28 de abril de 2024

A-DEUS, PEPPE!

 


A face sorridente do Irmão Giuseppe Redaelli – o Peppe, como o chamávamos – apareceu  nos alertas do telemóvel e deixou-me perplexo. O que se passa com ele? A notícia era arrasadora e deixou-me incrédulo: o Peppe faleceu no sábado, 27 de abril, em Wau, no Sudão do Sul. Contava 76 anos. 

«O irmão há muito tempo que não estava bem e desta vez não resistiu a uma forte malária. Em três dias se foi», contou-me a Ir. Beta Almendra, uma comboniana da Ericeira missionária em Wau.

O Peppe nasceu a 10 de março de 1948 em Casatenovo, Milão, no norte da Itália. Vocação adulta, fez a primeira profissão religiosa com 33 anos, a 6 de junho de 1981, no mesmo dia que eu.

Conhecemo-nos um mês mais tarde, em Elstree, nos arrabaldes de Londres. Estudamos inglês juntos até janeiro de 1982. Nessa altura, eu comecei o curso de teologia no Instituto Missionário de Londres. Ele partiu para Gilgil, no Quénia, com mais dois colegas portugueses e um italiano para terminarem a sua formação de base como irmãos missionários combonianos.

Em 1984, foi destinado ao Sudão do Sul, onde permaneceu durante oito anos. Em 1992 voltou à Itália e, oito anos depoi,s encontrava-se de novo em África, desta feita na Província de Cartum, no Sudão, onde ficou 11 anos. Em 2011, voltou ao Sudão do Sul, onde, após quase três décadas, nos voltamos a encontrar. 

Ele vivia em Wau e eu em Juba. Dormi uma semana na sua comunidade durante um seminário sobre recolha e tratamento de informção que orientei para os jornalistas da Voz da Esperança, a rádio da diocese de Wau.

Do Peppo guardo o seu sorriso tranquilo e discreto, a hospitalidade e a capacidade de trabalho.  Foi administrador da arquidiocese de Cartum, da diocese de Wau, do Hospital São Daniel Comboni de Wau e ecónomo provincial dos combonianos no Sudão do Sul.

Não era homem de muitas palavras, mas tinha uma enorme sabedoria.

Está no abraço terno e eterno de Deus, disso estou certo. É um mártir do Evangelho. 

No passado, os teólogos distinguiam entre martírio encarnado – do sangue derramado pela fé no Senhor – e martírio branco, sem sangue. 

Ele é mártir, porque deu a vida pelo Senhor da Missão. 

O Peppe poderia ter pedido para regressar à Itália natal devido à idade e dado o estado de saúde. Mas preferiu ficar em Wau até que a malária o levou.

Descansa em paz, Peppe. Mereces depois de tantas canseiras apostólicas e administrativas. A-Deus, Mano!

20 de abril de 2024

ETIÓPIA SOB A AMEAÇA DA FOME


A Etiópia volta a estar sob a ameaça da fome devido à guerra, ao roubo de ajudas humanitárias e, sobretudo, à seca.

 

Quatro décadas depois de o país ter sido palco de uma enorme carestia que matou mais de um milhão de pessoas pela fome especialmente nas zonas – hoje Estados regionais – do Tigré e Amara, o espectro da morte volta a pairar sobre o país mais populoso do Corno de África.

Os factores são sobretudo três: a guerra, os desvios de ajuda humanitária e o fenómeno climático El Niño, que afecta as chuvas, fundamentais para a agricultura e pastorícia.

 

Guerra

Quando, em 2018 assumiu o poder, o primeiro-ministro Abiy Ahmed prometeu eleições antecipadas. Contudo, devido à pandemia de covid-19, o acto eleitoral foi adiado para data a anunciar.

Todavia, a Frente de Libertação do Povo do Tigré (TPLF, na sigla em inglês), o partido que governa aquele Estado regional, decidiu organizar eleições locais à revelia do Governo Federal. Os Tigrínios viram-se envolvido numa guerra violenta com os exércitos etíope e eritreu – que tinha contas antigas a saldar com a TPLF – de Novembro de 2020 a Novembro de 2022 que, segundo algumas estimativas, matou 600 mil civis. 

Durante a guerra – que alastrou aos vizinhos Estados regionais Amara e Afar –, o Governo montou um cerco ao Tigré bloqueando o envio de assistência humanitária e cortando a electricidade, as telecomunicações e o sistema bancário no Estado rebelde. A guerra – com a destruição das infra-estruturas e da agricultura – deixou mais de cinco milhões de pessoas sob a ameaça da fome.

O conflito no Tigré foi resolvido com um acordo de paz mediado pela África do Sul, mas tropas da Eritreia ainda ocupam partes do Estado.

Entretanto, em Abril de 2023 outro conflito explodiu no Estado regional Amara. As milícias amaras ajudaram o exército no combate aos Tigrínios, mas, depois, o primeiro-ministro decidiu anexar todas as forças regionais no exército federal. Os Amaras – entalados entre a Oromia e o Tigré – não confiam no exército federal para os defender dos vizinhos mais poderosos e rebelaram-se contra o Governo.

Há outro conflito que grassa há quase seis anos no Estado regional da Oromia, o maior em dimensão e população. Em 2018, uma facção da Frente de Libertação Oromo (OLF na sigla em inglês) não apoiou o acordo de paz com o primeiro-ministro Abiy – que é oromo – e criou o OLA (Exército de Libertação Oromo), que actua sobretudo nos territórios de Wollega, Arsi e Guji. Delegações do Governo e do OLA já se reuniram por duas vezes na Tanzânia para discutir a paz, mas as negociações, mediadas pela IGAD, a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (da África Oriental), Noruega e Quénia, foram até agora infrutíferas.

 

Desvio de ajudas em grande escala

Com a cessação de hostilidades no Tigré e o levantamento do bloqueio imposto por Adis-Abeba à região, as organizações humanitárias puderam finalmente assistir as populações famintas e doentes do Estado.

Mas um novo problema apareceu: uma parte substancial das ajudas humanitárias estavam a ser roubadas por militares e funcionários do Governo. Perante o facto e na impossibilidade de o Governo controlar o esquema de desvio de cereais em grande escala, os Estados Unidos da América e a União Europeia suspenderam a prestação de ajuda humanitária crítica ao Estado regional do Tigré em Março de 2023 e, três meses depois, a todo o país. 

A suspensão voltou a pôr a sobrevivência das populações, já de si vulneráveis devido à guerra, em apuros acrescidos. Entretanto, em Dezembro passado a suspensão foi levantada depois de os doadores terem implementado um número de medidas anti-roubo no circuito de distribuição de comida e outros bens urgentes, incluindo o uso de localizadores GPS nos camiões de transporte. 

 

Fome

O fenómeno El Niño é um evento cíclico provocado pelo aquecimento das águas do oceano Pacífico Tropical que afecta o clima global, altera as correntes dos ventos, provoca ondas de calor e secas nalgumas zonas e inundações e tempestades noutras.

El Niño afectou o regime das chuvas sobretudo no Norte do país, que o ano passado foram muito escassas. Devido à seca, as colheitas foram fracas e os pastos secaram no Norte, Leste, Sul e Sudoeste do país. No Norte, uma praga de gafanhotos piorou a situação.

Para responder ao desastre humano que se desenha, o Governo etíope e o coordenador humanitário da ONU na Etiópia lançaram um apelo urgente para financiar a resposta à insegurança alimentar nas terras altas do Norte do país, afirmando que milhões de vidas e de cabeças de gado se encontram ameaçadas pelos efeitos do El Niño. O apelo descreve a «segurança alimentar alarmante e malnutrição crescente» na zona.

Em 2024, segundo os números do Governo, 15,8 milhões de etíopes vão passar fome e por isso necessitam de ajuda urgente; 7,2 milhões de pessoas sobrevivem sob níveis elevados de insegurança alimentar aguda.

Getachew Reda, presidente interino do Governo Regional do Tigré, afirmou que 91 por cento da população do seu Estado (estimada em 5,5 milhões de habitantes) se encontra «exposta ao risco de fome e morte». 

No Estado amara, e segundo as autoridades locais, a seca deixou 1,8 milhões de pessoas a precisar de assistência alimentar urgente e matou 140 mil cabeças de gado.

Chris Nikoi, director interino do PAM – o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas – na Etiópia, afirmou que «está extremamente preocupado com a deterioração da segurança alimentar no Norte da Etiópia, onde muitas pessoas já enfrentam uma fome grave». O Programa já arrolou quase 6,2 milhões de pessoas mais vulneráveis nos Estados regionais de Afar, Tigré, Amara e Somália.

 

Politização da fome

Face ao alarme crescente, o Instituto da Provedoria Federal da Etiópia decidiu enviar observadores ao Norte do país para investigarem a situação referente à seca e à fome.

O relatório do levantamento foi tornado público no fim de Janeiro e afirma que quase 400 pessoas morreram de fome na última metade do ano passado: 351 no Tigré e 44 no Amara. As autoridades do Tigré indicam que o número de mortos é 860.

O relatório critica ainda a falta de coordenação entre o Governo Federal e os governos regionais na resposta à crise humana no Norte do país.

Entretanto, em Fevereiro passado o primeiro-ministro Abiy desautorizou o relatório da Provedoria. Num discurso no Parlamento Federal, admitiu que a seca afecta sobretudo as regiões do Tigré, Amara e Oromia e afirmou que «com base nas informações disponíveis, até à data não foram registadas mortes atribuídas à fome», mas à cólera, malária e malnutrição. «Devemos abster-nos de politizar esta questão. As tentativas de explorar a seca para obter ganhos políticos são injustificadas», alertou. Este tem sido o mantra do Governo.

O espectro da fome que paira sobre o país – em tudo semelhante à crise de 1983-1985, que afectou mais de sete milhões de pessoas (cerca de dez por cento da população) e matou mais de um milhão de etíopes –, põe em causa a imagem que o governo de Abiy construiu de um país auto-suficiente na produção de cereais para consumo e exportação. Por outro lado, a História lembra que o imperador Haile Selassie foi destronado por em 1973 e 1974 ter tentado ocultar uma situação de fome em tudo semelhante à crise actual. 

10 de abril de 2024

QUEBRAR O JEJUM

 


Não nos oferecem nem café nem chá quando chegamos às suas casas. É Ramadão. Esperamos pelo pôr-do-sol. Conversamos até que chega o ansiando momento do iftar.

No deserto de Judá, entre os beduínos, como noutras aldeia e comunidades muçulmanas, o iftar é a refeição que quebra o jejum do dia durante o Ramadão.

Fazem jejum a partir dos sete anos. Desde as 04h00 da manhã não comem nada, nem água sequer. Mohamed e a irmã perderam peso de maneira considerável. Têm mais de sete anos e, por isso, jejuaram durante o mês do Ramadão.

Com a chegada do entardecer, os beduínos reúnem-se por grupos de famílias ou tribos para quebrar o jejum. 

Em Jerusalém, um disparo como o de um canhão anuncia o início do iftar. Noutros lugares, é anunciado a partir das mesquitas.

As aldeias beduínas que não têm mesquita escutam-no no telemóvel ou através da televisão.

No deserto da Judeia, os beduínos o que primeiro comem são tâmaras ou bebem um trago de alguma bebida fresca.

A comida é gostosa e abundante. Podem comer a intervalos até às 04h00, hora a que o jejum começa de novo. No fim da refeição servem doces árabes ou pãezinhos com mel.

«Apesar de comermos, o alimento tem sabor amargo pelo que se está a passar em Gaza», lamentou um chefe beduíno.

Este Ramadão tem sido muito doloroso. 

«Jejuamos a pensar na gente de Gaza, e comemos com dor por tantos que não têm que comer», dizem-nos. «Este Ramadão foi muito triste».

Hoje, 9 de abril, é o último dia do Ramadão. Amanhã será a festa do Eid al Fitr, o fim do mês de jejum.

Estivemos com uma família até que a noite chegou. Comemos com eles. Pediram para dormirmos lá. Pensando no que implica a preparação da festa do Eid al Fitr, desta vez não pernoitamos com eles. 

Eid al Fitr. Os homens levantam-se cedo para irem rezar às mesquitas próximas. Alguns beduínos vão a Alazareya, outros a Anata.

Depois vão visitar as suas irmãs. É tradição que lhes levem dinheiro, doces e presentes para os sobrinhos. Este ano será muito triste: muitos perderam o trabalho desde que a guerra começou.

No segundo dia da Eid al Fitr, as mulheres visitam os seus pais. As casas paterno-maternas estão cheias. As famílias são numerosas.

Eid al Fitr é o tempo para o encontro, convívio, partilha na esperança que que a tão desejada paz chegue.

Ir Cecília Sierra,

Missionária Comboniana a trabalhar com os beduínos no Deserto da Judeia, Terra Santa

8 de abril de 2024

A CHUVA VOLTOU



Deixei Qillenso no dia 25 de março para participar na Assembleia Provincial e no Conselho Provincial que se lhe seguiu em Hawassa, a cidade onde se encontra a sé-catedral da diocese com o mesmo nome. O nome que vem do lago que a embeleza.

A natureza estava pintada de tons castanho: a erva secara há bastante tempo e o gado contentava-se em rapar o palhuço temperado com pó e aguentar as carraças que se multiplicam na poeira.

Muitas árvores estavam nuas devido à canícula serrana que, este ano, começara no fim de novembro, um mês mais tarde garças ao fenómeno meteorológico chamado El niño.

A estação seca, a bonna, é a altura do ano que mais gosto de Qillenso pela temperatura amena, pela luminosidade, pela abundância de comida para as pessoas.

Regressei uma dúzia de dias depois e o castanho tinha esverdeado: a ganna gurracha, a estação escura das chuvas como os Gujis lhe chamam, tinha iniciado.

A chuva apareceu pela calada convocada pelos dois piares agudos e um grave que formam cada chilreio da ave chama-a-chuva. O vento empurrou as nuvens enquanto que os trovões as abanaram para finalmente abençoarem a terra ressequida com a água que carregavam no seio.

O cheiro da terra seca a receber as primeiras chuvas depois de quatro meses de estiagem é indescritível: é abafado, cheiro da vida que se renova, da natureza que acorda depois da pausa estival que é tempo das colheitas e para retemperar forças.

O gado volta a poder ruminar, tranquilo, a erva viçosa que o alimenta. Já não precisa de correr mundos e fundos para uma refeição escassa. Agora há pasto por todo o lado!

As árvores, queimadas pelo calor da montanha, voltam a sentir a seiva a circular nos seus troncos e os gomos despontam em novas folhas viçosas e em flores.

Os pássaros cantam, felizes, a mudança do tempo que lhes traz mais alimento. As abelhas colhem o néctar que as alimentará em dias menos fartos. E as borboletas dançam de flor em flor.

As pessoas voltam aos campos para os lavrar com o arado rudimentar puxado por dois bois e semear o milho para aproveitar a irrigação que vem do céu, a única rega disponível. Se as chuvas falham, os ratos comem as sementes e a semeadura lá se vai...

A estação da chuva traz apagões frequentes, que o sistema solar que instalamos com a ajuda dos Combonianos de Portugal ajuda a dirimir iluminando a nossa noite.

É também a época da humidade, do nevoeiro, das veredas enlameadas. De mais um cobertor na cama.

É a estação em que trocamos o conforto dos todo-o-terreno pelas galochas para visitar as capelas construídas na floresta. 

É tempo de arriscar a viagem a Massina, a capela mais ativa na zona de Adola e mais mal servida de picada.

É oportunidade de fazermos causa comum com quem nos cruzamos e trocamos saudações de paz nas idas e vindas das capelas, de brincarmos com a pequenada que guarda o gado.

Sem chuva não há vida. Sem chuva não há comida. Quando a humidade é de mais – lá para julho – a lareira da sala mantém a casa quente e confortável. E dias mais secos hão de vir!

2 de abril de 2024

FOI DEUS QUE TE ENVIOU!


Não têm hora nem lugar. É quando quiseres e onde quiseres. Basta um sinal com a mão e tem-lo ali ao teu lado: assim é o tuque-tuque hoje, aqui, em Helwan e em muitos outros lugares do Egipto. Assim era também o tuque-tuque no Sudão, há alguns anos atrás. Foi assim naquele domingo de Páscoa em Nyala, onde fui missionário durante uma dúzia de anos.

O tuque-tuque parou ao meu lado.

– Dar el Salam? – perguntei.

– Sim, entra se faz favor. Egípcio ou Sírio?

– Nem um nem outro. Desculpa, desta vez não acertaste. Sou europeu. O meu país é Portugal! – sorri.

O condutor do tuque-tuque ficou confundido, pois estava habituado a que os poucos brancos que se viam no Sudão serem, geralmente, de origem síria ou egípcia.

– Não imaginava que me aparecesse um cliente conterrâneo do Cristiano Ronaldo, o meu jogador favorito! – respondeu. – O que é que te trouxe aqui a Nyala, a este remoto canto do Darfur, no Oeste do Sudão? Aposto que trabalhas para uma das muitas organizações da ONU, não é verdade? – perguntou, intrigado e curioso.

– Também não acertaste! – respondi-lhe, em tom de brincalhão.

– Então, o que é que te trouxe aqui? – insistiu, já um tanto impaciente.

– Tu mesmo. Tu e toda a gente de Nyala, do Darfur e do Sudão inteiro! – respondi.

Fitou-me com ar confuso. Parecia que se tinha esquecido que ia a conduzir o tuque-tuque. Tive que lhe gritar:

– Tem cuidado! Agarra o guiador! Olha que a estrada não é só para nós!

O meu alarme deixou-o sem palavras. Reduziu a velocidade do triciclo e, de maneira a não deixar cair a conversa, articulou a pergunta:

– Eu e os meus compatriotas sudaneses trouxemos-te aqui? Será que me conheces de algum lado? Sabes quem eu sou?

Eu, com um sorriso calmo e encorajador, reafirmei:

– Sim, tu e todos os sudaneses.

O lugar para onde nos dirigimos é de fraca nomeada.

– Conheces Dar el Salam? – perguntei.

– Sim, mas não vou lá frequentemente! – respondeu. E continuou:

– É uma aldeia nova, de refugiados do Sudão do Sul que escaparam da guerra e ficaram por aqui. É um pedaço de deserto muito solitário e inóspito, onde até há bem pouco tempo não havia quase ninguém. Dizem que as serpentes lá são das mais perigosas. E o que é ainda pior, é o lugar de esconderijo dos famosos Janjauides, os grupos de rebeldes armados que matam sem dó nem piedade. Muitos dos jovens dessa nova aldeia procuram trabalho em Nyala, mas têm pouca sorte! – respondeu.

Estávamos a chegar à entrada do nosso destino: Dar el Salam, literalmente Casa da Paz.

Alguns catraios brincavam na estrada de terra batida, mas a cena não estorvou a paciência do condutor. À medida que o veículo se aproximava, ele captou as palavras gritadas pelos pequenos.

Olhou para mim, desconfiado e curioso, como a querer perguntar-me qualquer coisa. Apurou o ouvido e certificou-se. Não havia mesmo dúvida alguma. Tinha percebido clara e distintamente.

Abuna ja, o nosso pai chegou! – os miúdos gritavam.

Acenei-lhe com a cabeça que sim, que também eu próprio tinha ouvido.

Perguntou-me, muito admirado:

– É mesmo verdade que és o pai deles?

Aproveitei a ocasião de lhe explicar o porquê de os garotos me terem chamado abuna. Foi uma espécie de mini-catequese que escutou com interesse.

– Sim, sou abuna, pai, porque os cristãos chamam assim os sacerdotes católicos, os padres, em árabe. Aqui, no acampamento de Dar el Salam, muitos dos refugiados são católicos. Hoje é um dia muito especial: é a Páscoa, a nossa grande festa. Eu sou o abuna, o sacerdote. Venho celebrar com eles a Páscoa da Ressurreição.

– Agora compreendo o que te trouxe ao Sudão! – disse, enquanto aplicava o travão de mão do veículo. E continuou: – Tu és um rajul el din.

Os muçulmanos, de facto, chamam rajul el din, homem da religião, às suas autoridades religiosas. Continuámos a conversar ainda por mais alguns minutos. De desconhecidos que éramos, agora parecíamos amigos de longa data.

Ele manifestou querer saber mais acerca da religião cristã.

– Irei ter contigo, um dia destes, à tua casa, à igreja! – disse, enquanto atendia a um dos catraios que metia conversa com ele e lhe perguntava como se chamava.

– O meu nome é Khalid! – respondeu amigavelmente, enquanto se dirigia para o triciclo.

Parecia não ter pressa de voltar ao trabalho. Insisti em meter-lhe na mão o dinheiro da viagem. Mas recusou, ao mesmo tempo que exclamou com satisfação:

– Abuna, esta viagem fica à minha conta.

E, antes de pôr o motor a trabalhar, acrescentou:

– Deixa-me dizer só mais uma coisa: o que te trouxe aqui não fomos nós os sudaneses, foi Deus. Foi Deus que te enviou.

Sim, a verdade foi clara e devidamente pronunciada: Foi Deus que me enviou. Esta declaração imprevista do Khalid, recordou-me a passagem do Evangelho em que Jesus Ressuscitado disse aos apóstolos «Ide por todo o mundo…»

Sim, era o Jesus da Páscoa.

O motor do tuque-tuque já batia de novo. Gemia, queixava-se, mas não havia forma de se mexer. Seria bruxedo? Sim, era um feitiço muito fácil de desvendar: os putos, traquinas, tinham invadido o pequeno veículo de tal maneira que não cabia nem mais uma agulha. Riam e gritavam numa algazarra nada fácil de acalmar. Até que um dos anciãos se aproximou e, usando a sua autoridade em língua dinca, pôs termo à questão.

– Olhem que o catequista já está na capela à vossa espera! – acrescentou.

Finalmente, o tuque-tuque pôde partir e, pouco a pouco, desapareceu na nuvem de pó levantada pela cáfila de camelos que acabara de passar.

Na santa Missa, a alegria não parou. Não eram só os pequenos, mas também os jovens e adultos, homens e mulheres. Juntos, formavam a pequena-grande comunidade cristã que se tinha reunido na espaçosa palhota que se distinguia entre as outras habitações da aldeia de Dar el Salam. Naquele grandioso dia, a cruz de bambu que se vê de longe no topo da capela estava lindamente adornada com ramos verdes de nim e flores brancas de sabah el kheir.

Gassim, o catequista, estava orgulhoso da sua comunidade e da dezena de jovens catecúmenos que de aí a pouco ia receber o batismo. Ali, junto do altar, cantavam em coro com toda a comunidade:

Alegremo-nos e exultemos! É a Páscoa do Senhor. Aleluia, Aleluia, Cristo ressuscitou.

P. Feliz da Costa Martins

Missionário Comboniano no Egito