13 de janeiro de 2017

SILÊNCIO


O realizador norte-americano Martin Scorsese transformou Silêncio, a ficção mais aclamada do católico japonês Shusaku Endo, no «filme da sua vida».

Silêncio conta a odisseia física e espiritual de dois jesuítas portugueses: Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe.

À volta de 1640 embarcaram para o Japão para assistir os católicos barbaramente perseguidos pelo poder desde 1614, altura em que os missionários foram expulsos do país.

Queriam encontrar o seu mentor, o P. Cristóvão Ferreira. Relatos de comerciantes holandeses contavam que o jesuíta tinha renunciado a fé em vez de receber a coroa gloriosa do martírio.

Os padres Rodrigues e Garupe vão a Goa, passam por Macau e entram clandestinamente no Japão com a ajuda de um guia – Kichijiro – que faz a união entre os diversos blocos do filme.

Scorsese fez de Silêncio um filme tenso, intenso e extenso que prende, questiona, choca, agride, espanta durante duas horas e 41 minutos.

As torturas a que os cristãos foram submetidos para calcar o «fumie» – uma placa metálica de Cristo – e renegar a fé ou aceitar uma morte cruel gritam bem alto que a maldade humana tem requintes brutais infinitos.

A minha mente derivava, ao ver as execuções nas praias japonesas, para as costas da Líbia onde membros do Daesh executaram cristãos com a mesma crueldade.

Endo dizia-se um católico japonês num fato ocidental desajustado.

A sua produção literária é um esforço para apresentar um Cristo aceitável aos nipónicos: impotente, maternal, compassivo e companheiro dos sofredores, com um poder incrível de auto-sacrifício – como explica o P. Adelino Ascenso na sua magistral dissertação doutoral.

O romance, publicado em 1966, questiona o silêncio de Deus perante a tão desesperada situação dos cristãos perseguidos, os mártires do Japão.

O P. Rodrigues acaba por calcar o «fumie» e renegar a fé para salvar alguns cristãos torturados à sua frente.

O Crucificado diz da placa de bronze ao jesuíta português: «Calca, calca. É para ser calcado por ti que estou aqui».

O sistema japonês, sofisticado e requintado, acabou por ser mais forte que o missionário e quebrou-o como tinha quebrado ao P. Ferreira.

O P. Rodrigues casou e passou o resto da vida como budista.

Periodicamente, com a mulher, tinha que pisar a imagem de Cristo e assinar uma confissão de descrença.

Mas o missionário português continua a acreditar no seu íntimo e absolve pela enésima vez Kichijiro – o judas da narrativa que trai a Deus, à família, ao P. Rodrigues.

Continua a pedir e a receber a absolvição para depois negar a Deus até ser apanhado com uma medalha escondida num amuleto.

Kichijiro foi condenado à morte.

Rodrigues morre no fim do filme e vai a cremar como um budista. Com um detalhe: as suas mãos aconchegam o crucifixo artesanal que um cristão lhe ofereceu enquanto as chamas ameaçam o cadáver no interior de uma urna cilíndrica.

Os vizinhos comentam que a viúva não derramou uma única lágrima pelo defunto.

Foi ela que lhe colocou o velho crucifixo na mão?

10 de janeiro de 2017

NATAL, BOMBA OU HUMILDE SEMENTE?


Queridos amigos,

Encontro-me há quatro meses na minha nova comunidade comboniana de Castel d’Azzano (Verona-Itália). Estou bem e contente.

Poderia dizer que este Natal é para mim uma outra ocasião para renascer, dada a nova realidade de condições de vida, de residência, de comunidade, de colegas... Somos cinquenta confrades idosos ou doentes. Quase todos de venerável idade. O P. Efrém é o nosso decano, com quase 97 anos. Eu recuperei uma minha antiga prerrogativa de ser o mais jovem membro da comunidade, a ser adicionada àquela de ser o único doente de E.L.A. no instituto!

A nossa comunidade é uma verdadeira “sala de parto.” Em 2016 deu à luz 10 novos “santos” para o céu. Um bonito um recorde! A este ritmo em cinco anos chegaremos todos ao Paraíso!...

A nossa comunidade é também uma grande “Arca de Noé” missionária, devido à diversidade humana de seus membros; à variada amostra de surdos, cegos, mudos, aleijados, mancos... e de toda a espécie de doenças que existe debaixo do sol; mas especialmente pela diversificada e extraordinária riqueza de experiências de missão.

Vim aqui encontrar velhos amigos, conhecidos durante a minha peregrinação missionária; entre eles alguns colegas de missão, como o P. Luis, famoso pelas suas façanhas de caçador, e o P. Lino, que eu apelidei de Schumacher: guiava a toda a velocidade para “sobrevoar os buracos da estrada”, dizia ele! Nenhum dos dois, no entanto, se recorda que trabalhámos juntos no Gana. A memória, a uma certa idade, prega-nos algumas partidas! Infelizmente, o P. Luis perdeu-a há 23 anos durante uma operação de cirurgia. Desde então, passa a vida vagueando pelos corredores dizendo: “perdi a memória”, mas não pára de buscá-la, dia e noite, remexendo nas gavetas dos nossos quartos... à caça de doces!

Mas vamos ao assunto desta carta: os votos de Natal. Não é fácil falar do Natal neste nosso contexto atual duma sociedade de idosos e de gente cansada, sem crianças, nem mesmo… o menino Jesus, que desapareceu do nosso presépio!

Não obstante o peso dos anos e das canseiras, partimos também nós para Belém. Se o recenseamento é feito “cada qual na sua cidade”, queremos que a nossa seja Belém, a terra de Maria e de José, dos pobres e dos humildes. Não iriamos escolher a Roma pagã e imperial do poder e da riqueza, ou a Atenas dos filósofos e dos inteligentes, nem mesmo a velha Jerusalém do culto formal e farisaico! Queremos que o nosso nome seja registrado em Belém, com o de José e de Maria! Desde Belém, pois, envio o nosso abraço natalício.

Que desejar-vos como mensagem de Natal? Para permanecer em tema de atualidade, espero que o Menino, colocado por Maria e José na manjedoura do vosso coração, seja como… uma BOMBA que exploda em mil estilhaços de amor e de carinho, para atingir toda a vossa existência e a de quantos encontrardes pelos caminhos da vossa vida! Sim, o Menino traz consigo a potência duma ‘bomba nuclear’, capaz de destruir todas as outras bombas criadas pelo egoísmo humano e de cobrir tudo e todos com a sua irradiação de luz e de calor, para que o nosso mundo possa conhecer uma nova era de paz e de fraternidade!

Não me faço, porém, muitas ilusões. Sei que a nossa vida diária, com tantos problemas e preocupações, não pode ser sempre uma explosão de alegria e de otimismo contagiantes. Então gostaria de formular um desejo alternativo: que o Menino, na sua pequenez, seja como uma SEMENTE de ternura lançada em nossos corações. Bem cuidada, com tempo e paciência, vai conseguir o milagre, talvez menos vistoso mas não menos surpreendente, de multiplicar-se com uma fecundidade maravilhosa. Sim, o nosso coração é um campo de sementes; multiplica o que nele é semeado, tanto o trigo como as ervas daninhas! Cada um recolherá do que semeou. Na manjedoura de Belém (em hebraico, “casa do pão”), encontramos o bom trigo de Deus. Recolhamo-lo e espalhemo-lo ao nosso redor, com o sorriso amigo e um gesto concreto de generosidade! E será sempre Natal!

E para o novo ano 2017? Estejam todos os teus desejos diante do Senhor! (Salmo 37, 10). “Se o teu desejo está diante d’Ele, o Pai, que vê em secreto, te escutará. O teu desejo é a tua oração. Se o teu desejo é contínuo, contínua é também a tua oração. Se não quiseres parar de orar, não deixes de desejar “ (Santo Agostinho). Eis, pois, os meus votos para o novo ano: um coração cheio de desejos, desejos realmente grandes!

Com amizade,
P. Manuel João Pereira Correia
Missionários Combonianos - Centro Alfredo Fiorini 
Via Oppio, 29
37060 CASTEL D’AZZANO VR (Itália)
Tel. (0039) 045 8521511 - 3911773617

6 de janeiro de 2017

ÀS ARMAS


Os países africanos gastam mais de 40 mil milhões de dólares por ano com a defesa.

A globalfirepower.com publica todos os anos uma série de tabelas analíticas dos gastos de 126 poderes militares modernos, incluindo 30 africanos. A leitura cruzada dos dados pode ser aborrecida, mas é essencial para entender a realidade.

Os 30 países de África que integram a lista gastaram juntos cerca de 40 mil milhões de dólares na segurança em 2015. Nada que se compare com os 581 mil milhões que os Estados Unidos da América necessitaram para manter a supremacia militar global, mas mesmo assim é muito mais do que investiram no desenvolvimento.

Por países, a Argélia leva a dianteira com um orçamento de 10,57 mil milhões de dólares por ano; seguem-se a África do Sul (4,6 mil milhões) e o Egipto (4,4 mil milhões). Angola, Marrocos, Líbia, Sudão e Nigéria registam gastos entre os 4,1 e 2,3 mil milhões.

Em termos de classificação, a Argélia ocupa a posição 22 entre os 126 países mais gastadores. A África do Sul está no 43.º lugar e o Egipto no 45.º Angola, na posição número 47, está à frente de Portugal, que ocupa a posição 49.ª com um gasto de 3,8 mil milhões com a defesa.

Note-se que o Sudão do Sul paga 545 milhões de dólares pela sua máquina de guerra. Ocupa a posição 84.ª na tabela mundial, acima dos vizinhos Etiópia (90.º), Uganda (94.º), República Democrática do Congo (106.º) e República Centro-Africana (126.º). Contudo, em termos de produto interno bruto, o país está na cauda das economias mundiais.

O dinheiro despendido na defesa, contudo, não corresponde ao músculo militar. Se a Argélia é o que mais gasta, o Egipto é de longe a primeira potência militar africana e a décima segunda na escala dos 126 países listados pela Global fire power. A Etiópia, que ocupa a 90.ª posição quanto a gastos, é a terceira força militar em África e 42.ª a nível mundial depois da Argélia (que ocupa a 26.ª posição global).

No que respeita à aviação, o Egipto com 13 444 unidades tem a primeira força aérea da África e a sétima do mundo, acima do Reino Unido, que ocupa a posição número 12. Seguem-se-lhe a Argélia, Marrocos e Angola, nas posições globais 26, 33 e 35, respectivamente.

Comparando as marinhas, o Egipto detém a mais poderosa frota naval africana e a sexta do mundo, apesar de ter só mais 657 quilómetros de costa que Portugal. Marrocos, Nigéria e Argélia vêm a seguir.

O poderio militar e a deriva securitária devido a conflitos internos em alguns países africanos têm custos muito elevados sobretudo para economias mais débeis e são os mais pobres quem mais sofre as consequências. O dinheiro tão necessário para o desenvolvimento acaba no poço sem fundo da guerra.

O Sudão do Sul é exemplar: quase metade dos dinheiros que o Parlamento de Juba alocou no orçamento para 2017 foram para a defesa. A outra metade mal dá para os salários da função pública, e as despesas da saúde, educação, infra-estruturas e outros gastos fundamentais numa economia com a hiperinflação anual de 830 por cento.

Não admira, portanto, que apesar do crescimento que a economia africana regista, o número dos pobres continue a crescer: grande parte da riqueza é para pagar a pesada factura (ocidental) do armamento a credores, traficantes e fornecedores. A paz fica mais barata.

5 de janeiro de 2017

NATAL MISSIONÁRIO ITINERANTE





Um dos missionários da missão em Nyal, no Sudão do Sul, o comboniano mexicano P. Fernando Galarza, e um bom grupo de pessoas aguardavam a chegada do helicóptero a serviço das Nações Unidas que aterrissaria na poeirenta pista de pouso de Nyal, no Sudão do Sul, às 11.00 da manhã do dia 21 de dezembro de 2016. Entre os passageiros estava P. Raimundo Rocha, missionário comboniano brasileiro que chegaria à missão de Nyal para celebrar o natal com as comunidades afetadas pela guerra civil naquela região do Sudão do Sul nas duas semanas seguintes.

Celebrar o natal do Senhor num contexto de guerra é uma experiência que o P. Raimundo repete há quatro anos. Ele e seus companheiros missionários primeiro celebraram o natal com deslocados de guerra em Leer, em 2013, quando a guerra civil começava a ganhar contornos nos seus primeiros dez dias de confrontos. O natal entre os deslocados de guerra se repetiu em 2014, dessa vez na capital Juba, onde dezenas de milhares de deslocados ainda são mantidas nas bases de proteção da ONU. Fugindo dos conflitos e a procura de proteção, muita gente não pode celebrar a festa do nascimento de Jesus no ano anterior. Em 2014 foi como celebrar um «duplo natal».

O P. Raimundo manteve seu natal missionário itinerante em 2015. Dessa vez ele se juntou aos deslocados de guerra na base de proteção de civis da ONU, em Rubkona e Bentiu, que passam de cem mil. Em 2016 o missionário celebrou o natal entre as comunidades afetadas pela guerra pela quarta vez. Esse último natal foi celebrado na missão de Nyal, numa área relativamente calma da sua antiga missão em Leer.

Entre alguns aspectos comuns desse natal missionário itinerante está a alegria. O Natal é sempre uma festa muito alegre para o povo sul-sudanês que se junta aos milhares para esse grande evento. Além disso, o reencontro de P. Raimundo com o povo da missão de Leer e a celebração das festividades natalinas tem proporcionado momentos de grande alegria tanto para o povo quanto para o próprio missionário nessas idas e voltas da missão.

Outra característica comum dessa missão é a esperança de paz. As celebrações natalinas dos últimos quatro anos foram cheias de esperança e anseio por paz. Nem mesmo o ambiente hostil, ameaçador, às vezes tenso e incerto, resiste à poderosa força de paz trazida pelo Menino Jesus. Além disso, a acolhida, hospitalidade, generosidade e partilha do povo Nuer são sempre autênticas e constantes, apesar do ambiente de pobreza e muita necessidade.

Porém, para o P. Raimundo, esse natal foi mais especial. Poder retornar à sua antiga missão e celebrar com seu povo não tem preço e nada lhe tira a grande alegria vivida. O mesmo diga-se do povo que teve um natal mais alegre e de maior esperança de paz.

As comunidades são distantes e os três missionários em Nyal se dividiram para melhor servir ao povo. O P. Jacob Solomon, comboniano etíope, se deslocou à comunidade mais distante que leva um dia de caminhada para alcançar. O e. Fernando caminhou um pouco mais de seis horas para chegar a outro centro missionário. O P. Raimundo permaneceu na sede da missão, em Nyal, e se deslocou às comunidades mais próximas, localizadas a três horas de caminhada.

Nem a distância, o suor, o calo no pé impedem a alegria de ir ao encontro do povo em missão e anunciar-lhes o Evangelho em sua própria língua. É lindo de ver os jovens realizarem suas marchas com bandeiras, tambores e cantos numa profunda demonstração de orgulho de sua fé. Cada vez que o missionário seguia para uma nova comunidade, eles o acompanhavam como seus «guardiões» e diziam: «Vamos levar o nosso padre até a próxima comunidade». Lindo de ver também era o sorriso enorme das mães das quase setecentas crianças que foram batizadas. As dezenas de jovens que receberam a primeira Eucaristia e o Crisma o faziam com a convicção de quem está determinado a seguir Jesus Cristo.

Era comum, porém, ver jovens armados, como se estivessem prontos para o combate, mesmo não havendo conflito nas proximidades. Muitos deles ainda com rosto de criança, reflexo da triste realidade das «crianças-soldados». A cada dia chegava mais deslocados de guerras vindos de outras áreas. Rostos sofridos, estômagos vazios, longas caminhadas, horas a fio sentados em canoas pequenas feitas de palmeiras que seguem pelos pântanos do rio Nilo. Gente a procura de proteção, alimento, saúde... ou simplesmente procurando parentes. Muitos querem deixar o país e não conseguem.

Cada pessoa tem uma estória pra contar. Quantos já perderam a vida! Quantas mulheres violentadas! Quantas casas queimadas! Tudo isso para quê? Tudo fruto da maldade de corações gananciosos que querem poder e riqueza à custa de vidas inocentes. Ao longo desses anos de sofrimento o povo aprendeu a desenvolver mecanismos para lidar com esse tipo de situação e adquiriu uma enorme resiliência que lhes permite seguir adiante. Soma-se a isso a fé no Deus da vida, da misericórdia e da paz.

O Sudão do Sul começa o novo ano em relativa paz, apesar das incertezas e a ameaça da fome. Nesse contexto de guerra, os missionários continuam sendo presença solidária no meio desse povo sofrido e ajudam a construir a paz e a promover a justiça e reconciliação. O natal missionário itinerante não só anuncia o nascimento do Salvador e é fonte de alegria e esperança, como também é uma forma de não-violência ativa em situações de conflitos. O povo aprende que a verdadeira paz não se impõe com armas, ódio e perseguição. Ela chega na fragilidade de um Menino, o Emanuel, Príncipe da Paz.

P. Raimundo Rocha, mccj
Missionário Comboniano em Juba, Sudão do Sul

2 de janeiro de 2017

CARTA POR OCASIÃO DO 150.º ANIVERSÁRIO DO INSTITUTO COMBONIANO


O Reino do Céu é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a mais pequena de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se uma árvore, a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos (Mt 13, 31-32)

1 de Janeiro de 2017

Caros confrades,

Saudamos-vos com alegria e gratidão no início deste novo ano!

A 1 de Junho de 1867 Mons. Daniel Comboni fundou em Verona o «Instituto para as Missões da Nigrícia» que, transformado em Congregação religiosa a 28 de Outubro de 1885, se tornou de direito pontifício a 7 de Junho de 1895.


1. Recordando os primeiros passos (um olhar sobre o passado)

Relendo as origens do nosso Instituto, é-nos difícil imaginar no que se tornaria com o passar do tempo. O texto do Evangelho acima referido faz referência aos planos de Deus, amante da pedagogia que parte de baixo. Um Deus que se serve daquilo que aos olhos do mundo conta pouco mas que, na sua mente divina, se torna projecto e se concretiza com a colaboração humana. Precisamente como a pequena semente do Evangelho, na qual está contido já uma grande árvore.

À morte do nosso Fundador os missionários contavam-se pelos dedos de uma mão. Aquela mão-cheia dos primeiros filhos foi acompanhada, nos primeiros anos, por sacerdotes da Companhia de Jesus. Catorze anos depois eles contribuíram para lançar os fundamentos do nosso Instituto, procurando dar à Congregação uma fisionomia e um rosto próprios. No fim do século dezanove o Instituto contava 18 sacerdotes, 21 Irmãos e 21 estudantes candidatos ao sacerdócio, sessenta ao todo.


As chamadas de Deus

Nós, pertencentes à família comboniana, sabemos que Daniel Comboni sentiu a chamada de Deus quando era ainda muito jovem, aluno do colégio Mazza, antes de tudo lendo o testemunho dos Mártires do Japão e depois ouvindo o testemunho de Don Angelo Vinco (E 4083), o missionário que, acabado de chegar da África Central, semeou no coração daqueles rapazes a paixão pelo seu trabalho. E Comboni, não obstante a idade, tomou a decisão que nunca mais abandonaria: dedicar toda a sua vida a anunciar o Evangelho aos povos africanos que – como intuía – tinham uma grande necessidade de conhecer a Boa Nova. Assim, ainda mazziano trabalhou intensamente pela missão africana, vivendo de modo apaixonado a sua pertença àquelas irmãs e irmãos ainda desconhecidos.

Entretanto as notícias sobre aquilo que acontecia aos seus companheiros mazzianos no continente africano, em vez de desencorajá-lo, impeliram-no a unir-se ao pequeno grupo dos missionários que a 10 de Setembro de 1857 partiu para a África – Giovanni Beltrame, Francesco Oliboni, Angelo Melotto, Alessandro Dal Bosco, Isidoro Zilli – sustentados pelas palavras de Don Nicola Mazza, que se tornaram para eles uma bênção e um desafio: «promovei sempre e somente a glória de Deus, que tudo o mais é vaidade. Colocamos a nossa missão sob a protecção da Virgem Imaculada e de São Francisco Xavier, o grande apóstolo das Índias». Aquela curta experiência de apenas dois anos em África marcou profundamente a vida de Daniel Comboni (E 465). O seu coração permaneceu ali ao mesmo tempo que ele não pensava senão em tudo o que tinha conhecido em primeira pessoa. Foi algo de semelhante ao que aconteceu com o carácter baptismal: a África tornou-se nele uma marca indelével, a ponto de não ter querido renunciar à possibilidade de regressar para lá (E 3156) e, entretanto, continuou a trabalhar activamente pelo bem da missão africana.

Como aconteceu com outros fundadores no seu percurso vocacional, também São Daniel Comboni sentiu a necessidade de dar força à primeira chamada e trabalhar no continente dos seus sonhos e, embora cumprindo a promessa feita a «Don Congo» (Don Nicola Mazza) de consagrar a sua existência à causa da África, foi obrigado pelas circunstâncias a tornar-se fundador de uma família missionária.

Esta sua experiência recorda-nos a importância de manter-nos fiéis a um ideal, lembrando que como os marinheiros se deixavam guiar pelas estrelas se queriam chegar ao porto, nós temos de deixar-nos guiar pelos ensinamentos do Evangelho se queremos ser pessoas coerentes e fiéis. A vocação missionária e a pertença a uma família missionária são um dom, não são mérito nosso. Somos missionários porque Deus foi bom e quis servir-se de nós para mostrar o seu rosto paterno a tantos irmãos e irmãs que ainda não o conhecem.

Agradecemos a Deus também pelo testemunho de tantos missionários que nos precederam e ofereceram a sua vida pela missão. Eles são os elos de uma longa cadeia de que fazemos parte, que nos reporta às origens, à fonte de onde nascemos. Pertencemos a uma família de santos de que devemos ser orgulhosos. Somos fruto do amor apaixonado do nosso Fundador pela missão, herdeiros de uma vocação que brota do coração traspassado de Deus, que nos coloca numa atitude de saída (EG, 27) e nos leva até às periferias existenciais da história. Alguns de nós foram abençoados com o dom do martírio, expressão máxima de doação, como nos recorda o Evangelho: Não há maior amor do que dar a vida pelos seus amigos (Jo 15, 13).


2. Olhamos com realismo o presente: chamados a testemunhar o Reino de Deus
Depois de um século e meio, continuamos a ser um Instituto pequeno: atendendo às estatísticas, nunca ultrapassamos na nossa história os dois mil membros, mas isto não deve desencorajar-nos, pelo contrário, deve estimular-nos a ser testemunhas fiéis da bondade e da misericórdia de Deus entre os últimos, aqueles que a sociedade esqueceu. Não obstante a nossa «pequenez», não podemos esquecer todo o bem que Deus fez e continua a fazer através dos nossos missionários. É o que nos recorda também o último Capítulo: Os missionários combonianos identificados, generosos e dispostos a dar a vida por Cristo e pela missão são muitos; sem ruído gastam-se todos os dias nos serviços que lhes são confiados. A presença dos missionários que são testemunhas do Ressuscitado no meio dos pobres e marginalizados, é uma bênção que nos recorda a razão de ser da nossa opção de vida. Eles são «parábolas existenciais», pontos de referência nas diversas tarefas que desempenhamos (DC 2015, nº 14).

Somos chamados a ser testemunhas do Reino de Deus onde quer que somos mandados. Por isso é necessário ser sempre fiéis à Palavra e seguir um programa sério de uma renovação contínua no nosso caminho de discipulado.


Conversão

E todavia, olhando para o passado, temos de reconhecer que nem sempre fomos fiéis. Muitas vezes, obrigados pelos desafios ou pelo medo, recuámos perante as adversidades e as provações. Por vezes afastámo-nos da intuição primigénia e acomodámo-nos na segurança das nossas escolhas, pensando salvar a nossa vida e não a dos nossos irmãos e irmãs mais abandonados.

O «Jubileu da Misericórdia» encerrou há pouco: pedimos a Deus, fonte de caridade, que tenha misericórdia das nossas incoerências e dos nossos pecados, pessoais e institucionais, e conceda a todos o dom da conversão, condição para acolher o Reino de Deus que vem (Mc 1,15), para acolher a sua Palavra e ser pessoas felizes pela vocação recebida (cf. DC 2015, nº 4).


As cruzes, sinais no caminho


Quando falamos de felicidade, não queremos dizer que não haverá nuvens no horizonte. As dificuldades, mais tarde ou mais cedo, apresentam-se sempre na vida. São Daniel Comboni chamava-as «cruzes» e todos sabemos que, à medida que avançava, os problemas que se lhe apresentavam tornavam-se cada vez maiores; mas até das nuvens mais negras pode sair água límpida. Do mesmo modo, as experiências difíceis podem tornar-se o cadinho em que se purificam os nossos sonhos e os nossos programas. Pensamos nos confrades que se encontram em situações de violência, de pobreza extrema, de perseguição e perigos constantes: tudo isto nos causa sofrimento, porque nos sentimos próximos a eles e nos afeiçoamos às pessoas e aos lugares, mas sabemos também que é garantia da autenticidade do nosso serviço missionário.

Comboni gostava de repetir que as obras de Deus nascem e crescem aos pés da cruz. É interessante redescobrir sempre de novo que as cruzes, para o nosso Pai fundador, em vez de serem obstáculos no caminho eram sinais que lhe indicavam a meta. As cruzes garantiam-lhe que estava a caminhar na direcção certa. Pedimos a Deus poder fazer nossas as palavras de São Daniel: «Eu sou feliz na cruz que levada de boa vontade por amor de Deus gera o triunfo e a vida eterna» (E 7246).

Recordamos que quando, por falta de pessoal missionário, a missão africana corria o risco de não continuar porque o Instituto Mazza não podia mais apoiá-la, outros Institutos, graças a Deus, se uniram ao esforço de Comboni. Em primeiro lugar, os Camilianos, depois as Irmãs de São José da Aparição, membros de outros Institutos e leigos que acreditavam no seu projecto.

O amor pela missão extravasa, inunda e fecunda os corações e as vontades para os empurrar na mesma direcção. Deste modo a primeira intuição do nosso Fundador torna-se uma bela realidade e vai ao encontro de numerosos irmãos e irmãs que encontra no seu caminho. Por isso é importantíssimo também hoje aprender a trabalhar «em rede», compreender que as iniciativas, mesmo se belas e necessárias, se ligadas a uma só pessoa dificilmente continuam. O nosso Fundador, com o seu testemunho, procurou envolver tantas pessoas e fazê-las participar na missão. Muitas vezes teve de pôr de parte as diferenças de pensamento ou pontos de vista, para fazer com que os colaboradores permanecessem na missão, convicto de que só o trabalho em comunhão tem um futuro, porque se inspira no Deus Trino que se revela como família.


3. Olhamos para o futuro com esperança
Animemo-nos, pelas circunstâncias presentes e mais ainda pelos dias que virão, são as palavras pronunciadas por São Daniel Comboni antes de morrer, de acordo com o material recolhido pelos seus biógrafos.

Somos convidados a olhar para o futuro com esperança. Vivemos momentos difíceis mas as provações, como aludimos acima, não devem desencorajar-nos, certos de que o Senhor nos acompanhou, nos acompanha e continuará a fazê-lo, como nos recorda o Evangelho: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado. E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos» (Mt 28, 19-20).

O último Capítulo Geral convidou-nos não só a converter-nos mas também a sonhar um novo modo de compreender e de viver a missão. Devemos «tornar-nos missão» anunciando a alegria do Evangelho em solidariedade com os povos, fazendo-nos promotores de reconciliação e de diálogo, redescobrindo a espiritualidade das relações a nível pessoal, institucional, social e ambiental (DC ’15, nº 20). Neste 150.º aniversário de fundação, desejamos recordar aquilo que todos nós temos a peito, isto é, o convite do Capítulo ao renovamento do Instituto, também através do aprofundamento da Regra de Vida segundo o percurso que nos será oferecido e fazendo nossos os desafios propostos, como a interculturalidade, a ministerialidade, a reorganização, etc. Tudo isto nos permitirá requalificar a nossa vida e o serviço que oferecemos à Igreja, à sociedade e ao nosso Instituto.

Vivamos este 150.º aniversário como uma oportunidade para aprofundar e estender as nossas raízes, revigorar o nosso tronco e continuar a ser uma árvore que dá bons frutos, frutos de justiça, de paz e de caridade, para contribuir para o crescimento do Reino de Deus.

Programa a nível da DG para 2017:

  • Carta do CG para lançar o Ano Jubilar do 150.º aniversário do nosso Instituto e apresentação do LOGO oficial.
  • Preparação de seis subsídios bimestrais que serão publicados na Família Comboniana para sublinhar três etapas da história do Instituto:
a) uma reflexão sobre as nossas origens;
b) um olhar e reflexão sobre o momento presente;
c) acolher os novos paradigmas e desafios da missão.
  • Celebração do Simpósio em Roma (25 de Maio a 1 de Junho)
  • Encontro dos Conselhos Gerais da Família Comboniana (2 de Junho)
  • Uma celebração particular a 10 de Outubro
  • Iniciativas várias
  • Encerramento do Ano Jubilar
Convidamos todas as circunscrições a organizar outras iniciativas in loco para que sejam ocasiões de animação missionária e, sobretudo, de renovamento do ideal missionário e do sentido de pertença ao nosso Instituto Comboniano.

Boas celebrações e feliz aniversário!

O CONSELHO GERAL

DESTRELADO


O jornalista, escritor e dramaturgo brasileiro consagrado Nelson Rodrigues intitulou as suas memórias A menina sem estrelas publicadas em novembro de 2016 pela Tinta da China. 

As 81 crónicas foram originalmente publicadas no jornal brasileiro Correio da Manhã entre fevereiro e maio de 1967.

Os textos misturam amor, morte e sexo, os ingredientes primordiais da vida. 

Complexo e compacto, no que diz respeito aos conteúdos, o livro é contudo de leitura fácil e agradável dado o estilo eloquente em que grafa os seus pensamentos, sentimentos e apontamentos.

O assassinato do irmão, a primeira visão da nudez feminina e a iniciação num bairro de prostituição, a fome que não lhe permitia o luxo do ódio, a experiência num sanatório para curar a tuberculose, estórias de traição, adultério, suicídio e homicídio, a cegueira da filha que não podia ver as estrelas, as inseguranças e a necessidade constante do reconhecimento literário – tudo isto confessa com uma simplicidade honesta e desarmante como que num exercício de psicoterapia.

Nelson Rodrigues começou a exercer o jornalismo aos 13 anos. Fala com saudades do jornalismo criativo e adjectivado, criativo. Queixa-se que a objectividade e o copy-desk mataram a emoção no jornalismo.

Há uma referência repetida à literatura portuguesa. Os Maias são evocados amiúde. Para Nelson Rodrigues, o suicido de Antero Quental foi o seu último poema.

Das muitas frases lapidares que burilou anoto uma que me tocou: «só os profetas enxergam o óbvio».

Nelson Rodrigues nasceu em 1912 e faleceu em 1980.

Uma janela para um Brasil distante, mas interessante; uma reflexão honesta e exposta, em primeira pessoa, sobre a tensão do viver, amar e morrer; uma obra que merece uma leitura atenta sobre o mistério humano.