30 de março de 2023

Etiópia: SECA ENTRE OS BORANA





Entre 10 e 13 de março, o arcebispo de Adis Abeba, cardeal Berhaneyesus Souraphiel, e os representantes do Vicariato de Hawassa, P. Juan González Núñez, administrador apostólico, P. Nicola Di Iorio, vice-diretor executivo, e P. Tsegaye Getahun, diretor do Secretariado Católico de Hawassa, visitaram a região de Borana, localizado no sul do Vicariato, habitado em grande parte pelo grupo étnico de mesmo nome, uma das áreas mais afetadas pela seca, para levar ajuda e, acima de tudo, esperança para as muitas vítimas.


Na Etiópia, diz-se que se se pedir água a um Borana, ele oferece leite. Hoje, no entanto, esse povo generoso não pode oferecer leite ou água: as pessoas e seus animais estão literalmente a morrer de sede.

Os Borana ocupam a parte mais ao sul da Etiópia, na fronteira com o Quénia. A sua terra é uma savana perpetuamente árida, mas, se as chuvas são regulares, é capaz de suportar dois a três milhões de bovinos, além de grandes rebanhos de cabras brancas.

Infelizmente, a tendência normal de chuvas no distrito mudou drasticamente. Há cinco anos que não chove, e a capacidade da região de lidar com essa catástrofe esgotou-se completamente. Um após o outro, todos os pontos de água secaram e quase todo o gado morreu. Fala-se de pelo menos dois milhões de cabeças de gado mortos pela fome e sede.

Devemos regressar a 1984 para encontrar uma tragédia destas dimensões. Eu também a testemunhei em primeira mão. Naquele ano de terrível memória, as vítimas da seca entre os Borana excederam um milhão.

Hoje, o governo promete que não deixará um único indivíduo morrer devido à seca. Talvez ele pudesse fazê-lo se juntasse todos os Boranas nos campos de deslocados internos. No entanto, não será possível saber com certeza quantas vítimas terão falecido nas suas aldeias devido à desnutrição e fome.

Gradualmente, a maioria das pessoas já se mudou para os campos de deslocados internos criados pelo governo.

A delegação da Igreja Católica, liderada pelo cardeal de Adis Abeba, visitou o campo de Dubluk, que, com oitenta mil habitantes, é um dos maiores da região Borana. As pessoas deslocadas vivem principalmente em tendas, algumas em cabanas, outras em barracos de madeira cobertos com folhas de plástico. As pessoas parecem limpas, vestidas decentemente e bem alimentadas: roupas e alimentos são fornecidos pelo governo e instituições de caridade. Mas há um sentimento de desespero entre aqueles que antes eram ricos e perderam tudo.

A seca já dura há cinco anos: o mais longo que as pessoas se lembram. Desde o início, o Vicariato de Hawassa está presente, ajudando as pessoas deslocadas de todas as formas possíveis. Entre os Boranas, existem três missões católicas dos Missionários Espiritanos, que se destacaram por trabalho social através de escolas, residências estudantis e escavações de poços de água.

O Vicariato continua a ajudar a população, mas não se vê um fim à vista para esta grave crise humanitária. Até hoje conseguimos colaborar na assistência a cerca de um milhão e meio de Boranas, distribuindo grandes quantidades de ajudas recebidas de organizações como a Caritas América, Caritas Áustria e outras.

Um dia depois da nossa visita aos deslocados, começou a chover. É possível que as pessoas comecem a dizer que foram os católicos que trouxeram a chuva. Seria um equívoco curioso. Sabemos bem que só Deus é o Senhor de tudo que a sua providência coloca à nossa disposição.

Juan González Núñez, mccj

28 de março de 2023

AZIZA, A FREIRA DE FOGO


Azezet Habtezghi Kidane nasceu na Eritreia a 21 de agosto de 1956. Em 1980, com 24 anos, Aziza — como também é conhecia — juntou-se às Missionárias Combonianas. Enfermeira de profissão, desenvolveu o ser serviço missionário na Eritreia (cinco anos), Etiópia (sete anos), Sul do Sudão (dez anos) e Inglaterra (sete anos).

Em 2008 foi destinada à província comboniana do Médio Oriente, ficando a viver na Palestina.

A Ir. Aziza é pequena de estatura, mas tem um coração enorme, veste um sorriso tímido nos lábios e tem um cruz tatuada na testa. É uma mulher de fogo!

Em Israel, colabora como enfermeira voluntária com a organização não governamental Médicos para os Direitos Humanos-Israel, PHR-I na sigla em inglês.

No trabalho de enfermagem, ouvindo as histórias dos requerentes de asilo, apercebeu-se que algo de estranho se passava na Península do Sinai, no Egito.

Entre 2010 e 2012 fez milhares de entrevistas a estrangeiros — muitos eritreus como ela — que procuravam os seus cuidados e contavam os horrores por que passaram e pôs a nu uma rede de tráfico, tortura e exploração sexual no Sinai.

De acordo com o que apurou, pelo menos sete mil pessoas morreram sob tortura na península egípcia.

O Departamento de Estado Norte-Americano reconheceu a heroicidade desse trabalho de investigação sobre o tráfico de pessoas e atribuiu-lhe o prémio Trafficking in Persons Report Heroes em 2012.

Por seu turno, o embaixador da Eritreia em Israel telefonou-lhe para que parasse as investigações. A Ir. Aziza não é mulher para se deixar intimidar e continuou com o trabalho. Consequentemente perdeu a cidadania eritreia. Quando o passaporte caducou a embaixada recusou-lhe a renovação. Agora é cidadã britânica.

As Combonianas também assistem os beduínos palestinianos que foram expulsos do deserto do Negueb com um jardim infantil e através da promoção da mulher. A Ir. Aziza denuncia que os beduínos não têm quaisquer direitos reconhecidos e não podem construir nada em material permanente, vivendo em autênticos bairros de lata feitos de madeira, plástico e cartão.

O seu ativismo em favor dos direitos humanos dos requerentes de asilo, dos imigrantes africanos em Israel e dos beduínos levou-a ao Knesset, o Parlamento Israelita, por cinco vezes para partilhar com os políticos as suas descobertas e denunciar a violação sistemáticos dos direitos dos não-judeus no país.

A Ir. Aziza denuncia que em Israel as injustiças contra os não-judeus são gritantes e há cristãos fanáticos que apoiam a violência do Estado contra as minorias.

Considera-se livre de falar, de denunciar as injustiças. Pode falar sobre a política e as injustiças contra os requerentes de asilo. “Os Israelitas escutam mas não se preocupam com o que dizes” — confessa.

Durante a semana trabalha dois dias na clínica móvel de uma ONG em Israel para atender pacientes sem direitos sociais que não têm dinheiro para pagar a assistência de saúde privada. Cada sábado a clínica móvel desloca-se para o Território Palestiniano.

A Ir. Aziza afirma que a Palestina é chamada Terra Santa “porque o sangue de Cristo ainda não secou; os inocentes continuam a sofrer”.

Trabalha tanto com Judeus — com eles reza sobretudo os salmos — como com Palestinianos.

“A pessoa que vive a sua beleza, revela a bondade de Deus”, confessa, entusiasmada.

Diz que o seu trabalho humanitário é a dimensão mais importante da sua vocação comboniana.

No seu serviço missionário tem colaborado com muitas pessoas que se dizem não crentes, mas que são dedicadas, amorosas e capazes de perdoar.

“Elas não acreditam, mas trazem Cristo, Deus, a Bíblia dentro de si”, proclama, com os olhos cheios de luz.

As Missionárias Combonianas têm duas comunidades na Terra Santa: o Centro de Espiritualidade em Betânia, Jerusalém, desde 1966, e Al Azarieh, na Palestina. Esta comunidade, aberta em 2011, faz trabalho pastoral, social e educativo com residentes e beduínos e dá assistência a migrantes em Tel Aviv.

16 de março de 2023

NEGUELE É NOSSA!

 

O Parlamento da Oromia decidiu re-estruturar algumas zonas administrativas do mais vasto estado regional etíope e o território guji foi incluído nessa reconfiguração.

Na segunda-feira, 27 de fevereiro, o Conselho Regional Oromo anunciou que a capital administrativa da Zona Guji passava de Neguele — perto da fronteira com a Somália — para Adola e que Neguele era a capital da nova Zona Borana-Leste. Além disso, Shakisso, uma área guji rica em ouro e outros minerais, passava a zona autónoma administrada diretamente pelo Governo Oromo.

A inclusão de Neguele e de três distritos gujis no território borana sem consulta prévia criou uma onda de contestação violenta muito forte entre os guji, sobretudo nas zonas urbanas.

Os manifestantes — sobretudo jovens — vieram para a rua gritar “Negeele kennaa”, “Neguele é nossa”, ao mesmo tempo que exprimiam a raiva através de alguns atos de vandalismo.

Na cidade de Bore, a meia centena de quilómetros a norte de Qillenso onde vivo, pelo menos três pessoas foram mortas e duas feridas em recontros violentos com as forças da ordem (polícia e tropas).

Muitos manifestantes acabaram na prisão.

A estrada asfaltada que atravessa a região — é uma artéria fundamental para o abastecimento do sul da Oromia — tem sido frequentemente cortada através do derrube de árvores ou com pedras. A via atravessa florestas densas e é fácil cortar árvores.

Durante a noite de terça, 28 de fevereiro, pessoas não identificadas abateram à machadada um dos postes do ramal elétrico de média tensão que também serve a missão, deixando às escuras durante uma semana as cidades de Me’ee Bokko e Hirba Muda além de algumas aldeias.

As escolas foram encerradas a 1 de março para evitar que os alunos viessem para as ruas engrossar a contestação.

A 6 de março os comerciantes de Adola mantiveram as lojas fechadas em sinal de protesto.

Os militares patrulham as cidades e as estrada principais para tentar controlar a situação.

Entretanto, uma alta delegação guji deslocaram-se a Adis-Abeba — em oromo chamamos-lhe Finfinne — a 8 de março com o objetivo de reverter a anexação de parte do seu território na zona dos boranas.

Fontes bem informadas explicaram-me que a possibilidade da restituição do território guji incorporado na Zona de Borana-Leste é remota.

O trabalho pastoral da missão de Qillenso — com exceção da escola que foi reaberta esta segunda-feira mas funciona a meio gas — continua sem problemas. As patrulhas militares resolvem rapidamente of cortes de estrada. O único senão foi ficarmos às escuras e sem água em casa durante uma semana. Mas foi interessante voltar a viver à luz das velas!

Espera-se que a vontade do Parlamento Oromo em não mexer na restruturação administrativa não volte a trazer as pessoas para a rua para expressar indignação.

Os jovens, desempregados e afastados do ensino superior — somente cerca de três por cento conseguiu no fim do ano letivo anterior passar no exame de ingresso à universidade —, são um grupo muito volátil, vulnerável e manipulável.

Agora que parece que as chuvas regressaram, precisamos de paz para preparar os campos e iniciar a nova campanha agrícola.

Além dos distúrbios causados pela recente reforma administrativa, o território guji tem sido palco de recontros entre os rebeldes do OLA (Exército de Libertação Oromo na sigla em inglês) e as tropas do Governo a sul de Adola, na estrada para Neguele, e na zona de Shakisso.

O Governo tem enviado grandes colunas militares para a área, mas o conflito só pode ser dirimido através da negociação, como aconteceu com a revolta do Tigré. As autoridades dizem à população para abandonar as áreas dos confrontos, mas, segundo fontes bem informadas, os rebeldes não o permitem usando-as como escudos humanos.

A insegurança causada pelo conflito tem afetado o nosso serviço missionário nalgumas capelas da região. Há três comunidades que ainda não conheço, porque os catequistas dizem não ser seguro ir lá celebrar a Eucaristia.

A terra guji precisa urgentemente de paz. As pessoas trazem sempre a paz — “nagueya” — na boca e rezam incessantemente por ela durante as eucaristias. “Nagueya” é a palavra-chave das saudações dos gujis.

A experiência de insegurança das últimas semanas assustou muito a gente. Associa-te, por favor, a esta corrente de oração.

8 de março de 2023

ABBA DETOMASO: 50 ANOS NA ETIÓPIA

 

O padre Giuseppe Detomaso tinha 30 anos quando aterrou pela primeira vez na Etiópia e ficou lá durante cinco décadas. Uma vida de serviço e entrega generosa aos mais pobres e abandonados.

O calendário marcava 12 de Outubro de 1972, quando Abba Giuseppe Detomaso aterrou pela primeira vez na Etiópia. Tinha 30 anos. Chegou cheio de sonhos para permanecer no país durante meio século. «O meu sonho? Queria ir para uma missão, juntar-me aos missionários lá presentes; descobrir as coisas boas do povo Sidamo, estudar a sua língua e cultura e participar da sua vida», recorda.

Dias depois, foi para Sul para um primeiro contacto com as missões combonianas na província de Sidamo. No final do ano, mudou-se para Adis-Abeba, a capital, para frequentar o curso de amárico numa escola protestante.

Em Janeiro de 1974, Abba Giuseppe foi colocado em Dilla. Começou a abrir catecumenatos e escolas primárias. Em Dilla, administrou os primeiros baptismos e entregou os primeiros boletins escolares.

Em 1975, o imperador Haile Selassie foi destronado pelos militares que impuseram o Derg, um regime comunista que duraria até 1991. «O novo regime não trouxe sérios problemas às nossas missões, porque estávamos a trabalhar com os pobres, embora o perigo de expulsão fosse real», admite Abba Giuseppe.

Em Janeiro de 1976, juntou os seus parcos pertences e mudou-se para Arramo. Os missionários viviam numa barraca muito pobre sem água corrente nem electricidade, infestada de ratos e formigas, expostos à curiosidade de quem passava. Abba Giuseppe, entretanto, dedicou-se a aprender guedeo, a língua local.


A vida é feita de mudanças

Em 1986, o superior provincial pediu a Abba Giuseppe que deixasse as colinas verdes de Arramo e Galcha e se mudasse para a cidade de Hawassa, junto ao lago que lhe deu o nome, para dirigir a Escola Primária Comboni.

Foi uma obediência difícil. A escola tinha cerca de 2000 alunos desde o jardim-de-infância até à oitava classe. Era uma realidade complexa com 20 turmas, 30 professores e três turnos de ensino: manhã, tarde e noite. Contudo, o bom clima de diálogo com os professores, construído com base na confiança mútua e no esforço de ensino qualificado, granjeou uma boa reputação para a escola. Nesses dias, aos fins-de-semana, Abba Giuseppe fazia trabalho pastoral na cidade e nas capelas dos arredores.

Após sete anos a dirigir a escola primária e celebrando as bodas de prata sacerdotais, foi-lhe oferecido um ano sabático.

De volta à Etiópia, Abba Giuseppe é colocado na paróquia de Dongora. Para desenvolver o trabalho pastoral, criou uma equipa com os três melhores catequistas escolhidos pelo seu empenho e melhor educação. Foram formados para serem os seus colaboradores mais próximos e supervisores das actividades pastorais.

Na cidadezinha de Chukko, abriu uma escola de costura e um infantário. Também construiu uma bela igreja com vista à criação de uma nova paróquia.

Depois de Dongora, foi nomeado pároco de Tullo – uma das primeiras missões entre os Sidamos na margem do lago Hawassa. Foram tempos de crise de crescimento, colaboração com os padres locais e entrega de algumas missões.

Mais tarde, o bispo decidiu dividir a paróquia, que tinha cerca de 60 capelas. Abba Giuseppe voltou a fazer as malas e foi para Arosa, a capela escolhida para ser o centro da nova missão. Contudo, a escassez de missionários levou a província a entregar Arosa ao clero local e foi transferido para Teticha, uma missão extensa nas montanhas de Sidamo, a 2700 metros acima do nível do mar, onde o comboniano português padre Ivo do Vale trabalhou bastantes anos com muito amor.

Durante a estada em Teticha, Abba Giuseppe foi convidado a ir a Fullasa – a maior paróquia do vicariato de Hawassa e no país com cerca de 40 mil católicos – para a entregar ao clero local. Ficou lá de Janeiro a Outubro de 2013.

Em 2015, chegou o tempo de dividir a missão. Os Combonianos fizeram da capela de Daye, nas terras baixas, a cerca de 50 quilómetros a sul da sede da missão, o centro da nova paróquia. Num vasto complexo, Abba Giuseppe construiu uma escola e uma casa e fez um poço para acolher a nova comunidade. A nova missão começou com 27 capelas. Os missionários também abriram um infantário, depois a escola primária e finalmente a escola média. Juntas, tinham 700 alunos.


Salvar a África com a África

A rotação interna trouxe Abba Giuseppe de Daye para Hawassa em Julho de 2020. No início deste ano, problemas de saúde obrigaram-no a ir para Adis-Abeba, onde veio a falecer no dia 13 de Janeiro passado.

O Departamento da Missão de Bolzano, na Itália – a sua diocese de origem – concluiu um documentário sobre Abba Giuseppe com estas palavras: «Tu amas o povo e o povo ama-te.» Uma frase curta que sintetiza admiravelmente o seu serviço missionário na Etiópia.

Ele próprio não precisou de muitas palavras para resumir o percurso missionário: «Tive a oportunidade de ver o início de muitas missões e depois de testemunhar a sua entrega ao clero local. O meu serviço missionário é resumido nas palavras de São Daniel Comboni “Salvar a África com a África”.»

6 de março de 2023

A NOITE


O breu do meu bocadinho de céu
    está pintado
de estrelas, planetas e satélites,
    riscado por desejos cadentes.
O silêncio frio da noite
é palco aberto
    da polifonia harmónica da vida:
da estridência dos insetos,
    liderados pelos grilos e cigarras,
aos piares perdidos de aves notívagas,
do roncar gutural de frio dos símios,
ao ciciar do vento que acaricia
    as copas das árvores,
dos ecos abafados de conversas
trocadas no calor do lar.
A noite escura tem vida,
a noite é vida, intimidade,
mistério da presença de Deus,
que tudo criou, que tudo guarda
    e tudo conserva.
Ó noite, fonte dos amores,
de vidas reproduzidas...
Ó noite,
minha noite,
meu bocadinho de céu,
escuridão minha sarapintada de luz,
da Tua Luz,
    que é também minha.
Boa noite, noite minha,
meu lado escuro,
meu breu
à espera do sorriso dourado
    da Lua Nova,
da redenção
    da Lua Cheia!