26 de setembro de 2023

SÃO DANIEL COMBONI: APÓSTOLO DE ÁFRICA E DA MISSÃO


No caminho de catequeses sobre a paixão evangelizadora, ou seja, o zelo apostólico, meditemos hoje sobre o testemunho de São Daniel Comboni. Ele foi um apóstolo cheio de zelo pela África. Sobre aqueles povos, escreveu: «Apoderaram-se do meu coração, que só vive para eles» (Escritos, 941), «morrerei com a África nos meus lábios» (Escritos, 1441). É bonito... E a eles dirigia-se assim: «O mais feliz dos meus dias será quando eu puder dar a vida por vós» (Escritos, 3159). Trata-se da expressão de uma pessoa apaixonada por Deus e pelos irmãos que servia em missão, a propósito dos quais não se cansava de recordar que «Jesus Cristo sofreu e morreu também por eles» (Escritos, 2499; 4801).

Afirmava-o num contexto caraterizado pelo horror da escravatura, de que foi testemunha. A escravatura “coisifica” o homem, cujo valor se reduz a ser útil a alguém ou a algo. Mas Jesus, Deus que se fez homem, elevou a dignidade de cada ser humano, desmascarando a falsidade de qualquer escravatura. À luz de Cristo, Comboni adquiriu consciência do mal da escravatura; além disso, compreendeu que a escravatura social se arraiga numa escravatura mais profunda, a do coração, do pecado, da qual o Senhor nos liberta. Portanto, como cristãos, somos chamados a lutar contra todas as formas de escravatura. Mas infelizmente a escravatura, assim como o colonialismo, não é uma recordação do passado, infelizmente! Na África tão amada por Comboni, hoje dilacerada por numerosos conflitos, «depois daquele político, desencadeou-se (...) um “colonialismo económico”, igualmente escravizante (...). É um drama perante o qual o mundo economicamente mais avançado muitas vezes fecha os olhos, os ouvidos e a boca». Por isso, renovo o meu apelo: «Deixai de sufocar a África: ela não é uma mina a explorar, nem um solo a saquear» (Encontro com as Autoridades, Kinshasa, 31 de janeiro de 2023).

Voltemos à vicissitude de São Daniel. Depois de ter passado um primeiro período na África, teve que abandonar a missão por motivos de saúde. Demasiados missionários tinham morrido por ter contraído doenças, devido ao escasso conhecimento da realidade local. Mas se outros abandonavam a África, Comboni não. Após um período de discernimento, sentiu que o Senhor lhe inspirava um novo caminho de evangelização, que ele resumiu com as seguintes palavras: «Salvar a África com a África» (Escritos, 2741 s.). Trata-se de uma intuição poderosa, não há colonialismo algum nisto: é uma intuição poderosa que contribuiu para renovar o compromisso missionário: as pessoas evangelizadas não eram apenas “objetos”, mas “sujeitos” da missão. E São Daniel Comboni desejava tornar todos os cristãos protagonistas da ação evangelizadora. E com este espírito, pensou e agiu de modo integral, envolvendo o clero local e promovendo o serviço laical dos catequistas. Os catequistas são um tesouro da Igreja: os catequistas são aqueles que vão em frente na evangelização. Assim concebia também o desenvolvimento humano, interessando-se pelas artes e profissões, favorecendo o papel da família e da mulher na transformação da cultura e da sociedade. E como é importante, ainda hoje, fazer progredir a fé e o desenvolvimento humano a partir do interior dos contextos de missão, em vez de neles transplantar modelos externos, ou limitar-se a um assistencialismo estéril! Nem modelos externos, nem assistencialismo. Haurir da cultura dos povos o caminho para fazer a evangelização. Evangelizar a cultura e inculturar o Evangelho: caminham juntos!

No entanto, a grande paixão missionária de Comboni não foi principalmente fruto do esforço humano: ele não era impelido pela sua coragem, nem motivado apenas por valores importantes, como a liberdade, a justiça e a paz; o seu zelo nascia da alegria do Evangelho, alimentava-se do amor de Cristo e levava ao amor a Cristo! São Daniel escreveu: «Uma missão tão árdua e laboriosa como a nossa não pode viver de aparências, de sujeitos de pescoço torto, cheios de egoísmo e de si próprios, que não se preocupam, como deviam, com a saúde e a conversão das almas». Este é o drama do clericalismo, que leva os cristãos, até os leigos, a clericalizar-se e a transformá-los - como se diz aqui - em sujeitos de pescoço torto, cheios de egoísmo. Esta é a chaga do clericalismo. E acrescentava: «É preciso fazê-los arder de caridade, com a sua fonte em Deus e no amor de Cristo; e quando se ama verdadeiramente a Cristo, então as privações, os padecimentos e o martírio são docilidades» (Escritos, 6656). O seu desejo era ver missionários fervorosos, alegres, comprometidos: missionários - escrevia - «santos e capazes. [...] Primeiro: santos, isto é, alheios ao pecado e humildes. Mas não basta: é necessária a caridade para tornar os sujeitos capazes» (Escritos, 6655). Portanto, para Comboni a fonte da capacidade missionária é a caridade, em particular o zelo de fazer seus os sofrimentos dos outros.

De resto, a sua paixão evangelizadora nunca o levou a agir como solista, mas sempre em comunhão, na Igreja. «Só tenho a vida para consagrar à saúde daquelas almas», escreveu, «gostaria de ter mil para as consumir com este objetivo» (Escritos, 2271).

Irmãos e irmãs, São Daniel dá testemunho do amor do bom Pastor, que vai em busca de quem se perdeu e dá a vida pelo rebanho. O seu zelo foi enérgico e profético, opondo-se à indiferença e à exclusão. Nas cartas recordava com entusiasmo a sua amada Igreja, que durante demasiado tempo tinha esquecido a África. O sonho de Comboni é uma Igreja que faça causa comum com os crucificados da história, para experimentar com eles a ressurreição. Neste momento, dou-vos uma sugestão. Pensai nos crucificados da história de hoje: homens, mulheres, crianças, idosos que são crucificados por histórias de injustiça e de domínio. Pensemos neles e oremos! O seu testemunho parece reiterar a todos nós, homens e mulheres de Igreja: “Não esqueçais os pobres, amai-os, pois neles está presente Jesus crucificado, à espera de ressuscitar”. Não vos esqueçais dos pobres: antes de vir aqui, tive um encontro com legisladores brasileiros que trabalham a favor dos pobres, que procuram promover os pobres com a assistência e a justiça social. E eles não se esquecem dos pobres: trabalham pelos pobres. Digo-vos: não vos esqueçais dos pobres, pois são eles que vos abrirão a porta do Céu.

Papa Francisco

20 de setembro de 2023

BABEL: A TENTAÇÃO DO UM


O Génesis, o livro que abre as Escrituras, conta uma estória intrigante: um grupo de pessoas, unidas pela mesma língua, emigraram do Oriente e, ao chagarem a uma planície em Chinear, deitaram mãos ao barro para construirem uma cidade e uma torre que teria o céu por limite.

Deus, na sua infinita curiosidade, desceu para ver a cidade e a torre que estavam a ser edificadas com tijolos e betume, evocando os zigurate da Babilónia, torres de menagem muito altas dedicadas aos deuses.

E o Senhor disse: «Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projetos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros» (Génesis 11: 6-7).

A narração tem um final inesperado: O Senhor dispersou-os por toda a Terra e eles pararam com a construção da cidade que foi batizada de Babel.

Esta narrativa primordial pode ser lida como um ato de sabotagem da parte de Deus contra a concorrência daquele povo sem nome.

De facto, uma das raízes do vocábulo Babel pode ser confusão. Deus confundiu-os e espalhou-os pelo mundo — e obrigou-nos a aprender línguas estrangeiras — porque o empreendimento no vale de Chinear punha em causa a sua soberania incondicional.

Aliás, esta é a leitura mais comum desta estória que explica a origem das línguas diferentes e da colonização de toda a Terra que, segundo a evidência científica, começou a partir de África.

Mas há outra leitura mais interessante.

Reparemos no texto: um povo, com uma linguagem única e um único vocabulário, queria construir num vale uma cidade e uma torre para adquirir um nome.

O numeral um é a chave de leitura da estória, que representa uma grande tentação.

Quando visitei Moçambique em 1990 para participar na ordenação de um colega comboniano e fazer uma reportagem sobre o país, a rádio nacional repetia à saciedade o jingle — cito de cor — «Do Rovuma ao Maputo, um país, uma língua, um partido». A ordem e as palavras podem ser diferentes.

Os regimes ditatoriais e totalitários amam o número um: a unidade nacional, o partido único, o pensamento único contra a diversidade das opções políticas, a essência da democracia. 

E Deus? Ele ama o plural! 

Em Fevereiro de 2019, o Papa Francisco escreveu juntamente com Grande Imã de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb no Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum que «o pluralismo e a diversidade de religiões, cor, sexo, raça e língua são despejados por Deus na Sua sabedoria, por meio da qual ele criou os seres humanos».

O Papa argentino, durante a sua participação na Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023, explicou que «um significa solidão, fechamento, pretensão de autossuficiência». Ele tem afirmado repetidamente que a realidade é poliédrica.

Babel também pode significar Porta de Deus. 

Vamos até Ele através da pluralidade das línguas, das culturas e dos povos. Ele quis assim. 

O último livro da Bíblia, o Apocalipse de São João descreve o conjunto dos redimidos como «uma multidão enorme que ninguém podia contar, de todas as nações tribos, povos e línguas» diante do Cordeiro a aclamar «a salvação pretende ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro» (Apocalipse 7, 9-10).

Daí que o missionário tenha de descalçar as sandálias da sua «etnocentricidade» diante do povo que o acolhe e respeitar a diversidade, porque foi criada e é amada por Deus!

16 de setembro de 2023

VALSA DA VIDA


 O meu coração é um salão de dança,

espaço mega, luminoso, acolhedor,
onde recebo e trago quem amo!
Por direito próprio.
Uma multidão transcontinental,
que me energiza,
humaniza,
revitaliza.
Com cada querida e querido
no meu coração
danço a valsa da vida!
São dom do Deus que dança,
com quem aprendo os passos simples e complicados
da valsa do humano viver,
amar.
A melodia da valsa?
O amor da amizade,
música profunda e harmoniosa
que (pre)enche o palco da vida.
A orquestra?
O palpitar ritmado de centenas de corações em
harmonia,
sintonia,
simpatia,
sinfonia;
que se querem, 
porque se amam.
Danças comigo?

ETIÓPIA: CRENTES VIVEM DIAS COMPLICADOS


Comunidades ortodoxas, muçulmanas e católicas vivem tempos difíceis devido a conflitos e reformas administrativas na Etiópia.

Não têm sido fáceis os últimos tempos na Etiópia. O país mais antigo de África tem vivido uma espiral de conflitos com raízes em tensões etnocêntricas, derivadas da sua federalização depois de 1991. Estas tensões afectam as diferentes comunidades de fé.


Igreja Ortodoxa entre cismas

A Igreja Ortodoxa Etíope, uma Igreja com quase 1700 anos e que conta com cerca de 46 milhões de fiéis – 40 por cento dos 115 milhões de etíopes –, está ameaçada por cisões desde Maio de 2021, altura em que os cinco arcebispos do Tigré anunciaram o corte de relações com a Igreja-mãe – o Santo Sínodo Ortodoxo Etíope – criando a Igreja Ortodoxa Tigrínia.

A cisão vem da guerra que opôs o Estado Regional Tigrinío ao Governo Federal entre Novembro de 2020 e Novembro de 2022, e que extravasou aos Estados vizinhos de Amara e Afar. O conflito envolveu tropas federais, milícias locais e soldados eritreus e deixou um rasto enorme de deslocamentos, destruição e morte. 

Os arcebispos tigrínios denunciaram o silêncio da Igreja Ortodoxa perante a chacina de milhares de civis, incluindo a mortandade na cidade santa de Axum por tropas eritreias no início dos confrontos, a morte de um grande número de padres e monges e o saque e destruição de mosteiros e igrejas. No início, o patriarca ortodoxo, Abune Matias I, ele próprio tigrinío, denunciou o genocídio contra o seu povo. Depois remeteu-se ao silêncio. 

Os prelados tigrínios acusam a hierarquia ortodoxa de ter apoiado o Governo Federal durante a guerra e de contribuir para o financiamento do conflito por meio das colectas levadas a cabo pelas autoridades locais.

Em Fevereiro deste ano, o Santo Sínodo – o governo central da Igreja Ortodoxa – escreveu individualmente aos arcebispos tigrínios a propor um diálogo para a reconciliação e normalização de relações com a Igreja-mãe. A missiva caiu mal, porque não foi endereçada ao Conselho dos Bispos da Igreja Ortodoxa do Tigré, que rejeitou a proposta. «Não podemos viver com aqueles que nos chacinaram», sublinharam.

Com o cisma tigrino por sanar, o Santo Sínodo Etíope foi confrontado por outra rebelião, desta feita no Estado Regional da Oromia. Razões? Línguas, centralismo, finanças e corrupção.

Três arcebispos de etnia oromo decidiram criar o Santo Sínodo de Oromia e das Nações e Nacionalidades, acusando a hierarquia ortodoxa de favorecer os padres de etnia amara nas suas promoções e de travar a celebração da liturgia em oromo em vez do guêes – uma língua morta muito antiga – e do amárico, arrastando milhões de fiéis para as denominações protestantes. Havia ainda a questão financeira com a gestão das ofertas dos fiéis centralizada em Adis-Abeba.

No dia 22 de Janeiro, os três arcebispos ordenaram 26 bispos, 17 para o Estado Regional da Oromia e nove para outras regiões. Quatro dias depois, o Santo Sínodo excomungou os três arcebispos mais 25 dos novos bispos. Um tinha voltado para a Igreja-mãe depois de pedir perdão. Os arcebispos rebeldes retaliaram, excomungando uma dúzia de arcebispos ortodoxos. No dia 22 de Julho, seis dos dez novos bispos nomeados pelo Sínodo do Tigré foram sagrados à revelia da Igreja Ortodoxa Etíope, que marcou uma reunião de emergência para o início de Agosto para analisar os últimos desenvolvimentos.

A cisão oromo gerou alguma insegurança e o Governo pôs as forças da ordem em alerta e restringiu o acesso à Internet, sobretudo às redes sociais mais populares (a meados de Julho a situação foi normalizada). No dia 4 de Fevereiro, pelo menos oito pessoas foram mortas em Shashamane, uma cidade do Sul da Etiópia, quando um dos novos bispos tentou entrar na sua catedral. Um grupo de fiéis ortodoxos opôs-se e as forças da ordem atacaram os manifestantes.

Entretanto, numa intervenção televisiva, o primeiro-ministro, Abiy Ahmed, instou os ministros a não se envolverem na questão da Igreja Ortodoxa, o que foi entendido como um apoio aos dissidentes. O chefe do Governo é oromo e pertence a uma Igreja pentecostal apesar de ter nome árabe. Algumas vozes acusaram Abiy de querer destruir a Igreja Ortodoxa Etíope. O Santo Sínodo proclamou um jejum de três dias e marcou uma manifestação nacional para 12 de Fevereiro em memória dos mártires que perderam a vida durante os confrontos com as forças da ordem. O Governo proibiu-a.

O primeiro-ministro sentou-se à mesa com representantes da Igreja Ortodoxa Etíope e da Oromia a 15 de Fevereiro e a crise foi sanada. Os três arcebispos excomungados foram readmitidos nas suas funções, os novos bispos voltaram ao estado presbiteral e o Santo Sínodo comprometeu-se a desenvolver (e financiar) a liturgia e a catequese nas línguas locais e a abrir seminários para formar clérigos não amaras e a ordenar alguns monges para servirem as dioceses oromos como bispos.

Em Maio, o canal de televisão por cabo da Igreja Ortodoxa foi suspenso durante alguns dias pela Autoridade da Comunicação Social, que acusou a estação de transmitir conteúdos passíveis de provocar conflitos. Em questão esteve um comunicado da comissão nomeada pelo Santo Sínodo para seguir a nomeação de novos bispos de etnia oromo. A comissão ameaçou não ficar em silêncio perante um grupo de bispos «a seguirem agendas mundanas dentro da Santa Igreja». O comunicado coincidiu com a abertura da convenção anual dos padres ortodoxos em Adis-Abeba, a capital do país. O canal, entretanto, voltou às emissões regulares com liturgias, entrevistas, ensinamentos e cânticos ortodoxos.


Muçulmanos protestam

Os muçulmanos representam o segundo maior grupo religioso etíope com mais de 36 milhões, 31 por cento da população, e chegaram à Etiópia ainda Maomé era vivo.

O Estado regional de Oromia redesenhou, em Março passado, algumas zonas administrativas e criou cidades, incluindo Shaggar, nos subúrbios de Adis-Abeba. Os autarcas da nova cidade decidiram demolir milhares de construções ilegais, incluindo 19 mesquitas e outros templos religiosos.

O Conselho Supremo dos Assuntos Islâmicos do Estado Regional da Oromia denunciou a demolição «ilegal» das mesquitas e fiéis muçulmanos manifestaram-se contra as demolições no final das orações de sexta-feira na Grande Mesquita de Anwar, situada em pleno mercado de Adis-Abeba a 26 de Maio e a 2 de Junho. Pelo menos cinco pessoas foram mortas nos confrontos com as forças da ordem e mais de uma centena ficaram feridas, incluindo seis dezenas de polícias. A Comissão Etíope dos Direitos Humanos anunciou que umas 140 pessoas foram detidas na sequência dos protestos. A Grande Mesquita foi encerrada durante algum tempo.

No início de Junho, o presidente do Estado regional da Oromia reuniu-se com o líder do Conselho Supremo dos Assuntos Islâmicos Etíopes, sublinhando que as autoridades de Shaggar não estavam a visar a comunidade muçulmana. Outras construções religiosas ilegais também foram demolidas. Perante as dificuldades que os muçulmanos apontaram em adquirir terrenos e autorizações para a construção de novas mesquitas, os edis prometeram ter o novo plano director para Shaggar pronto em Julho. O mapa incluirá áreas destinadas a templos religiosos, incluindo uma grande mesquita.


As cruzes da Igreja Católica

O conflito no Tigré também afectou a hierarquia da Igreja Católica no país, que conta com pouco menos de um milhão de fiéis. D. Tesfasellasie Medhin, bispo de Adigrat, a diocese católica do Tigré, assumiu a defesa intrépida do seu rebanho e denunciou o conflito como «genocídio devastador com actos horrorosos de crimes brutais». 

Dom Tesfasellasie pediu, em Novembro de 2021, à hierarquia católica etíope que rompesse o silêncio perante as atrocidades cometidas no Tigré, uma acusação implícita da falta de solidariedade dos irmãos bispos. A resposta chegou em Março do ano seguinte com uma mensagem onde os bispos pediram a paz para o país: «A Conferência dos Bispos Católicos da Etiópia renova o seu apelo a todas as partes envolvidas no conflito no país para baixar as armas e começar um diálogo genuíno para o interesse do povo.»

Entretanto, a rebelião armada do OLA (Exército de Libertação Oromo, na sigla em inglês) contra o Governo Federal também tem afectado a Igreja Católica na Oromia, sobretudo no Oeste e no Sul. 

Em Março, visitei Dom Abraham Desta, bispo de Meki, uma diocese no Estado Regional da Oromia a 150 quilómetros a sul de Adis-Abeba. O bispo esteve exilado durante mais de um ano na Europa onde se encontrava a tratar da saúde quando o conflito no Tigré estalou. Dom Abraham pertence ao clero da diocese de Adigrat e era conotado com os dirigentes tigrínios que lideraram o país de 1991 até 2018. Disse-me que o vicariato tinha limitado o trabalho pastoral à catedral devido à insegurança provocada pelos rebeldes do OLA. 

Os rebeldes oramos estão activos sobretudo nas zonas guji e arsi, no Sul, e no Wollega, no Oeste. Há quase dois anos que a insegurança impede a visita a três das comunidades da missão onde sirvo. 

O OLA recorre ao rapto, incluindo membros da Igreja Católica, para se autofinanciar. Em Fevereiro passado, uma freira indiana das Irmãs de Betânia foi raptada na sua comunidade perto da cidade de Nekemte, no Wollega, durante a noite e, no início de Junho, um padre da diocese de Meki foi capturado no mercado local onde fazia as compras. Ambas as vítimas foram libertadas mediante o pagamento de um resgate de perto de dez mil euros cada.

No final de Abril, o Governo Federal iniciou o diálogo com o OLA na ilha tanzaniana de Zanzibar. Espera-se que as conversações à porta fechada, mediadas pelo Quénia e a Noruega, respondam ao descontentamento dos Oromos e tragam paz e reconciliação para o Estado regional e para o país.

12 de setembro de 2023

AS CONTAS DO TEMPO





Para ti que me lês hoje é dia 12 de Setembro de 2023. Um dia de fim de verão, a retoma da vida corrente depois das férias estivais, o regresso à escola. Para os etíopes — e para mim que com eles partilho o diário viver — hoje é o primeiro dia do mês de Meskerem do ano de 2016, o Ano novo etíope, que a liturgia nacional dedica à solenidade de João o Precursor, São João Batista no santoral católico.

A inkutatash é o símbolo do ano novo. Uma flor silvestre amarela que pinta de alegria a paisagem da Etiópia nesta altura do ano. Nas montanhas, onde vivo, a flor desponta mais tarde.

A celebração do ano novo começa na véspera com uma grande fogueira à volta da qual se canta e dança a alegria do tempo novo prestes a chegar.

Desejam-se mutuamente «Melkam addis amet», Feliz ano novo em amárico. Ou o equivalente nas línguas vernaculares.

Para celebrar o ano novo, as pessoas alindam-se com as roupas tradicionais das respetivas culturas.

As meninas prendem inkutatash de plástico nos cabelos ou nas orelhas. Também usam a flor amarela bordada nos vestidos longos de algodão. As construções e os veículos são decorados com flores gigantes, fitas amarelas e balões, amarelos e pretos na predominância.

Os miúdos e os jovens juntam-se em bandos a cantar «Minha flor, minha flor, tu és linda» enquanto dançam e pedem dinheiro. Fazem-no de casa em casa ou nas estradas, parando o tráfego.

Os cristãos começam o ano nas respetivas igrejas. A maioria são ortodoxos. Celebram a divina liturgia na madrugada, transmitida através de altifalantes.

Depois de louvar o Senhor do tempo pelo dom de mais um ano, vão para casa celebrar à volta da mesa ou de uma travessa gigante.

O chão da sala é adornado com erva grossa da família do junco.

Carne de vaca, galinha e ovos (cozinhados em molho picante) e cerveja local são parte da ementa festiva. E café.

Porquê 2016? 

Os etíopes, na maioria cristãos ortodoxos, não aceitaram o calendário universal que foi promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1582 para corrigir algumas discrepâncias do calendário juliano, o contador em uso. A Igreja Ortodoxa Etíope segue ainda o calendário do imperador romano.

Estamos em 2016 e começarmos o ano normalmente a onze de Setembro — este ano inicia-se um dia mais tarde, porque Fevereiro tem vinte e nove dias e, por isso, o mês de Pagumé, o décimo terceiro mês do calendário etíope, tem seis dias em vez de cinco.

O calendário etíope é formado por doze meses de trinta dias, mais o Pagumé para não perder mais dias para o calendário geral.

Quando cá cheguei pela primeira vez, há trinta anos, a Etiópia auto-promovia-se como o país de «Treze meses de sol». Agora apresenta-se como «Terra das origens».

Além disso, as zero horas correspondem às seis da manhã. Mais ou menos a hora do nascer do sol.

Outras peculiaridades do Calendário Etíope: o Natal é a sete de Janeiro, o Batismo do Senhor (Timket) a dezanove do mesmo mês (este ano, celebra-se a vinte por ser ano bissexto), a Páscoa de 2024 vai ser a cinco de Maio (mais de um mês depois da Páscoa do calendário universal), a Assunção de Nossa Senhora celebra-se a vinte e dois de Agosto, a festa da Santa Cruz a vinte e oito de Setembro.

É normal que povos diferentes tenham modos diferentes de contar o tempo. Melhor: modos diferentes de celebrar o tempo.

John Mbiti, o filósofo queniano, que também era pastor anglicano, nota com precisão que «em África o tempo não se conta. Faz-se.»

Feliz Ano Novo!

6 de setembro de 2023

A ALEGRIA DA PEQUENADA










Todos os anos as Missionárias da Caridade, as Irmãs fundadas por Santa Teresa de Calcutá, organizam um campo de férias para os mais novos durante as férias grandes com a colaboração de alguns voluntários.

Este ano tiveram a ajuda valiosa de cinco jovens vindos de Adis-Abeba, a capital da Etiópia, mais cinco rapazes e duas raparigas da cidade de Adola, no Sul do país, onde as Missionárias têm uma comunidade que cuida de mais de 150 doentes, alguns incapacitados, outros em tratamento da tuberculose e outras doenças.

O campo deste ano teve três edições: Adola, Soddu Abala e Qillenso.

Meninas e meninos entre os cinco e os quinze anos tiveram a oportunidade de passar duas semanas especiais cheias de alegria em cada centro.

Em Adola, cerca de 470 pequenos desfrutaram, de segunda a sexta, de umas férias especiais com muita animação, jogos, canções, catequese, oração e um lanchinho diário. Porque as atividades puxam pelo corpo e é preciso repor as energias.

Muitos outros tiveram de ficar de fora por falta de espaço e de animadores. Um dia passei pela rua em frente ao espaço onde os participantes brincavam e tive pena dos que seguiam as atividades do outro lado da rede.

Em Soddu Abala, uma paróquia rural entre o povo guji, vizinha de Adola, os participantes rondaram os 250. Qillenso, a minha casa, contou com cerca de 170 petizes.

Ao todo, quase mil crianças e adolescentes beneficiaram das atividades estivais especiais.

Para facilitar as atividades, os participantes são divididos em grupos. Os mais empenhados de cada grupo são premiados.

O campo de Qillenso concluiu com uma missa.

Os pequenos escolheram os cânticos — entre os muitos que aprenderam — e fizeram as orações. Foi uma verdadeira festa de fé. Presidi à celebração e adorei estar e rezar com aquele grupo de gente pequena tão empenhada e animada.

No final do encontro todos os participantes recebem uma peça de roupa como recordação.

O campo de férias representa uma ocasião para as Irmãs avaliarem o estado de saúde dos participantes sobretudo em matéria de malnutrição. A guerra na Ucrânia encareceu os produtos essenciais — farinha, óleo e açúcar custam o dobro — e alguns pais têm dificuldades em alimentar os filhos.

Quando aqui cheguei, há dois anos, um litro de gasóleo custava 27 birr. Agora está quase nos 80.

Para os organizadores, duas irmãs e a dúzia de voluntários e voluntárias que com elas trabalharam, foram seis semanas de muito trabalho e cansaço.

Soddu Abala fica a uma dúzia de quilómetros de Adola, mas a picada florestal está em muito mau estado. Para chegar a Qillenso é preciso fazer 35 quilómetros de estrada asfaltada que sobe cerca de 500 metros. Os facilitadores estavam baseados em Adola e tinhas de se fazer à estrada de segunda à sexta.

Mas, no final, tanto participantes como facilitares, exprimiam a alegria imensa de fazer os outros felizes. Sobretudo os mais pequenos.
 
Para o ano há mais! Se Deus quiser!