20 de julho de 2014

SILÊNCIO

© JVieira

Somos filhas e filhos de uma cultura palavrosa, barulhenta. Pessoas e ideias tendem a ser avaliadas em escalas de decibéis, a publicidade entra-nos pelos olhos e pelos ouvidos, os políticos são malabaristas de semânticas esvaziadas de referências ideológicas e sem pinta de compromisso social, os fazedores de opinião não dão tréguas à inteligência do cidadão comum, os relações públicas sufocam-nos, os telemóveis mandam na nossa vida, o tiquetaquear inexorável dos segundos afoga. 

Vivemos em plena idade digital com os vícios intactos da oralidade de onde viemos.

Na segunda leitura deste domingo, Paulo escreve aos cristãos de Roma – e aos de qualquer lugar e tempo: «O Espírito Santo vem em auxílio da nossa fraqueza, porque não sabemos que pedir nas nossas orações; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis» (Rm 8:26).

O Espírito Santo é o porta-voz das nossas orações, porque somos fracos e não sabemos o que pedir.

Reza por nós e connosco através de gemidos inefáveis, indizíveis, de silêncios. Porque é no silêncio da briza da tarde que Deus está presente – com o descobriu Elias, o pai dos profetas, no monte da aliança, o Horeb (1 Reis 19:13).

Estamos habituados à espiral do ruído mas é do silêncio das palavras e gemidos indizíveis que precisamos para escutar a Deus e a nós próprios.

Mwanito, a personagem mais jovem de Jesusalém, um romance de Mia Couto, é um afinador de silêncios, um fazedor de silêncios onde o seu pai, Silvestre Vitalício, vive depois de perder a mulher.

Couto acrescenta: «O silêncio é uma travessia. Há que ter bagagem para ousar essa viagem.»

Bom domingo.

15 de julho de 2014

SINAIS DE DEUS


No dia 29 de Maio de 2014 o campo de desalojados de Bileil foi testemunha de um horrendo e maléfico assalto a algumas das organizações e instituições humanitárias e de solidariedade. O ataque foi perpetrado por uma multidão enraivecida e furiosa que, desde há mais de uma década, tenta sobreviver nesse acampamento do Sul do Darfur.

O ataque ocorreu em pleno dia à vista de muitíssimas pessoas aparentemente indiferentes mas que, na verdade, apoiaram a operação que, astutamente planeada e dirigida, não foi segredo para ninguém, pois todos sabem quem foram os autores e os responsáveis destas e outras operações diabólicas semelhantes. Eles são os notoriamente e demasiado conhecidos janjauides que, por sua vez, integram as milícias do Governo desde o início do conflito armado no Darfur, em 2003. Geralmente, eles atacam o povo e/ou organizações humanitárias indistintamente; desta vez, porém, usaram a multidão contra as instituições humanitárias e de solidariedade numa cilada em que os mesmos cidadãos são, no fim de contas, as vítimas dos seus próprios atos. 

Há quase três anos que não frequento a zona de Bileil, a uns 18 quilómetros do centro da cidade de Nyala por  opção pessoal e por indicação do bispo da diocese de El Obeid. A razão é que, como estrangeiro branco, não é conveniente arriscar nem expor-me sem necessidade às autoridades sudanesas que normalmente procuram um pretexto para interromper a minha permanência na região. Deste modo, levariam a cabo o seu conhecido plano de impedir a continuidade da missão da igreja no país.

Por enquanto, não tem havido problemas de maior, pois o meu colega de missão, o padre etíope Asfaha, tem-me substituído excelentemente nesta tarefa. Ele também não deixa de ser estrangeiro no Sudão. Todavia, é naturalmente protegido graças à sua tez escura que lhe permite confundir-se natural e perfeitamente com a cor da pele da maioria dos nativos sudaneses. Este simples estratagema vai de acordo com as instruções de Jesus quando enviou os Apóstolos em missão: «...sede simples como as pombas e astutos como as serpentes.»

De todos os modos, não é dito que o futuro da evangelização neste país seja sempre claro e nítido. Devemos estar preparados para o menos desejável, mesmo para a interrupção da nossa presença como missionários no Sudão. Mas, no fim de contas, Deus é e será sempre o Senhor da messe e da evangelização. Assim, no caso hipotético da expulsão dos missionários por parte das autoridades do país – não o digo sem tristeza e mágoa – só teríamos que sacudir o pó dos nossos pés e avançar para outro lugar onde as pessoas aceitem a palavra de Jesus, como se lê no evangelho: «ide por todo o mundo e proclamai a Boa Nova...»

Mas voltemos ao incidente de Bileil. Dois dias depois do múltiplo assalto no campo de desalojados aí situado, o P. Asfaha visitou a escola Comboni que a igreja dirige no acampamento. Aí teve a oportunidade de ouvir directamente do director da escola, o Sr. Daúd, a triste e horrenda história a que me referi acima. A multidão de atacantes tinha completamente destruído as três instituições/organizações humanitárias com o conjunto das suas clínicas, armazéns de distribuição de alimentos e educação social a vários níveis. As suas construções foram literalmente arrasadas e os seus locais acabaram por ficar reduzidos a puro chão deserto. Os assaltantes não deixaram restos nem escombros. Até as folhas de zinco dos tetos e os tijolos das paredes levaram.

No meio de tanta malvadez há, no entanto, um lado bom e consolador que nos faz reflectir e dar graças a Deus: o facto de a escola básica Comboni de Bileil ter sido poupada à crueldade e agressão da populaça. A verdade é que, embora a multidão enraivecida se tivesse encaminhado decidida e apressadamente para a escola, as suas intenções diabólicas não foram executadas, porque muitas e muitas pessoas de boa vontade, na quase totalidade os pais dos alunos, acorreram com lanças, varapaus e outros instrumentos, inclusive algumas armas de fogo, para proteger aquela que era a escola dos seus filhos. O resultado positivo desta iniciativa veio à luz mas só depois da violenta confrontação com a grande e enfurecida massa humana com quem tiveram de medir forças à entrada do estabelecimento de ensino. É de louvar, no entanto, o não terem usado as armas de fogo.

A defesa da escola Comboni de Bileil por parte dos pais dos estudantes foi um exemplo que nos tocou a ponto de sentirmos dentro de nós o orgulho «santo» por não termos sido trabalhadores inúteis na vinha do Senhor.

Vale a pena semear. Para nós missionários que trabalhamos para a eternidade sem pretensões nem pressa em colher os frutos – no dizer de S. Daniel Comboni – é consolador recordar este evento. São flores a desabrochar no deserto do Darfur que vamos colhendo como sinais de Deus que se vai manifestando ao longo do caminho da missão.

Feliz da Costa Martins - Missionário Comboniano
Nyala, Darfur
Sudão

13 de julho de 2014

SABER COMER

E se o seu organismo não reconhecer aquilo que você come como um alimento? Defende-se, inflama-se, fica doente. É o que fazem muitos dos produtos que levamos à boca. Cristina Sales, médica e especialista em alimentação, garante que na origem da maioria das doenças que afetam o homem do século XXI está o que comemos e o modo como o fazemos. É que os alimentos são veículos de comunicação: dizem às células como devem comportar-se.

Precisamos de mudar a forma como nos alimentamos?

É obrigatório que o façamos porque a alimentação que a população dos países ocidentais, incluindo Portugal, passou a fazer nos últimos cinquenta anos é o que está na origem da maior parte das doenças endócrinas, metabólicas, autoimunes, degenerativas e alérgicas. As novas epidemias devem-se sobretudo aos estilos de vida e à alimentação que fazemos desde o pós-guerra.

A alimentação é decisiva para a saúde e o bem-estar mas está a provocar doenças e a aumentar a mortalidade precoce?

A geração dos nossos filhos terá uma esperança de vida mais reduzida do que a nossa por causa dos estilos de vida e da alimentação. Primeiro, os produtos altamente processados pela indústria alimentar conduzem a uma desnutrição em nutrientes fundamentais e ingerimos uma grande quantidade de calorias vazias. Segundo, são muito diferentes dos alimentos originais e o organismo não sabe lidar com eles, não os reconhece como alimentos. Depois, há uma sobrecarga tóxica inerente à alimentação que provém dos agroquímicos (da produção), dos conservantes, corantes e adoçantes que são adicionados para preservar os produtos durante mais tempo e para os manter bonitinhos.

São alimentos para ver…

Os produtos que nos chegam ao prato foram feitos para vender e não para comer. Não têm nada que ver com os alimentos que ingerimos e que nos fizeram viver e sobreviver ao longo de milhões de anos. Esta mudança ocorreu tão depressa que o organismo não está adaptado para gerir, digerir e assimilar estes produtos, pelo contrário, vê-os como substâncias estranhas e reage, inflamando-se.

Como é que podemos livrar-nos dessa teia?

As escolhas alimentares são condicionadas pela publicidade, as pessoas não são ensinadas a escolher. Quem é que é ensinado a consumir maçãs ou laranjas? Ninguém. A informação que passa de forma subliminar através dos anúncios da TV e dos jornais é que se deve beber sumo de maçã e de laranja. Mas se alguém ler os rótulos das embalagens verifica que contém imenso açúcar, frutose, acidificantes, etc., e o que falta é a maçã e a laranja. É preciso informar, ensinar e consciencializar a população.

A atitude da indústria alimentar tem de mudar?

No global sim, mas também depende do que a indústria faz. A conservação de alimentos através da congelação, por exemplo, é perfeita. Os legumes congelados são uma ótima opção, por vezes mais económica, e chegam ao consumidor mais frescos e com mais nutrientes do que os que são mantidos durante cinco ou seis dias nas cadeias de distribuição. Já quando falamos de alimentos que têm de levar uma quantidade enorme de aditivos para serem consumidos – é o caso das carnes de muito má qualidade e dos aproveitamentos que se fazem dos restos dos mariscos – é diferente. Sempre que tivermos de dobrar a língua muitas vezes para conseguir ler o que está escrito nos rótulos é porque não é comida. Não compre. Será qualquer coisa que do ponto de vista nutricional, químico e metabólico está muito longe do alimento original.

Está a falar de alimentos que duram ad eternum?

Por exemplo. Como é que duram? Fizeram-se estudos com hambúrgueres e batatas fritas – uns feitos em casa, com carne picada, e batatas que foram descascadas, outros com produtos processados e embalados – e verificou-se que ao fim de trinta ou quarenta dias alguns hambúrgueres se mantinham iguaizinhos. Não se degradaram, ao contrário dos que foram feitos em casa, que estavam estragados três dias depois. Ora alguém acha que uma coisa daquelas pode ser comida?

Quando ingerimos produtos desse tipo como é que o organismo reage?

Defende-se e inflama-se ou agarra naquelas coisas que não considera importantes e arruma-as nos depósitos de lixo, que são as células gordas. Estas, além de serem o nosso reservatório de energia, são também o depósito de substâncias tóxicas que o organismo não metaboliza ou não utiliza para impedir que entrem nos circuitos mais nobres. Esta acumulação de lixo cria bloqueios bioquímicos e alterações metabólicas que impedem as células de trabalhar em condições. Hoje ninguém sabe que consequências é que isto tem para o cérebro e o sistema imunitário e para o bom trabalho hepático e digestivo. Os circuitos da toxicidade são cruzados – se uma pessoa come de vez em quando um gelado, um iogurte, umas bolachas ou um sumo que tem um determinado corante é uma coisa, mas se o faz com regularidade, ao fim de seis meses já ultrapassou as doses suportáveis e entra em sobrecarga tóxica.

E o que é que acontece?

Veja-se o ácido fosfórico, um aditivo que está presente em alimentos de consumo diário, como os cereais de pequeno-almoço e os refrigerantes. Quem ingere estes produtos todos os dias, além de ficar com o sistema acidificado e perder cálcio (uma compensação do organismo que depois predispõe à osteoporose), também fica numa excitação – o ácido fosfórico é um estimulante cerebral e é óbvio que uma criança que de manhã come um prato de cereais chega à escola e não para quieta. O ácido fosfórico altera o comportamento e em determinadas concentrações é neurotóxico.

Como é que os alimentos atuam no organismo?

Os alimentos servem para construir tecido, osso, órgãos, etc., e para nos darem energia, mas o que as ciências da nutrição têm vindo a mostrar é que os alimentos são essencialmente moduladores do comportamento celular – são informadores das células, dizem-lhes como devem funcionar. Imagine que tem um prato com uma determinada quantidade de proteínas (peixe ou carne) e outra de hidratos de carbono. Só a proporção entre a quantidade de carne e batatas ingeridas vai informar o organismo da necessidade de produzir uma hormona ou outra, neste caso insulina (que é a hormona do armazenamento) ou glucagon (a hormona do desarmazenamento).

Explique lá melhor…

Se comer mais proteínas do que hidratos de carbono vai produzir mais glucagon e induzir o metabolismo a ir buscar gordura acumulada para disponibilizar às células, ou seja, vai desarmazenar. Mas se comer mais arroz, massa ou batatas vai dar uma ordem em sentido contrário, vai dizer que é precisa mais insulina e vai acumular gordura.

Mas se as pessoas forem ativas podem queimar essa energia…

Isso é outra coisa, o que importa reter é que na proporção hidratos de carbono/proteínas a quantidade de açúcar que chega aos sensores do tubo digestivo aciona imediatamente uma ordem de libertação de glucagon ou de insulina. Se a indicação é libertar glucagon, o organismo vai usar a gordura acumulada, se a ordem for para libertar insulina, o organismo vai armazenar gordura. Isto é pura informação.

Quem quer perder peso tem de saber isso, certo?

Se a pessoa tiver consciência da informação que dá ao corpo tem muito mais capacidade para o modular. Outro exemplo. A leptina, a hormona que sinaliza o apetite, que depende sobretudo do ritmo solar. Ora, uma pessoa equilibrada, que durma de noite e trabalhe de dia, produz mais leptina de manhã (e tem apetite) e ao fim do dia produz menor quantidade (o apetite diminui). Se uma pessoa comer muito à noite estraga este equilíbrio e a certa altura está sempre com fome porque inutilizou os sensores da leptina. Nós somos mamíferos e de noite, quando dormimos, não precisamos de comer. O nosso corpo tem a sabedoria para sinalizar o apetite em função da hora do dia – comer muito à noite estraga essa sinalização, faz ter apetite a toda a hora.

A alimentação é bioquímica?

Os alimentos são veículos de comunicação. Se fizer uma refeição de gordura saturada – uma sopa com um chouriço e depois um cozido à portuguesa – dá um sinal à cárdia (esfíncter entre o estômago e o esófago) para alargar e é assim que ocorrer o refluxo gastroesofágico e aparece a azia. A gordura saturada é um sinal que se dá à cárdia para se manter aberta. Se no dia seguinte a mesma pessoa só comer azeite ou gorduras de peixe não terá azia. Sabe porquê? É que o azeite ajuda a fechar a cárdia. Este é outro exemplo que ilustra a importância do conhecimento. Pessoas mais esclarecidas fazem escolhas mais acertadas.

A forma como nos alimentamos dita o comportamento das células?

Quando ingeridas, as gorduras saturadas e as gorduras ómega 6 (provenientes essencialmente dos animais e dos cereais, sobretudo da soja) são a estrutura a partir da qual as células fazem substâncias pró-inflamatórias. As gorduras ómega 3 – provenientes das algas e dos peixes – são as que permitem que as células produzam substâncias anti-inflamatórias. Se uma pessoa tem uma doença inflamatória (por exemplo, uma alergia, artrite ou doença autoimune) e come muita gordura saturada, esta vai funcionar como substrato para a fogueira e agravar o processo inflamatório da doença que já tem. Ao contrário, se a pessoa ingerir gorduras ómega 3, vai ser capaz de construir extintores de incêndio para que as suas células produzam anti-inflamatórios.

Há outros exemplos?

Se uma pessoa tem tendência depressiva porque não consegue produzir serotonina em quantidade suficiente, deve comer os alimentos que têm os aminoácidos precursores da serotonina – a carne de peru, por exemplo, é extremamente rica em triptofano, que é um precursor da serotonina. Se a pessoa souber isto, no outono, quando o tempo fica mais escuro, porque é que não há de comer mais carne de peru em vez de carne de vaca?

A alimentação e o processo digestivo podem agravar ou controlar certas doenças?

Sim, se uma pessoa tem uma predisposição genética para a diabetes, Alzheimer, etc., a doença só vai manifestar-se se o gene for ativado. Mas o que as pessoas precisam de saber é que os genes também podem ser desativados – é a modulação genética através da nutrigenética. Como? O que ativa ou suprime a expressão dos genes é a presença de determinados fitoquímicos, substâncias que também se encontram nos alimentos.

Podemos dizer que há alimentos anti-inflamatórios?

Claramente. Os que têm ómega 3 – sardinha, cavala e os peixes das águas frias do Norte. Algumas substâncias vegetais dos legumes (tomate), frutos (quivi) e especiarias (a curcuma, que confere a cor amarela ao caril) também têm efeito modulador de alguns genes pró-inflamatórios. Mas alimentos anti-inflamatórios devem ser consumidos, independentemente de se ter doença ou não. Hoje sabe-se que um cérebro com Alzheimer já está inflamado vinte anos antes da manifestação da doença. Todas as doenças degenerativas começam com processos inflamatórias, as autoimunes também. Não conhecemos é as causas.

Há substâncias que devem mesmo ser eliminadas da alimentação?

Os aditivos químicos. Falo das substâncias químicas que não são alimentos, que são usadas pela indústria alimentar e podem ser geradoras de inflamação em contacto com o organismo. A vida corrente não nos permite evitar todos os aditivos, mas se estivermos despertos para esta realidade teremos mais atenção, faremos escolhas mais saudáveis e ingerimos menores quantidades.

E as gorduras?

As gorduras ómegas 6, que se encontram nas margarinas e nos óleos e que são provenientes da soja, do milho e do amendoim, são claramente pró-inflamatórias. Precisamos de ómega 6 no organismo, mas em quantidades muito reduzidas. O problema é que a cadeia alimentar atual é geradora de uma alimentação extraordinariamente rica em ómega 6 e pobre em ómega 3. Basta pensar que, dantes, as galinhas e as vacas comiam erva, agora comem rações provenientes da soja; os peixes comiam algas, agora comem rações também com soja. Os produtos alimentares que usamos são essencialmente da linha produtora de ómega 6.

Nos supermercados temos centenas de alimentos à escolha. Precisamos de tanta coisa?

Não precisamos de tantos produtos alimentares, necessitamos é de maior diversidade alimentar. Essas centenas ou milhares de produtos que vemos nas prateleiras são provenientes de quatro ou cinco alimentos – cereais, lácteos, açúcares e gorduras – e da indústria de processamento. Se olharmos para a quantidade de legumes, frutos, oleaginosas e peixe que as pessoas comem no dia a dia verificamos que não há variedade alimentar, as pessoas comem quase sempre o mesmo. Já pensou na variedade de saladas que é possível fazer? Mas se perguntar a alguém qual é a que come diz-lhe alface e tomate.

No supermercado fazemos escolhas condicionadas pela publicidade e o marketing. Como podemos fugir a isso?

Só vai mudar com a informação dos cidadãos. Nos países do Norte da Europa, onde a população é muito mais esclarecida, não encontramos nos supermercados esta quantidade enorme de alimentos-lixo – basta verificar que o espaço ocupado por refrigerantes, cereais de pequeno-almoço e óleos alimentares é muito reduzido. Exatamente o oposto do que se passa em Portugal.

A crise económica e as dificuldades das famílias podem piorar ainda mais a alimentação dos portugueses?

Também pode acontecer o contrário. Numa altura em que todos sentimos uma necessidade absoluta de gerir muito bem os orçamentos familiares, devemos fazer listas de compras de forma racional. E antes de comprar certos produtos alimentares, é obrigatório perguntar: «Preciso mesmo disto? Vale a pena? Faz-me ficar mais forte, vital, inteligente? Tem mais nutrientes?» Ocasionalmente, podemos comprar os tais alimentos que não comportam nenhum valor acrescentado mas que agradam ao paladar, mas isso é num dia de festa.

De que produtos podemos e devemos mesmo prescindir quando vamos às compras?

Devemos tirar os refrigerantes, cereais com açúcar, pastelaria, óleos e margarinas – para cozinhar devemos usar o azeite, só azeite. Todos os refrigerantes são um estrago de dinheiro – as pessoas devem beber água. Os cereais com açúcar (os de pequeno-almoço e as bolachas) também são prescindíveis – devemos escolher cereais completos, integrais, que até são mais baratos. Compare-se o preço de uma caixa de cereais de pequeno-almoço com o de um pacote de flocos de aveia, que são altamente nutritivos. A aveia é muito mais barata e muito nutritiva.

Mas comprar carne magra e peixe gordo, frutos e hortaliças é muito mais dispendioso…

Mas há estratégias que podem ser implementadas. Uma é comprar carne de melhor qualidade e comer menos quantidade e menos vezes. É preferível comer carne três vezes por semana em vez de comer carne gorda todos os dias. Além disso, toda a gente ganha se fizer uma alimentação vegetariana dois dias da semana e em vez da carne comer, por exemplo, arroz de feijão ou grão-de-bico com massa. Se se acrescentar hortaliças, ervas aromáticas e azeite, podemos dizer que são refeições perfeitas. Menos carne, mas de melhor qualidade; mais peixe (incluindo cavala e sardinhas, frescas ou em conserva de azeite) e ovos (podem ser consumidos três ou quatro por semana) são opções a privilegiar.

Não retira massa, arroz ou batatas ao seu carrinho de compras?

Não, mas reduzo as quantidades ingeridas. No prato devemos ter pequenas porções de massa, arroz ou batatas e maior quantidade de hortaliças, legumes e leguminosas.

Fala-se muito na responsabilidade social da indústria farmacêutica, que ganha dinheiro à custa do tratamento dos doentes. E quanto à responsabilidade social da indústria alimentar, que ganha dinheiro atirando-nos para a doença?

A indústria alimentar está a fazer maus alimentos, mas a verdade é que as pessoas só compram o que querem. Sei que quanto menor é a informação maior é a permeabilidade ao marketing, mas o caminho também se faz através da informação dos cidadãos e da sua responsabilização. Custa-me imenso ver nas caixas de supermercado que as pessoas aparentemente mais pobres também são as que levam os carrinhos repletos de produtos inúteis e nefastos para a sua saúde. É preciso repensar a política alimentar e inovar.

Cristina Sales

A medicina que Cristina Sales exerce dá pelo nome de medicina funcional integrativa – reúne diferentes disciplinas, profissionais e recursos terapêuticos, é centrada na pessoa e procura entender onde estão os desequilíbrios que desencadeiam a doença. Para uns, trata-se de uma abordagem vanguardista, mais adaptada aos pacientes, ao tratamento e controlo das chamadas doenças da civilização. Para outros, a prática médica de Cristina Sales ainda gera alguma desconfiança. Quem não receia são os doentes que a procuram – sobretudo pessoas que vivem com doenças crónicas (alergias, enxaquecas, fadiga crónica, doenças inflamatórias, endócrinas, metabólicas e autoimunes) e que não encontraram resposta satisfatória para os problemas que as afetam. Uma consulta com a médica do Porto dura uma hora e não se marca de um dia para o outro. Porque os pacientes já são muitos e porque as palestras e conferências em que Cristina Sales é oradora convidada também são frequentes.

11 de julho de 2014

MONTE D0S PARADOXOS

Mesquita da Ascensão ©JVieira

Estive na Terra (cada vez menos) Santa uma semana como guia espiritual de 24 peregrinos – duas vezes o grupo dos 12 apóstolos – de 1 a 8 de Julho.

Entre os locais que tínhamos previsto visitar, um sábado, encontrava-se o Monte das Oliveiras, que domina Jerusalém, o Monte onde Jesus chorou por a cidade não ter reconhecido a paz que ele oferecia, o Monte da agonia; do beijo gelado da traição de Judas.

Já sentados no autocarro, a guia, uma judia com raízes no Uruguai, reuniu-se de emergência com o condutor, um palestiniano, e eu: fora informada pela agência para lhe trabalhava dde que não era seguro visitar a mesquita – sim, a mesquita – da ascensão, no cimo do Monte das Oliveiras, por na sexta-feira a área ter sido sido cenário de confrontos entre palestinianos que protestavam a morte violenta de um jovem queimado vivo em retaliação pelo assassínio de outros três judeus, por membros do Hamas, na Faixa de Gaza.

Durante uns instantes não houve acordo entre o motorista e a guia, aquele a afirmar que a visita era, sim, segura, com base em contactos que entretanto fizera, esta a insistir que não era, pondo objecções e seguindo as indicações da polícia.

Decidimos arriscar!

O cenário que nos esperava era arrasador. O monte chamado das Oliveiras, devia cheirar a azeite novo, à frescura das árvores milenares. Mas encontrámos as ruas juncadas de pequenos montes de areia, pedras de arenito atiradas pela raiva, estilhaçadas em milhares de grãos de areia contra o alcatrão negro e duro na batalha campal com as forças da (des)ordem.

Ao sair do autocarro fomos envolvidos por um cheiro nauseabundo a baganha podre. Alguém comentou: «Estes árabes são muito porcos!» Mas o cheiro não era a alguém privado da pópria água, era o rasto do odor deixado pelas granadas de gases que a polícia usara no dia anterior para dispersar os manifestantes…

Uma brigada de cantoneiros trabalhava afanosamente para limpar as ruas dos detritos da ira.

Visitámos o lugar onde a tradição diz que Jesus subiu ao céu. Era igreja, hoje é mesquita. Não tinha tecto, hoje tem uma cúpula de pedra. Mas os muçulmanos construíram um espaço de oração à direita para permitir aos cristãos celebrar o fim do ciclo de Jesus e o início da Igreja segundo a narrativa de São Lucas.

No domingo fizemos a Via-Sacra através da Via Dolorosa que serpenteia pelo Bairro Árabe de Jerusalém, o percurso que Jesus fez da Torre Antoniana até à pedreira da caveira – o Monte Calvário – onde foi crucificado num cruzamento de estradas como exemplo para os revolucionários que contestavam a dominação romana.

Perto de uma das portas que dá acesso à Esplanada do Templo onde se encontram as mesquita de Al Aqsa e da Rocha, um grupo de mulheres gritava Allah Wakbar! Deus é grande! Um dos peregrinos perguntou-me: «É um funeral não é, senhor padre?». Respondi que sim. Mas sabia que o pregão religioso era o protesto contra os seis palestinianos mortos por raides retaliatórios da aviação israelita contra o Hamas da Faixa de Gaza na noite de sexta-feira.

O pregão celebrava as mortes humanas atrás da grandeza de Deus!... A Terra de Jesus continua a ser um espaço cada vez menos santo. Dói. Dói de a visitar assim.

10 de julho de 2014

CINE ÁFRICA


Uma queniana levou a estatueta de melhor atriz secundária nos Óscares 2014 e voltou as atenções para o cinema africano.

Lupita Nyong’o foi galardoada com o Óscar de melhor atriz secundária pelo seu desempenho na película Doze Anos Escravo, que ainda não vi. A seguir, a revista People nomeou-a a pessoa mais bonita de 2014. As distinções abriram novos horizontes à atriz, esbelta e enxuta, de 31 anos e 1,65 m de altura, que nasceu no México, cresceu no Quénia, fez formação de teatro nos Estados Unidos, e despertaram a atenção sobre o bom cinema que se faz no continente.

A indústria cinematográfica africana começou a raiar na alvorada das independências e a película Borom Sarret (O Carroceiro), que o senegalês Ousmane Sembene rodou em 1963, é considerada o primeiro filme africano. A curta-metragem conta em 20 minutos a história de um condutor de carroças em Dacar, a capital do Senegal, numa parábola sobre os mecanismos da pobreza em África.

Os cineastas africanos empenharam-se em apresentar a cultura, a história e as estórias do continente para ultrapassar os estereótipos do tipo Tarzan produzidos pelos realizadores coloniais. «A primeira tarefa dos cineastas africanos é mostrar que os Africanos são seres humanos e ajudá-los a descobrir os seus valores, que podem ser postos ao serviço dos outros», proclamou o realizador Souleymane Cissé, do Mali.

O cinema africano independente foi crescendo e tornou-se presença constante no Festival de Cannes, na França, desde 1972, e noutros certames mundiais. Guardo a impressão forte que Yeelen (A Luz) de Cissé deixou em mim pela luminosidade e pelos enormes horizontes. O filme de 1987 narra a viagem de um jovem com poderes mágicos em busca de um tio para o ajudar a combater o pai feiticeiro que o queria aniquilar.

Hoje o cinema africano tem dois centros de produção maiores: Nigéria e África do Sul. Em 1972, Ola Balogun começou a adaptar ao cinema peças de teatro da cultura ioruba e deu origem a uma indústria que hoje faz mais de 590 milhões de dólares por ano. Os nigerianos produzem por ano mais de mil títulos em vídeo para o pequeno ecrã e estão quase a par de Bollywood, a indústria de cinema indiana, que lidera a produção mundial. Os filmes misturam amor, ação e feitiço, colando os telespectadores ao pequeno ecrã. O Gana segue o sistema de produção nigeriano, conhecido por Nollywood.

A África do Sul faz um cinema comercial mais do tipo de Hollywood e tira partido da diversidade de paisagens do país e dos custos de produção baixos. Tsotsi, a história de um delinquente juvenil de Joanesburgo, foi distinguido com o Óscar de melhor filme em língua estrangeira em 2006.

O cinema independente africano sofre de moléstias crónicas: dependência de fundos externos, falta de circuitos de distribuição e de salas de cinema. As películas africanas pouco mais conseguem fazer que os circuitos dos festivais do cinema, que têm quatro grandes eventos no próprio continente: o FESPACO, em Burkina Faso, um festival bienal desde 1969, o ZIFF, na ilha de Zanzibar, Tanzânia, o Cape Town World Cinema Festival, na África do Sul, e, desde 2012, o Luxor African Film Festival, no Egipto. Os poucos grandes cinemas africanos que restam vão sendo transformados em igrejas – como em Juba, clubes nocturnos ou armazéns, excepto no Quénia e na África do Sul, onde os cinemas são um dado cultural.

A indústria instituiu em 2005 os African Movie Academy Awards, com sede na Nigéria, para promover filmes, unir produtores, desenvolver novos valores, abrir canais de distribuição e criar cinemas rurais.

As novas gerações de produtores africanos estão a produzir um cinema mais intimista, filosófico e poético, em contraste com a vertente mais política dos pioneiros da Sétima Arte.

Zézé Gamboa, realizador angolano do Grande Kilapy – a história real de um Don Juan angolano antes da independência –, comentou que «muitas pessoas em Angola são analfabetas. Não podem ler livros, mas compreendem tudo sobre filmes, falam a língua, vêem as imagens. É um meio de desenvolvimento poderoso». Essa é a força do cinema africano: fala aos espectadores na linguagem que entendem. Quando o conseguem ver, sobretudo no pequeno ecrã em DVD piratas.

1 de julho de 2014

ASSISTÊNCIA HUMANITÁRIA


Os Missionários Combonianos no Sudão do Sul organizaram um voo humanitário para assistir cerca de 1000 vítimas da violência interétnica que afeta Leer desde Fevereiro.

A decisão foi tomada depois de uma visita à cidade pelo Superior Provincial, P. Daniel Mosquetti e do Irmão Nicola Bortoli a meados de Junho, para avaliar a situação humanitária e inspeccionar a missão católica.

Leer, a cidade natal de Riek Machar Teny, líder da oposição armada ao Presidente Salva Kiir Mayardit, foi tomada pelas forças do Governo, ajudadas por rebeldes do Darfur, em que a reduziram a cinzas a 2 de fevereiro.

Os rebeldes voltaram a ocupar os escombros em Abril.

O P. Moschetti diz num relatório que cerca de 6,000 famílias já regressaram do mato, mas que só as residências dos missionários e das missionárias, o jardim-de-infância, os edifícios da igreja e a escola técnica estão de pé com alguns danos menores.

Os edifícios foram totalmente saqueados.

Os edifícios estão ocupados por membros de organizações não-governamentais, das agências das Nações Unidas e por algumas famílias.

Os Médicos Sem Fronteiras voltaram a Leer em Maio e além de distribuir comida estão a reorganizar o hospital que foi totalmente destruído.

O Ir. Nicola fez parte de um grupo de nove missionários que teve que abandonar Leer na iminência do ataque governamental e andaram perdidos nos matos e pântanos da região até serem encontrados e resgatados a 20 de fevereiro.

Os dirigentes católicos locais pediram aos missionários que os assistissem com sorgo, lentilhas e açúcar.

O Ir. Nicola acompanhou um avião fretado com comida para cerca de 1,000 pessoas para fiscalizar a distribuição e vai permanecer em Leer até meados do mês.

Tanto as missionárias como os missionários estão dispostos a regressar a Leer logo que a segurança melhore.

Representantes do Governo, dos rebeles, da sociedade civil e das igrejas estão a negociar desde maio uma saída para o conflito de poder dentro do partido do Governo que rebentou a 15 de Dezembro em Juba e depressa escalou a três estados viziznho com populações dinca e nuer. Cerca de 20 mil pessoas foram mortas nos confrontos e mais de 1,2 milhões desalojadas.

O IGAD, a Autoridade Inter-regional para o Desenvolvimento, está a facilitar as negociações e deu dois meses aos intervenientes para formarem um governo de unidade nacional.

As cidades de Bor, Bentiu e Malakal, as capitais dos estados de Jonglei, Unidade e Nilo Superior foram completamente destruídas.

A diocese católica de Malakal foi também temporariamente fechada por causa dos violentos combates entre milícias nueres e tropas. Só a missão de Old Fangak, que fica numa zona remota acessível por ar ou por rio, é que continua a funcionar normalmente.