O Génesis, o livro que abre as Escrituras, conta uma estória intrigante: um grupo de pessoas, unidas pela mesma língua, emigraram do Oriente e, ao chagarem a uma planície em Chinear, deitaram mãos ao barro para construirem uma cidade e uma torre que teria o céu por limite.
Deus, na sua infinita curiosidade, desceu para ver a cidade e a torre que estavam a ser edificadas com tijolos e betume, evocando os zigurate da Babilónia, torres de menagem muito altas dedicadas aos deuses.
E o Senhor disse: «Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projetos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros» (Génesis 11: 6-7).
A narração tem um final inesperado: O Senhor dispersou-os por toda a Terra e eles pararam com a construção da cidade que foi batizada de Babel.
Esta narrativa primordial pode ser lida como um ato de sabotagem da parte de Deus contra a concorrência daquele povo sem nome.
De facto, uma das raízes do vocábulo Babel pode ser confusão. Deus confundiu-os e espalhou-os pelo mundo — e obrigou-nos a aprender línguas estrangeiras — porque o empreendimento no vale de Chinear punha em causa a sua soberania incondicional.
Aliás, esta é a leitura mais comum desta estória que explica a origem das línguas diferentes e da colonização de toda a Terra que, segundo a evidência científica, começou a partir de África.
Mas há outra leitura mais interessante.
Reparemos no texto: um povo, com uma linguagem única e um único vocabulário, queria construir num vale uma cidade e uma torre para adquirir um nome.
O numeral um é a chave de leitura da estória, que representa uma grande tentação.
Quando visitei Moçambique em 1990 para participar na ordenação de um colega comboniano e fazer uma reportagem sobre o país, a rádio nacional repetia à saciedade o jingle — cito de cor — «Do Rovuma ao Maputo, um país, uma língua, um partido». A ordem e as palavras podem ser diferentes.
Os regimes ditatoriais e totalitários amam o número um: a unidade nacional, o partido único, o pensamento único contra a diversidade das opções políticas, a essência da democracia.
E Deus? Ele ama o plural!
Em Fevereiro de 2019, o Papa Francisco escreveu juntamente com Grande Imã de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb no Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum que «o pluralismo e a diversidade de religiões, cor, sexo, raça e língua são despejados por Deus na Sua sabedoria, por meio da qual ele criou os seres humanos».
O Papa argentino, durante a sua participação na Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023, explicou que «um significa solidão, fechamento, pretensão de autossuficiência». Ele tem afirmado repetidamente que a realidade é poliédrica.
Babel também pode significar Porta de Deus.
Vamos até Ele através da pluralidade das línguas, das culturas e dos povos. Ele quis assim.
O último livro da Bíblia, o Apocalipse de São João descreve o conjunto dos redimidos como «uma multidão enorme que ninguém podia contar, de todas as nações tribos, povos e línguas» diante do Cordeiro a aclamar «a salvação pretende ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro» (Apocalipse 7, 9-10).
Daí que o missionário tenha de descalçar as sandálias da sua «etnocentricidade» diante do povo que o acolhe e respeitar a diversidade, porque foi criada e é amada por Deus!
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