27 de junho de 2021

O TOCAR QUE SALVA


Marcos conta no evangelho dois milagres tecidos numa única trama: a cura de uma mulher que sofria de hemorragias e a ressuscitação de uma menina (Marcos 5, 21-43), duas telas urdidas com muitos fios comuns:

— os beneficiários são duas mulheres irmanadas pelo número doze: a mais velha perdia sangue há doze anos e os médicos não lhe resolviam o problema; a mais nova tinha doze anos de idade;

— as duas curas acontecem porque o pai da menina e a mulher foram aos pés de Jesus;

— as duas curas deram-se através do tocar: a mulher toca a veste de Jesus e Jesus pega na mão da menina morta;

— dois toques que são perigosos: a mulher ao tocar em Jesus transmite-lhe a sua impureza ritual por causa do escorrimento de sangue e a Lei declara impuro quer tocar em cadáveres;

— há um ato de fé de ambas as partes reconhecido por Jesus: à mulher diz «minha filha, a tua fé te salvou» e a Jairo «não temas, basta que tenhas fé».

Jesus não teve medo de ser contaminado com o mal que afligia a mulher que padecia de uma condição ginecológica que a apartava da sociedade, porque, considerada ritualmente impura, tornava impuro tudo o que tocasse; e não teve receio em tomar pela mão uma menina morta dizendo «Talitha Kum», «Menina, levanta-te».

O Papa Francisco adverte: «às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que tomemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros».

Os cristãos continuamos no tempo e no espaço o toque curativo e salvífico de Jesus. Ele precisa das nossas mãos e do nosso coração para continuar a tocar os pobres, os doentes, os excluídos.

A pandemia impôs algumas restrições desde o distanciamento ao  toque. É urgente redescobrir outras formas de nos fazermos próximos e de tocar as pessoas através da ternura, do cuidado, da compaixão, do amor. Sem as pormos em perigo com o covid.

24 de junho de 2021

O MAIOR NASCIDO DE MULHER


A liturgia cristã celebra apenas três nascimentos: de Maria (a 8 de setembro), de João Batista (a 24 de junho) e de Jesus (a 25 de dezembro). Os santos são recordados à volta da data da sua morte, a que se chama dies natalis, literalmente o dia do nascimento (para a vida eterna).

Foi Jesus quem afirmou João Batista ao declarar que «entre os nascidos de mulher ninguém é maior que João» (Lucas 7, 28), porque, citando a profecia de Malaquias, «é acerca dele que está escrito: “Eis que envio o meu mensageiro à tua frente, que há de preparar o caminho diante de ti”» (Lucas 7, 27).

Jesus apresenta João Batista como o cantoneiro de Deus, aquele que prepara os caminhos do coração para as pessoas acolherem o Messias, o salvador prometido e muito esperado. É o porteiro da promessa: abre a aliança antiga à nova aliança, está entre a promessa e o seu cumprimento, está no limiar do tempo novo.

O nascimento de João Batista é prenúncio do advento de uma pessoa especial: foi precursor de Jesus do berço ao túmulo.

O acontecimento é acolhido com alegria pelos vizinhos que dão os parabéns a Isabel e Zacarias, casal idoso e estéril, por serem agraciados por Deus com um filho. Uma vergonha, uma maldição transformada em bênção.

Oito dias depois, no dia da circuncisão e de dar o nome, querem chamar o menino de Zacarias como o pai. A mãe — e depois o pai — põem-lhe o nome de João. O nome que o anjo indicou ao sacerdote Zacarias no dia da sua anunciação.

João vem do hebraico e quer dizer graça de Deus, Deus é graça, agraciado por Deus, o Senhor faz graça.

Na Bíblia, o nome dá identidade e missão. João é dom da graça de Deus para os pais idosos; é graça para o povo de Deus a quem prepara para a vinda do Messias.

Lucas conta que Zacarias recuperou a fala depois de escrever numa tabuínha «João é o seu nome». Os presentes admiraram-se e ficaram atemorizados com tais prodígios, perguntando: «O que irá ser este menino?». Ele cresceu com espírito forte a viver no deserto, o local do silêncio vasto, do encontro amoroso de Deus que fala ao coração do seu povo.

João começou a pregar na margem do Jordão um batismo de penitência a todo o povo, para preparar a vinda iminente de Alguém a quem diz não ser digno de desatar as sandálias, o serviço íntimo do discípulo ao mestre. E do amigo ao noivo.

Segundo os evangelhos, João proclamava um evangelho, uma boa nova, muito semelhante à de Jesus: «Convertei-vos, pois está próximo o reino dos Céus» (Mateus 3, 1).

O seu aparecimento nas margens do Jordão a batizar as pessoas que confessavam os pecados cansou grande comoção.

Os judeus estavam fartos do domínio romano e o anúncio da vinda iminente do Messias provocou uma peregrinação massiva e expectante para o rio. O próprio Jesus se junta, solidário, a essa mole humana que, em fila, recebe o batismo para o perdão dos pecados.

João Batista proclama um evangelho de fogo: anuncia a vinda do Messias como julgamento. Um julgamento que compara às queimadas antes das primeiras chuvas para preparar os pastos; à limpeza do trigo e à queima da palha no fim da colheita; ao abate e queima das árvores sem bom fruto…

Já na prisão, ouve falar de Jesus e do seu evangelho — muito diferente das suas expectativas —, fica perplexo e manda perguntar: «És tu o que está para vir ou havemos de esperar outro?» (Mateus 11, 3).

Celebrar São João Batista como padroeiro é acolher-nos à sua proteção, colhermos o paradigma da sua vida:
  • João vestia-se à maneira dos profetas — com peles de camelo — e alimentava-se de mel silvestre e gafanhotos. Um homem que vive uma vida com uma pegada mínima, sustentada, uma sobriedade feliz — como propõe o Papa Francisco para resolver a crise humana e ambiental em que vivemos devido ao consumismo insaciável; 
  • um homem feliz com o seu lugar, que não quer usurpar o papel do Messias («Não sou quem pensais»), mas quer que Jesus inicie a sua missão («é necessário que Ele cresça e eu diminua»); 
  • um homem que tem dúvidas e procura respostas ao enviar os seus discípulos a Jesus; 
  • um homem que faz o mesmo apelo ao devoto que faz fila para o batismo e ao rei a quem chama à razão por causa «das suas maldades». 
João nasceu há dois milénios, mas a sua mensagem mantém-se atual. Pede «frutos dignos de conversão»:

— ao crente anónimo pede a partilha da comida e da roupa com quem não tem;

— ao funcionário público pede que não exija mais do que é devido;

— às forças da ordem pede justiça e contentamento com o salário.

Olhar para João Batista, o profeta, é aceitar — como dizia Deus a Isaías — ser espada afiada e seta aguçada na aljava do Senhor, tocando a Sua glória.

Como o profeta Isaías, podemos sentir-nos servos cansados, extenuados, deprimidos, porque vivemos numa sociedade que não valoriza a matriz cristã de onde vem. Mas o Senhor repete: não chega sermos servos, somos luz das nações, discípulos missionários que portam a salvação de Deus até aos cantos mais distantes do mundo.

Ao jeito de João, apontamos para Jesus e dizemos: «Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo».

A energia que alimenta a nossa luz vem das boas obras, da partilha do pão e da ternura, do respeito pela lei numa sociedade tão corrupta e corrompida, de nos sentirmos felizes com a pessoas que somos e com o que temos.

Assim, podemos celebrar São João Batista como nosso glorioso padroeiro! Mesmo em tempo de pandemia — como hoje o fazemos. Que ele nos proteja e sacuda a nossa inércia. Amen.

22 de junho de 2021

COMBONIANA LIDERA SECRETARIADO CATÓLICO ERITREU



 

A Ir. Tseghereda Yohannnes é, desde 1 de junho, a nova líder do Secretariado Católico da Eritreia.

A missionária comboniana, de 65 anos sucede, ao monge cisterciense P. Tesfaghiorghis Kiflon que cessou funções depois de oito anos de serviço.

A Ir. Tseghereda entrou para o Instituo das Missionárias Combonianas em 1977.

Fez a formação na Eritreia e nos Estados Unidos e sete anos de serviço missionário no Quénia.

Regressou à Eritreia em 2001.

Doutorou-se em medicina molecular e leccionou durante 16 anos na Universidade de Asmara e no Instituto Técnico de Mai Nefhi.

O arcebispo de Asmara, o comboniano Dom Menghestab Tesfamariam, sublinhou na cerimónia da tomada de posse da Ir. Tseghereda, que o Secretariado Católico tem três deveres: «irradiar a luz e o amor de Jesus para o povo; escutar constantemente a Palavra de Deus para fazer a Sua vontade; não temer nada, mas ser forte na fé».

A Ir. Tseghereda, por seu turno, pediu a sabedoria de Salomão para «continuar a cumprir a missão da Igreja para satisfazer as necessidades do povo de Deus, hoje.»

O Secretariado Católico coordena, entre outras missões, as relações bilaterais com o Governo — que têm sido muito difíceis — e a ação social e humanitária da Igreja Católica no país.

O Governo nacionalizou ou encerrou as clínicas e confiscou as escolas secundárias da Igreja católica em 2018 com o argumento de que as instituições não eram da Igreja, mas pertenciam ao povo.

Agora prepara-se para tomar conta ou fechar as 19 escolas primárias das três dioceses católicas.

Os bispos católicos manifestaram tristeza e mágoa numa carta endereçada ao Ministro da Educação.

«Estamos profundamente entristecidos e magoados com as medidas que o governo está a adoptar pela força, ou já o fez, retirando-nos as instituições educativas e de saúde que legitimamente nos pertencem», escreveram.

E afirmaram: «As escolas e clínicas confiscadas ou fechadas, ou que devem sofrer o mesmo destino, são propriedade legítima da Igreja Católica, construídas, estabelecidas e organizadas no supremo e exclusivo interesse de servir o povo».

O presidente Isaias Afewerki assumiu o poder a 19 de Maio de 1993.

Em novembro de 2007, o Governo expulsou 14 missionários combonianos estrangeiros a trabalhar no país.

20 de junho de 2021

UMA ALMOFADA NA TEMPESTADE


Marcos conta no seu evangelho (4, 35-41) que Jesus, ao cair da tarde — o romper do novo dia no contar dos judeus — organizou uma armada missionária para a outra margem do Lago da Galileia.

Durante a travessia noturna, uma enorme burrasca assolou o mar: ventos furiosos e ondas alterosas açoitavam os barcos, que começaram a meter água.

Jesus dormia na popa, no posto de comando, tranquilo, com a cabeça repousada sobre uma almofada.

Os embarcadiços, acordam-no, aterrorizados:

— Mestre, não te importa que morramos?

Claro que Lhe importa. E muito! Ele veio para termos vida e vida em abundância. 

«Ele, levantando-se, repreendeu severamente o vento e disse ao mar: “Fica quieto”. O vento amainou e fez-se grande bonança», conta Marcos.

Depois Jesus pôs duas questões aos discípulos:

— Porque estais assustados?

— Não tendes fé?

Eles, atemorizados por tão poderosa experiência, também se perguntaram:

— Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?

A primeira pergunta dos discípulos é parte do inventário de questões que pomos a Deus sobretudo no meio das tempestades pessoais e coletivas que abanam e abalam as nossas vidas: onde está Deus no meio dos nossos medos, das nossas tempestades, das nossas dores e feridas?

Mestre Eckhart, o místico dominicano alemão medieval, compõe uma resposta: «Digo eu: que Deus está connosco no sofrimento, quer dizer que Ele próprio sofre connosco. […] Deus sofre com o homem, sim, Ele sofre ao seu modo primeira e incomparavelmente mais do que aquele que sofre, que sofre por Ele. […] Tudo o que o homem sofre por Deus, Deus o torna fácil e doce para ele».

Etty Illesum, a jovem judia holandesa exterminada em Auschwitz, propõe outra resposta. Refletindo sobre o holocausto, essa hecatombe que se abateu sobre os judeus, escreve no diário: «Eu estou pronta a testemunhar sob qualquer circunstância e até à morte que esta vida é bela e prenhe de sentido, e que não é culpa de Deus as coisas serem actualmente como são, mas culpa nossa».

Jesus está connosco na barca da vida e partilha a sua almofada para repousarmos a cabeça, para descansarmos o coração, para confortarmos a alma, para sossegarmos as entranhas.

Ele dá a fé para enfrentarmos os nossos sustos, exorcizarmos os nossos fantasmas, lidarmos com os episódios extremos que disturbam a espuma dos dias.

Quem é para ti o Senhor dos ventos e do mar? O Senhor que vence o mal e as forças malévolas do demónio à tua volta e dentro de ti?

Esta é a grande questão que só tu podes responder enquanto o teu coração repousa na almofada tranquilizadora do  coração de Deus.

18 de junho de 2021

DIÁRIO DE UM SAFARI DE MISSÃO



No domingo, 30 de abril, chegámos a casa do safari missionário já noite, às 19 horas. Correu tudo bem com as pessoas. Com os pneus nem por isso.

À ida, no sábado, tivemos um furo no descampado. Pneu mudado e, dois quilómetros depois, outro pneu esvaziado. O condutor de uma moto-taxi que passava passou o passageiro a outro e pegou em dois professores da minha equipa missionária. O do meio ia com o pneu grande e pesado da Toyota Cruiser ao colo.

Ficamos o motorista, ex-condutor de camiões e pai de um estudante de teologia comboniano, outro membro da equipa e eu a tratar de desmontar o pneu estragado.

Apareceu um jovem de moto que vinha dos campos com um valente tronco de árvore para lenha e um saco de produtos agrícolas.

O Sr. Mapenzi, o nosso condutor, fê-lo parar: «Tenho aqui o padre, que tem que ir para o trabalho dele, na igreja católica de Cantine».

O homem faz uns metros para trás, descarrega tudo no pátio de uma casa à beira da estrada e... «Sr. Padre faça favor de subir!»

Durante a viagem de uns seis quilómetros, apresentou-se: «Jean Baptiste, responsável de toda a juventude, da parte do município de Cantine».

O protestante transporta o católico, os dois cheios de alegria: «O que quereis que vos façam os outros, fazei-lho vós a eles», comentei. «Como está na Bíblia!», respondeu o taxista.

A perda de tempo por causa dos furos, atrasou-me muito. Por isso, começamos imediatamente o encontro do grupo de jovens e adolescentes missionários. Reparei que ninguém tinha bíblia.

No domingo, depois da segunda missa com centenas de crianças, abençoei e coloquei os lenços de cabeça das adolescentes do grupo missionário, insígnia da fase de formação em que se encontram.

Depois passei por todos os grupos de crianças e adolescentes que se reúnem nas salas da escola primária. Os formadores nunca tiveram uma Bíblia nas próprias mãos.

Cheguei ao grupo missionário. Os que foram comigo levaram a sua Bíblia. Mas os de lá? Zero. Então, propus: «Cada um dos grupos aqui presentes tem que ter a sua Bíblia! Uma Bíblia custa 15.00 dólares — cerca de 12 euros e meio, uma fortuna para esta gente sem dinheiro —: cotizem-se, façam o que quiserem, mas daqui a um mês, quero ver isso bem adiantado».

Depois, alertei os responsáveis das comunidades católicas da área e, no regresso, o pároco: «Se os protestantes e as Testemunhas de Jeová têm a Bíblia, porque a não têm os católicos?»

Quero ver se, com algumas ofertas que receba, ajudo esta gente a adquirir a própria Bíblia: eles arranjam oito dólares e eu completo os sete que faltam. Mas só quando alguém colaborar nesta iniciativa de evangelização...

Entretanto, continuamos a garantir formação bíblica, litúrgica e sobre os sacramentos, tudo em chave missionária.
P. Claudino Gomes 
Missionário Comboniano em Butembo (RD Congo)

15 de junho de 2021

CORAÇÃO: CASA DE DEUS


Finalmente, proponho contemplar o Coração Trespassado do Bom Pastor como chave interpretava para a religiosidade pós-moderna, um olhar para um futuro já presente.

Partimos de um dado inegável: a secularização está a avançar a passos largos sobretudo no hemisfério norte e as instituições religiosas estão a perder uso e influência. Os mais jovens têm menor aderência a formas organizadas de religiosidade: 27 por cento dos norte-americanos e 11 por cento dos europeus descrevem-se espirituais mas não religiosos, de acordo com um estudo do Pew Institute.

Somos agentes da pastoral. Vamos para o desemprego? Acho que não! Mas necessitamos de reciclar o serviço missionário: passar de uma abordagem institucional e estrutural à missão do coração através da mística do encontro. Uma mudança de época exige uma mudança no paradigma da missão.

Religião tem o étimo em religare (voltar a ligar, a atar, a unir) ou relegere (voltar a ler, revisitar). O prefixo RE pede uma atualização constante do ligar ou do ler.

A busca espiritual das novas gerações revela-se através estilos de vida mais harmoniosos. Os sinais dessa procura espiritual passam pela ecologia, meditação, ioga, retiros, harmonia com a criação: vidas ecologicamente sustentadas, ancoradas no vegetarianismo e no veganismo — que é uma forma radical do modo de vida vegetariano. Ambos são manifestação de uma compaixão integral pelas pessoas e pelos animais.

Por outro lado, a secularização não mata a fé, mas purifica-a, devolve-a ao essencial: a relação cordial com Deus, com os irmãos e com a natureza. É no coração que se encontra o epicentro da religião.

Jesus respondeu ao fariseu que procura uma síntese da fé que o essencial é amar a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com toda a força e ao próximo como a si mesmo, citando os livros do Deuteronómio e do Levítico. Paulo é mais radical: «toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo».

Lemos na profecia de Jeremias, capítulo 31, 31-34: «Dias virão em que firmarei uma nova aliança com a casa de Israel e a casa de Judá — oráculo do SENHOR. Não será como a aliança que estabeleci com seus pais, quando os tomei pela mão para os fazer sair da terra do Egipto, aliança que eles não cumpriram, embora Eu fosse o seu Deus — oráculo do SENHOR. Esta será a Aliança que estabelecerei, depois desses dias, com a casa de Israel — oráculo do SENHOR: Imprimirei a minha lei no seu íntimo e gravá-la-ei no seu coração. Serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Ninguém ensinará mais o seu próximo ou o seu irmão, dizendo: 'Aprende a conhecer o SENHOR!' Pois todos me conhecerão, desde o maior ao mais pequeno, porque a todos perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados» oráculo do SENHOR».

A profecia de Jeremias anuncia a passagem de uma religião organizada — a religião empedernida, gravada na pedra, do templo e da casta sacerdotal, clerical — para uma relação cordial com Deus, tatuada no coração.

Nesta aliança nova e eterna «ninguém ensinará mais o seu próximo ou o seu irmão, dizendo: 'Aprende a conhecer o SENHOR!' Pois todos me conhecerão, desde o maior ao mais pequeno, porque a todos perdoarei as suas faltas, e não mais lembrarei os seus pecados», sublinha o versículo 34.

Talvez seja por isso que a cidade santa, a nova Jerusalém descida do céu, não tem templo: «Templo, não vi nenhum na cidade; pois o senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são o seu templo».

O rasgar de alto a baixo da cortina do Templo no momento em que Jesus entrega o espírito ao Pai tem esse mesmo significado: o mistério de Deus fica acessível a todos! Não há nem barreiras nem controladores do divino para mediar a relação entre Deus e o seu povo.

Paulo fala com frequência do cristão como a nova casa de Deus. «Não sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?», pergunta aos cristãos de Corinto. Pedro diz que somos pedras de um edifício espiritual.

Por outro lado, Jesus fala à samaritana que «a água que Eu lhe der há de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna».

Daí que Etty Illesum, a jovem judia holandesa morta em Auschwitz, tenha escrito no seu diário: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo».

O Papa Francisco escreve no n.º 88 da Fratelli tutti: «A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro. Feitos para o amor, existe em cada um de nós “uma espécie de lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser”. Por isso, “o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar”.»

É o amor que nos saca da zona de conforto e nos abre a Deus e aos outros, porque «Deus é amor», como não cessa de repetir João na primeira carta.

Daí que a secularização esteja a promover a religião do coração baseada numa espiritualidade pessoal, cordial. Que necessita de recuperar a dimensão comunitária.

Contemplar o Coração de Cristo leva-nos a sermos missionários de coração e com coração que revelam o Coração da Trindade Santíssima e são ponto de encontro com os corações de todos os homens e mulheres, com o grande coração do Universo.

14 de junho de 2021

CORAÇÃO: TERRITÓRIO DA MISSÃO


Até à encíclica Evangelii nuntiandi a missão ad gentes tem uma identidade geográfica muito forte. O ad gentes físico é o âmbito da missão.

São João Paulo II, na Redemptoris missio, escreve que há «uma única missão igual em todo o lugar» (32) e «a missão ad gentes, devido ao mandato universal de Cristo, não tem fronteiras. Apesar disso, é possível identificar vários âmbitos, em que ela se concretiza, para ficarmos com um quadro real da situação».

Os âmbitos que o Papa polaco introduz são (a) territoriais; (b) mundos e fenómenos sociais novos — que incluem as grandes cidades, a juventude, os emigrantes e refugiados e as situações de pobreza; e (c) os novos areópagos das áreas culturais — em que se destacam os meios de comunicação social, as questões de JPIC (Justiça, Paz e Integridade da Criação), e os mundos da cultura, da pesquisa científica e das relações internacionais.

Por outro lado, escreveu na Christifideles laici, a exortação apostólica sobre vocação e missão dos leigos na igreja e no mundo de dezembro de 1988, que «o homem é amado por Deus! Este é o mais simples e o mais comovente anúncio de que a Igreja é devedora ao homem. A palavra e a vida de cada cristão podem e devem fazer ecoar este anúncio: Deus ama-te, Cristo veio por ti, para ti Cristo é “Caminho, Verdade, Vida”.»

Esta síntese revoluciona o conteúdo do anúncio: passa do querigma (Jesus nasceu, viveu e morreu por nós, o Pai ressuscitou-o e quem acreditar nele e se converter tem a vida eterna) para o amor fontal: Deus ama-te.

Na mesma linha, o Papa Francisco escreveu na Evangelii gaudium: «Hoje que a Igreja deseja viver uma profunda renovação missionária, há uma forma de pregação que nos compete a todos como tarefa diária: é cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos. É a pregação informal que se pode realizar durante uma conversa, e é também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser discípulo significa ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho, num caminho». 

O anúncio do amor é sobretudo um diálogo de corações. Daí que a Conferência Episcopal Portuguesa tenha recordado na nota pastoral Tudo, todos e sempre em missão a anunciar o Ano Missionário de 2018-2019 que o coração é, de facto, mais que a geografia, o território da missão.

«Do encontro com a Pessoa de Jesus Cristo nasce a Missão que não se baseia em ideias nem em territórios, mas “parte do coração” e dirige-se ao coração, uma vez que são “os corações os verdadeiros destinatários da atividade missionária do Povo de Deus”.», os bispos escrevem.

O Papa Francisco vai na mesma linha quando regista na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2021 que «a boa nova do Evangelho difundiu-se pelo mundo, graças a encontros pessoa a pessoa, coração a coração: homens e mulheres que aceitaram o mesmo convite – «vem e verás –, conquistados por um «extra» de humanidade que transparecia brilhou no olhar, na palavra e nos gestos de pessoas que testemunhavam Jesus Cristo».

O escritor católico japonês Shusaku Endo, no seu romance Silêncio, recria algumas cartas do P. Sebastião Rodrigues supostamente escritas de Macau em 1640 enquanto o jesuíta português aguarda, ansioso, com um colega, o barco que os levará clandestinos ao Japão para ajudar os católicos barbaramente perseguidos pelas autoridades e descobrir o que verdadeiramente se passou com o P. Cristóvão Ferreira, antigo formador que diziam ter apostatado. A obra é um verdadeiro tratado de missiologia.

Na primeira carta, o missionário português escreve: «Cinco dias mais tarde e soará a hora da partida. Nenhuma outra bagagem levaremos para o Japão além do coração».

Sendo o coração o território da missão, o coração é também o meio da evangelização. Contemplar o Bom Pastor do Coração Trespassado é aprender dele a amar até ao fim, até à consumação. Aprender sobretudo a compaixão, esse comover-se até às entranhas, esse «tripar» — como propõe D. António Couto — que era a reação visceral de Jesus perante os males que afligiam os seus ouvintes.

Jesus Cristo não é uma ideia, é um amor que se vive e se partilha. Na antropologia bíblica pensamos com o coração e amamos com as entranhas. Para sermos missionários com coração temos que passar da razão para o coração. Somos racionalistas por (de)formação e muitas vezes tentamos camuflar os sentimentos.

Para sermos missionários com coração temos de perder o medo do risco de amar e ser amados. Eu entendi plenamente a força da expressão Deus ama-me quando fiz a experiência de um amor reciprocado.

O Papa Francisco transformou a ternura na quarta virtude teologal. Temos que desenvolver o hemisfério direito do nosso cérebro para sermos mais afetivos em vez de querermos ser mais efetivos.

Francisco escreve na Laudato Si’ que devemos «ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres». 

Este ouvir holístico faz de nós missionários da ecologia integral. Os nossos antepassados desmatavam e caçavam por necessidade — alguns faziam-no pelo prazer dúbio de matar. Hoje, somos chamados a cuidar da casa comum e de todos os seus habitantes através de vidas mais sóbrias e sustentáveis, reduzindo o consumo e aumentando a reciclagem e separação de resíduos.

O Vaticano lançou no final de maio a Plataforma de ação Laudato si’ com um percurso de sete anos para atualizar a aplicação da encíclica que fez cinco anos.

Diz: «a Adoção de Estilos de Vida Sustentáveis se baseia na ideia de suficiência e de promover a sobriedade no uso dos recursos e de energia. As ações podem incluir a redução do desperdício e a reciclagem, a adoção de hábitos alimentares sustentáveis (optando por uma alimentação à base de plantas e reduzir o consumo de carne), maior uso de transporte público, mobilidade ativa (caminhada, bicicleta) e evitar itens de uso único (por exemplo, plástico, etc.)».

Alguns gestos missionários concretos: reciclar as cápsulas do café — são muito práticas, mas também poluentes — separando a borra do plástico ou alumínio; comprar a granel (em em vez de pequenas embalagens), comer menos carne e mais leguminosas…

A missão é uma torrente de amorosidade do coração da Trindade para o coração da Criação inteira através dos nossos corações.

13 de junho de 2021

A MÍSTICA DE COMBONI


Daniel Comboni fez uma síntese de duas devoções — do Sagrado Coração de Jesus e do Bom Pastor — no ícone comboniano do Coração Trespassado do Bom Pastor, aprofundado pelo P. Francesco Pierli.

Na carta pastoral para a consagração do Vicariato ao Sagrado Coração que escreveu de El Obeid a 1 de Agosto de 1873 na qualidade de pró-vigário apostólico em parceria com o pró-secretário P. José Franceschini, exclama: «estamos profundamente convencidos de que […] do seio misterioso deste divino Coração trespassado brotarão torrentes de graça e rios de bênçãos celestes sobre este grande povo da África Central que nos é tão dilecto e sobre o qual ainda pesa tremendo, ao cabo de tantos séculos, o anátema de Cam».

Meia dúzia de anos depois, na Relação à Sociedade de Colónia escrita em Cartum a 15 de Fevereiro de 1879, o santo bispo afirma: «O Sagrado Coração de Jesus palpitou também pelos povos negros da África Central e Jesus Cristo morreu igualmente pelos Africanos. Jesus Cristo, o Bom Pastor, acolherá também a África Central dentro do seu redil. E o missionário apostólico não pode percorrer senão o caminho da cruz do divino Mestre, semeada de espinhos e fadigas de todo o género. […] Portanto, o verdadeiro apóstolo não deve ter medo de nenhuma dificuldade, nem sequer da morte. A cruz e o martírio são o seu triunfo».

Estes dois parágrafos servem de enquadramento teológico para entendermos a mística que Comboni viveu e nos propõe «tendo sempre os olhos postos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salvação das almas» — como escreveu no célebre Capítulo X sobre Normas específicas para cultivar o espírito e as virtudes dos alunos do instituto nas Regras de 1871.

Todos somos pastores, ministramos outras pessoas. Ser pastores segundo o Coração de Deus significa contemplar o Crucificado nos crucificados da sociedade — os descartados, os empobrecidos, os mais pobres e abandonados — amando-O ternamente através do serviço ministerial a esses ícones, presença real do Senhor que continua a sofrer e a morrer nas cruzes da pobreza envergonhada, do desemprego, da xenofobia, do racismo, da violência doméstica e sexual, da exploração dos imigrantes ilegais, da solidão, da doença, da morte antes do tempo.

Podemos pastorear através do imperativo moral, combatendo o mal com a moralidade, tentando controlar as opções essenciais das pessoas com quem trabalhamos, às vezes com discursos manipuladores. É uma opção que pode levar ao moralismo como meio de serviço missionário e ao consequente distanciamento em relação aos «pecadores», porque pensamos habitar um patamar mais elevado. Essa era a tentação dos fariseus.

Contemplando o Coração aberto do Bom Pastor também aprendemos a ser pastores através das feridas das pessoas que nos são confiadas, do seu pecado pessoal e social. Permitimos que o nosso coração seja trespassado pela espada das dores de quem cuidamos?

O velho Simeão profetizou a Maria, a mãe de Jesus: «uma espada de dor trespassará a tua própria alma». Este oráculo pode servir-nos como inspiração: na relação com as pessoas podemos deixar-nos trespassar pelas suas dores para que sejam curados pelas nossas chagas — como Jesus nos curou através das suas e manteve-as como sinal de triunfo e ressurreição — ou cairmos na tentação do moralismo (que por norma aplicamos sobretudo a terceiros).

Karl Rahner escreve em O cristão do futuro que o cristão do século XXI ou será místico ou não será cristão. Define a mística como «uma experiência de Deus autêntica, que brota do interior da existência».

O mesmo de aplica a nós: o missionário do século XXI ou é um místico ou não é missionário. O discípulo missionário é aquele que fica com o Mestre para aprender dele e é enviado a facilitar a experiência do amor terno e misericordioso da Trindade aos que têm fome e sede de Deus.

No fundo, é este o dinamismo evangelizador que João preconiza no prólogo da primeira carta: «O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, — de facto, a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamo-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós — o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Escrevemo-vos isto para que a nossa alegria seja completa».

A contemplação é uma boa terapia para as arritmias do coração missionário. A gramática da contemplação conjuga-se com ouvir, ver, tocar a Palavra da Vida nas Escrituras, nos sacramentos e na vida do dia-a-dia. Só assim podemos sincronizar o nosso coração com o de Cristo para baterem juntos pelas mesmas pessoas. Só assim é que somos pastores segundo o Coração de Deus que conduzem o rebanho do Senhor com inteligência e sabedoria.

A imagem que ilustra esta reflexão é um ícone usado pelos Comboniamos no Egito nas atividades de animação missionária. Foi inspirado no chamado ícone da amizade ou do abraço, uma obra copta do século VI hoje exposta no Museu do Louvre para fazer memória de São Menas «que deu bom testemunho do Salvador».

A amizade, o abraço que Comboni recebe de Jesus, é a amizade e o abraço para os africanos. A contemplação do Coração Trespassado do Bom Pastor leva-nos ao mesmo dinamismo: darmos daquilo que recebemos, falarmos daquilo que sabemos, testemunharmos aquilo que vivemos. Paulo é claro: «acreditamos e por isso falamos».

O Papa Francisco recorda que «a missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo».

O diálogo tenso e intenso entre o Senhor ressuscitado e Pedro na aparição junto ao Mar de Tiberíades ilustra as dinâmicas desta paixão.

Jesus renova o convite a Simão, filho de João, ao seguimento depois de lhe perguntar «Amas-me?» (duas vezes) e «És meu amigo?» (uma vez). Pedro repete três vezes: «Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo». De cada vez que Pedro confessa a amizade por Jesus, recebe o imperativo vocacional «apascenta os meus cordeiros», «pastoreia as minhas ovelhas», «apascenta as minhas ovelhas».

Os missionários combonianos somos testemunhas do amor da Trindade Santíssima através da relação amiga com o Senhor ressuscitado vivida na vida comunitária. Só assim conseguimos a resiliência para sermos fiéis à nossa vocação de testemunhas do amor misericordioso de Deus expresso por Jesus através da sua vida e do Seu mistério pascal, através do coração trespassado pela lança e pelas nossas dores.

12 de junho de 2021

CORAÇÃO MANSO E HUMILDE


Jesus faz-nos uma proposta irrecusável para um percurso de bem-estar integral e holístico:

«Vinde a mim, todos os que estais fatigados e oprimidos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossa vidas, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve».

Jesus faz esta proposta depois de uma breve oração de louvor ao Pai, porque os pequeninos, mais que os sábios e entendidos, são capazes de acolher a revelação de Deus manifestada n’Ele.

Esta oferta de Jesus ganha uma dimensão gigante na sociedade psicótica em que vivemos. Jesus faz uma oferta concreta aos fatigados e oprimidos, ávidos de repouso para os seus corpos e corações: propõe a mansidão e humildade de coração como remédio para o cansaço e as depressões que afetam a saúde física e mental.

Em 2018, os portugueses compraram mais de 10 milhões de embalagens de ansiolíticos e quase nove milhões de caixas de antidepressivos. Portugal é o quinto maior consumidor de antidepressivos de entre os 29 países da OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.

Numa sociedade neurótica como a nossa, Jesus propõe uma cura natural: um coração manso e humilde como resposta às psicoses e depressões que advêm da cultura altamente competitiva sem normas nem balizas humanizadoras.

O Papa Francisco nota muito sensatamente que «se vivermos tensos, arrogantes diante dos outros, acabamos cansados e exaustos».

E propõe uma saída: «quando olhamos os seus limites e defeitos com mansidão, sem nos sentirmos superiores, poderemos dar-lhes uma mão e evitamos gastar energias em lamentações inúteis».


OS PASSOS

A oferta que Jesus nos faz tem cinco passos:

1. Vinde a mim…

O primeiro passo que Ele nos propõe é sair de nós, da zona de conforto e das nossas dores, do eu para ir até Ele, da autorreferencialidade para a referência Trinitária, o Deus-família, o Deus-amor.

O psiquiatra Viktor E. Frankl anota no seu livro de memórias de três anos em quatro campos de extermínio nazis que «quanto mais uma pessoa se esquece de si própria — entregando-se a uma causa ou ao amor de outra pessoa — mais humana se torna e mais se efetiva ou atualiza».


2. Reconhecer a fadiga e a opressão

O convite de Jesus é para os fatigados e oprimidos. Para aceitar o seu convite é necessário tomar consciência e nomear a fadiga e a opressão que pesam sobre nós, as suas causas. Algumas são pessoais, outras são institucionais, há ainda as sociais e culturais. O primeiro passo para a cura é assumir a doença.


3. Aceitar o descanso de Jesus

Jesus dá-nos o descanso do seu amor, da sua graça, do seu colinho, da sua paz. Somos livres de o aceitar ou não.


4. Tomar o seu jugo

Nas Escrituras Judaicas o jugo é a Torah, a Lei do Senhor. No tempo de Jesus a Lei estava codificada em 613 prescrições: 365 proibições (mandamentos negativos) e 248 obrigações (mandamentos positivos). Um fardo moral muito pesado na mente e no coração do crente devoto. Jesus resume a Lei no tríplice amor: a Deus, ao próximo e ao próprio. João, inclusive, diz que o amor a Deus se traduz no amor ao próximo. O jugo do Senhor é a canga do amor.


5. Aprender a mansidão e a humildade d’Ele

Jesus diz que o remédio para a fadiga e a opressão que se abatem sobre nós está num coração manso e humilde.

A mansidão de Jesus vem da sua humildade. O apóstolo Paulo insere um hino cristológico na carta que escreveu aos cristãos de Filipos, a cidade do norte da Grécia que foi porta de entrada do cristianismo na Europa. Antes, desafia, em jeito de introdução: «tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Jesus Cristo».

O hino canta o processo de esvaziamento que Jesus empreendeu através do mistério da encarnação: sendo Deus torna-se servo, homem com os humanos, obediente até à morte e morte de cruz. Por isso é exaltado, proclamado Senhor.

O Filho, a Palavra, «humildou-se» e montou a sua tenda entre nós, peregrino com os peregrinos. Ele é o GPS do processo de apaziguamento para a mansidão.

No Sermão do Monte Jesus bendiz e felicita os mansos «porque eles herdarão a terra». 

Celebrar o seu coração é assumir a humildade e mansidão como formas de vida num mundo tão devoto do sucesso individual, da fama, da concorrência sem limites.

11 de junho de 2021

O TRIUNFO DO CORAÇÃO


A devoção ao Sagrado Coração de Jesus nasce do relato da morte de Jesus segundo o evangelho de São João e a sua solenidade é celebrada pela Igreja universal desde 1856. Foi instituída pelo papa Pio IX, o Romano Pontífice com quem Daniel Comboni teve uma relação muito forte.

Os grandes promotores da devoção foram, dois séculos antes, São João Eudes (1601-1680), padre francês que escreveu os primeiros textos para a celebração litúrgica dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria; e Santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690), monja do mosteiro de Paray-le-Monial, em França, a quem Jesus se manifestou durante 17 anos e pediu uma particular devoção ao seu coração. A basílica da Estrela, em Lisboa é a primeira igreja dedicada ao Coração de Jesus.

A espiritualidade do Sagrado Coração de Jesus representa o triunfo do otimismo da graça, promovido pelos jesuítas, contra o pessimismo do jansenismo. O Dicionário Michaelis define o jansenismo como «doutrina de Cornélio Jansênio (1585-1638), teólogo holandês e bispo de Ipres, que nega o livre-arbítrio e enfatiza a predestinação, afirmando que a salvação do homem depende da vontade do criador e não da sua disposição para as boas obras». Em sentido figurativo é «ética severa e austeridade, moral e religiosa, extrema».

A contemplação do Coração de Cristo mais que uma devoção é uma espiritualidade: marca o querer e o viver rezado na jaculatória «Jesus manso e humilde de coração, fazei o meu coração semelhante ao Vosso».

É uma espiritualidade muito atual e missionária: a cultura contemporânea, marcada pelo individualismo narcisista globalizado, precisa de coração para ser uma cultura de vida. Na Igreja, Santa Teresa de Lisieux queria ser o amor. No mundo, os cristãos temos de ser o coração. Que deve palpitar ao ritmo das batidas do de Jesus.

Essa foi a intuição vivida por S. Daniel Comboni. Escreveu: «levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana, sentiu que o seu coração palpitava mais fortemente; e uma força divina pareceu empurrá-lo para aquelas bárbaras terras, para apertar entre os seus braços e dar um ósculo de paz e de amor àqueles infelizes irmãos seus».

O Papa Francisco descreve esse percurso contemplativo com a simplicidade criativa que lhe é própria: «unidos a Jesus, procuramos o que Ele procura, amamos o que Ele ama».

Intitulei esta reflexão «O triunfo do coração». Inspirei-me na revelação da Senhora de Fátima aos pastorinhos a 13 de julho de 1917: «Por fim o meu coração imaculado triunfará». Fátima é a mensagem do triunfo do coração.

Interpretei esta vitória cordial à luz da iconografia oriental em que o coração de Maria é representado pelo Jesus-Menino.

O triunfo do coração de Maria é o triunfo do coração de Jesus. Aliás, esta é também uma intuição comboniana: os dois corações «trabalham» juntos e são corações triunfadores.

Sublinhando o sucesso da duas irmãs que prepararam três escravas para o batismo, Daniel Comboni escreveu no Relatório à Sociedade de Colónia: «Por fim triunfou a graça dos Corações de Jesus e de Maria».

6 de junho de 2021

NUS… ESCONDIDOS

 

É costume vermos o pecado em termos das coisas que fazemos ou deixamos por fazer. O capítulo terceiro do livro bíblico do Génesis propõe uma interpretação diferente: mais que coisas, o pecado é sobretudo um estado, uma atitude de vida, uma autorreferencialidade. Um querer ser senhor de si mesmo e de tudo.

Eva e Adão tinham à sua disposição todo o Jardim de Deus menos a árvore do meio. Dessa não podiam comer.

A serpente disse a Eva que Deus lhes proibiu comer dos frutos da árvore do meio, porque abrir-lhes-ia os olhos e seriam como Deus conhecendo o bem e o mal.

Porque o fruto proibido era atraente e precioso para esclarecer a inteligência — mas não era uma maçã,  a mulher comeu e partilhou com o marido. De facto, abriram-se-lhes os olhos e … viram que estavam nus. Tiveram que fazer das folhas da figueira roupa interior. Lingerie muito incómoda!!!

Deus chega para o passeio do entardecer, mas Adão falha o encontro.

Deus chama-o: «Onde estás?». Ele responde: «Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me.»

Deus sabe porque se sentiam nus e pergunta porquê comeram o fruto da árvore proibida. E começa o jogo do passa as culpas: foi a mulher, foi a serpente…

Resultado: além de se descobrirem nus e terem vergonha da nudez, foram expulsos do paraíso para ganhar a vida com suor e dor. Queriam tudo e perderam tudo…

Mas Deus fez-lhes túnicas de peles e vestiu-os. A Sua ternura não tem limites.

No evangelho (Marcos 3, 20-23) Jesus é confrontado pelos familiares e pelos escribas.

Os primeiros, ouvindo estórias do seu comportamento, vieram de Nazaré a Cafarnaum para o levarem consigo porque «está fora de si».

Os segundos fizeram mais de 180 quilómetros para testar a ortodoxia de Jesus. Diabolizaram-no, declararam-no possesso,  membro de um culto satânico.

Jesus desmonta o absurdo da acusação: Belzebu (o deus sírio das moscas) não se pode combater a si mesmo, porque se auto-destrói.

E diz: «Tudo será perdoado aos filhos dos homens, os pecados e as blasfémias que tiverem proferido; mas aquele que blasfemar contra o Espírito Santo jamais será perdoado; é réu de pecado eterno» (versículos 28 e 29).

Pecar contra o Espírito Santo é recusar ver a bondade de Deus a trabalhar no outro. O que os doutores da lei fizeram foi isso: como não conseguiam desmontar a mensagem de Jesus, atiraram-se ao mensageiro. Este é um comportamento comum nos nossos dias, sobretudo na política.

O Catecismo da Igreja Católica explica porque o pecado contra o Espírito Santo é eterno. 

No parágrafo 1864 diz: «não há limites para a misericórdia de Deus, mas quem recusa deliberadamente receber a misericórdia de Deus, pelo arrependimento, rejeita o perdão dos seus pecados e a salvação oferecida pelo Espírito Santo».

Aos familiares Jesus responde que tem uma nova família: não é genética, feita de laços de sangue, mas pelo fazer a vontade de Deus.

Os familiares acusavam Jesus de estar fora de si. Ele estava fora de si, não porque era louco mas porque vivia inteiramente para os outros. Por isso nem tempo tinha para comer ou descansar. Os outros são o centro da sua vida.

Sair de si é o caminho curativo que somos chamados a percorrer.

O psiquiatra Viktor E. Frankl nota em O Homem em Busca de um Sentido, o seu livro de memórias dos campos de extermínio nazis que «quanto mais uma pessoa se esquece de si própria — entregando-se a uma causa ou ao amor de outra pessoa — mais humana se torna e mais se efetiva ou atualiza».

Este sair de si, esta loucura sagrada é que nos salva e redime dos nossos pecados.

5 de junho de 2021

VACINAÇÃO A CONTA-GOTAS


A imunização da África ao novo coronavírus decorre lentamente.

O processo de vacinação contra a covid-19 nos países africanos está muito lento devido ao atraso nas entregas e falta de vacinas que, com o aparecimento de estirpes mais contagiosas, pode provocar uma terceira vaga de infecções no continente. O alerta foi dado no início de Maio por Matshidiso Moeti, directora regional da Organização Mundial de Saúde para a África.

Nessa altura, a África tinha recebido só um por cento das vacinas administradas globalmente. Metade dos 37 milhões de doses distribuídas aos africanos tinham sido aplicadas, mas só o Ruanda, Senegal, Gana, Togo, Tunísia, Suazilândia e Botsuana conseguiram esgotar as reservas. O Sudão do Sul e o Maláui deixaram expirar e destruíram mais de 75 mil doses. A República Democrática do Congo, que recebeu 1,8 milhões de doses, só conseguiu aplicar cinco mil, e distribuiu os 1,3 milhões restantes pelos países vizinhos. Globalmente, tinham sido administradas cerca de 150 doses por mil pessoas; na África Subsariana a média rondava as meras oito doses por mil.

As Seicheles, um arquipélago de 115 ilhas no Índico, é a grande história de sucesso no continente e no globo: 61 por cento dos quase 98 mil habitantes já tomou as duas doses da vacina. Contudo, no início de Maio o país estava às voltas com uma nova vaga de infecções. Trinta e sete por cento das vítimas estavam vacinadas.

Em África, o processo de imunização contra a covid-19 tem sido afectado sobretudo pela falta de vacinas. A AstraZeneca é a marca de eleição: é barata e fácil de transportar, conservar e aplicar. Mas em Março o Governo indiano proibiu o Serum Institute – que a produz sob licença – de exportar o antígeno, porque precisa dele para fazer frente à enorme vaga de covid-19 no país.

As vacinas chegam aos países africanos através da COVAX (um mecanismo global de aquisição e distribuição de vacinas), da União Africana e de ofertas da China, Rússia, Emirados Árabes Unidos e Índia. A África do Sul comprou um milhão de doses da AstraZeneca para depois as vender à União Africana porque a vacina oferece pouca protecção à nova variante sul-africana.

O fornecimento e distribuição das vacinas, agudizado por redes viárias em mau estado e falta de meios económicos para comprar material de protecção pessoal e pagar aos vacinadores, aliado à falta de um planeamento eficaz das campanhas de vacinação, à desinformação através das redes sociais e à má publicidade que a AstraZeneca recebeu, estão entre as causas que têm retardado a vacinação na África. Um em cada cinco africanos inquiridos num estudo recente respondeu que não tenciona ser vacinado.

Há alguma esperança! A Johnson & Johnson prometeu fornecer à União Africana 400 milhões de doses da sua vacina de toma única. A proposta do presidente norte-americano, Joe Biden, de suspender as patentes das vacinas contra o SARS-CoV-2 pode ser uma boa notícia, porque a África do Sul, Egipto, Etiópia, Marrocos, Senegal e Tunísia têm capacidade e tecnologia de produção de vacinas.

3 de junho de 2021

HOSPITALIDADE DIVINA


Quando vivi na Etiópia andava sobretudo a pé. Nas idas para as capelas era normal cruzar-me com miúdos que guardavam o gado. Os gujis são ganadeiros. Se algum miúdo estivesse a comer uma espiga de milho cozido ou assado, invariavelmente partia-a a meio e dava-me metade. Custava-me aceitar, porque o pequeno pastor não tinha mais comida até chegar a casa. Mas não aceitar a sua hospitalidade e partilha era má educação.

Hoje a Igreja celebra a solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo.

Jesus quer comer a sua Páscoa connosco cada vez que celebramos a Eucaristia. Não na sala de cima num bairro de Jerusalém, mas na sala do nosso coração.

Na Eucaristia, Ele prepara a mesa e é mesa. Prepara a comida e faz-se comida.

«Tomai, todos, e comei: isto é o meu Corpo, que será entregue por vós […] Tomai e bebei» — repete Jesus cada vez que celebramos a missa.

Não aceitar comungá-lo é rejeitar a hospitalidade divina.

Jesus é o novo Cordeiro imolado da Páscoa judaica: sangue que marca a casa dos hebreus e protege os primogénitos do anjo da morte. Carne para o caminho longo da libertação que foi o êxodo do Egito para a terra da promessa. Comida à pressa, de pé, com a cintura apertada e cajado na mão, prontos para andar.

Infelizmente, fomos construindo paulatinamente uma teologia da indignidade em relação à comunhão do corpo e sangue do Senhor glorioso, que nos afasta do altar.

O Papa Francisco escreveu no seu primeiro documento A alegria do Evangelho que a Eucaristia é a plenitude da vida pascal. 

E acrescenta: «não é prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos». 

Para ti e para mim.

Participar na missa sem comungar é um passo certo para a anorexia espiritual.

Por outro lado, comungar o Senhor é fazer comunhão com a comunidade dos crentes.

A Didaqué, o primeiro catecismo cristão do século I, usa uma imagem muito bonita quando explica a Eucaristia: «da mesma forma como este pão partido havia sido semeado sobre as colinas e depois recolhido para se tornar um, assim também seja reunida a tua Igreja desde os confins da terra no teu Reino porque tem o é o poder e a glória, por Jesus Cristo, para sempre».

Jesus ordenou: «Fazei isto em memória de mim».

Fazer memória do Senhor é repetir os seus gestos eucarísticos na ceia da sala de cima. 

É transformar-se em eucaristia como Ele: pão partido e repartido para a salvação do mundo.

2 de junho de 2021

O P. INO PARTIU


O P. António Ino regressou às 8h30 desta manhã à casa do Pai depois de doença curta e de uma vida longa e dedicada ao Senhor da Missão.

Completava 91 anos no dia 25 de junho.

O comboniano italiano trabalhou 29 anos em Moçambique e era conhecido da maioria dos padres e bispos do país. Foi durante muitos anos diretor espiritual do Seminário Maior de Santo Agostinho, na Matola. Há uns três anos foi pregar o retiro aos seminaristas maiores moçambicanos.

O P. António deu 36 anos à província portuguesa onde chegou em 1955 para estudar teologia em Viseu.

Dedicou os últimos 18 anos ao ministério das confissões e ao serviço da capela do Seminário das Missões, em Viseu.

Deixa em herança a sua alegria e paixão missionária, a sua dedicação generosa e a sua simplicidade.

«Damos graças a Deus pela longa vida missionária deste nosso irmão e rezamos para que o Senhor o acolha nas moradas eternas», escreveu o P. Fernando Domingues, superior provincial dos combonianos em Portugal, ao comunicar a notícia do falecimento do P. António.

O funeral está marcado para sexta-feira, 4 de junho, às 11h00 no Seminário das Missões. O corpo vai descansar no talhão dos Combonianos no Cemitério de Santiago, emViseu.