianos e da vida cristã de toda a igreja local. São Daniel Comboni chegou até nós hoje porque, antes de nós, muitos confrades, irmãs e leigos, que seguiram Jesus Cristo à maneira de São Daniel Comboni, nos transmitiram o seu carisma; o nosso coração está repleto de gratidão pela sua fidelidade e diz-lhes: OBRIGADO!

Hoje, celebramos o nosso Fundador que, no céu, vive e goza da comunhão dos Santos. Celebrámo-lo também porque com o dom do seu carisma, dom do Espírito Santo, ele continua a agir na vida quotidiana dos membros da Família Comboniana, dos nossos amigos, colaboradores, benfeitores e a estar presente nas nossas comunidades e nas nossas actividades.

Neste particular dia de 2021 celebram-se também, com grande alegria e renovada gratidão, diversos aniversários. Em Ellwangen concluiu-se o ano dedicado ao centenário da nossa presença na Alemanha e as nossas comunidades de Vengono e de Pádua completam 100 anos de presença. No mesmo dia no Brasil tem início o ano dedicado à reflexão sobre o 70º aniversário de presença comboniana que será celebrado em 2022. Sob o auspício deste dia, pensando quer no presente quer no futuro, abre-se uma nova comunidade e casa para confrades estudantes em Nairobi.

Sim! Celebrando São Daniel Comboni, somos todos chamados a deixar-nos renovar pelo Espírito Santo, que continuamente nos forma a ser discípulos missionários combonianos, chamados a caminhar hoje no mundo e a encarnar-nos sempre mais nas situações dos nossos irmãos e irmãs.

São Daniel Comboni recorda-nos ainda hoje o dever de anunciar e partilhar Jesus Cristo nossa Esperança, cujo Coração bate sempre pela humanidade sofredora; instiga-nos a testemunhá-lo na nossa vida quotidiana com espírito de ministerialidade na fraternidade; instiga-nos a viver na comunhão e no espírito de sinodalidade que nos faz todos partícipes da mesma missão e nos ensina a enriquecer-nos mutuamente no testemunho e no empenho para a construção do Reino de Deus, lá onde todos somos chamados a deixar-nos converter e a continuar o nosso caminho de santidade, que nos faz sempre mais humanos…

«Para um cristão, não é possível imaginar a própria missão na terra, sem a conceber como um caminho de santidade, porque “esta é, na verdade, a vontade de Deus: a vossa santificação” (1 Tessalonicenses 4,3). Cada santo é uma missão; é um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, num m omento determinado da história, um aspeto do Evangelho» (Papa Francisco na Alegrai-vos e exultai 19)

Confiemos as nossas comunidades e os nossos confrades à nossa Mãe Maria e a São Daniel Comboni, para que possamos obter as graças necessárias para viver bem o nosso caminho e a celebração do próximo Capítulo Geral, que celebraremos no mês de Junho de 2122,

Boa Festa de São Daniel Comboni!!!

P. Tesfaye Tadesse Gebresilasie MCCJ
Pelo Conselho Geral

4 de outubro de 2021

A LEVEZA DA ALEGRIA





Visitei Assis pela última vez em 2015. A peregrinação começou no complexo franciscano: uma sucessão de construções erguidas a partir de 1230 à volta e por cima do túmulo de São Francisco de Assis, pobre na morte como o foi na vida: uma coluna protegida por uma grade de ferro.

Deslumbrou-me a beleza leve e alegre dos frescos tanto da basílica inferior como da superior: uma simplicidade colorida, um despojamento tecnicolor, um hino policromático à memória do Santo de Assis, o irmão menor universal que nos faz todos irmãos. Fratelli tutti.

Esta festa de alegria leve e colorida contrasta com a sobriedade pétrea, sisuda e despojada da Igreja beneditina de São Pedro, o último templo da visita. Uma construção do século X refeita no século XIII que convida ao silêncio frio, contemplativo.

O contraste arquitetónico entre as construções beneditina e franciscana é uma parábola sobre a grande revolução espiritual que a simplicidade pobre e humilde de Francisco trouxe à igreja e ao mundo. 

A leveza da alegria franciscana continua a contagiar faz mais de 800 anos em nítido contraste com a solenidade despojada, contemplativa e essencial da Regra de São Bento sumariada no ideal do ora et labora. Reza e trabalha.

 

3 de outubro de 2021

AFRICANIZAR O CRISTIANISMO


A fé precisa de um processo de inculturação cultural.

Apesar de ter um nome difícil de pronunciar, Chimamanda Ngozi Adichie é um caso sério de sucesso na literatura anglófona africana contemporânea e uma conferencista notável e premiada, de pensamento original. Nasceu na Nigéria há 44 anos e foi estudar para os Estados Unidos da América com 19. Define-se como contadora de histórias. Tem três novelas publicadas (A Cor de Hibisco, Meio Sol Amarelo e Americanah), uma colecção de pequenos contos (A Coisa à Volta do Teu Pescoço) e três obras de não-ficção (Todos Devemos Ser Feministas, Querida Ijeawele – Como Educar para o Feminismo e Notas sobre o luto – uma reflexão sobre a perda do pai). A obra está traduzida em 31 línguas, português incluído.

Em Junho, deu uma entrevista em directo de Lagos, na Nigéria, ao programa Roda Vida da TV Cultura do Brasil. À pergunta sobre o papel da religião e como é que as religiões de matriz africana podem ajudar a construir um novo modelo de relações humanas, dá uma resposta interessante: «O mais importante a dizer, antes de mais nada, é que por todo o continente africano o cristianismo pentecostal é simplesmente avassalador e há coisas boas nele e outras que não são boas. As coisas boas acho que é o que as pessoas precisam. Na Nigéria, onde não têm acesso a políticas de saúde mental, de alguma forma a religião faz esse papel. Mas, ao mesmo tempo, há um certo tipo de cristianismo pentecostal que prega a prosperidade, e associa riquezas com bênçãos. Essa ideia de que se rezar Deus fá-lo rico ou lhe dá dinheiro, esse tipo de coisa é que acho perturbador.»

Sobre a religião tradicional africana, Chimamanda, que é católica, explica: «Uma das coisas que o Cristianismo fez ao chegar com o colonialismo foi ensinar a muitos africanos que a religião que estava lá, dos pais e dos antepassados, era má de alguma forma. Hoje em dia encontro muita gente a falar sobre as religiões tradicionais como se fossem, de certo modo, “demoníacas”, “diabólicas”, “más”. […] Realmente não existe muito uma consciência sobre as religiões tradicionais africanas entre os jovens nigerianos.»

E continua: «Porque o Cristianismo é tão padrão – no Sul da Nigéria, porque no Norte da Nigéria é o islão – aquilo em que estou cada vez mais interessada é em como africanizar o Cristianismo. Fui a um funeral na minha terra natal. Recordo olhar para a Santíssima Virgem Maria e pensar: “É tão estranho! Tem a estátua de uma mulher branca. Para começar é historicamente incorrecto, porque ela não podia ter sido loira e de olhos azuis.” Depois ficava a pensar: “Porque nunca pensamos em tentar africanizar estas imagens que reflectem a nossa fé? Certamente que é possível africanizar o Cristianismo e apropriarmo-nos um pouco mais dele”.»

Ao processo de africanização da liturgia, teologia e arte já em curso em muitos países chama-se inculturação. Porque «uma fé que não se incultura não é autêntica», como o Papa Francisco escreveu na mensagem ao Congresso sobre Vida Religiosa na América Latina e Caraíbas, em Agosto.