9 de março de 2024

PIQUENIQUE NO DESERTO EM FLOR





«Que rica comida!», dissemos às professoras do jardim infantil.

As escolas pré-primárias estão no deserto, mas todos os anos organizamos um piquenique com as crianças que as frequentam. Às vezes as mães também participam.

Encontramo-nos numa das aldeias beduínas mais distantes, rodeada de paisagens formosas, penedos, areia e flores de todas as cores e fragrâncias.

«Sim, nós preparamos a comida, mas foram as meninas que fizeram as compras!», responderam.

No topo de uma colinita, sob os raios do sol, as professoras entenderam as toalhas sobre a areia e puseram a comida, bebida e guloseimas para as crianças. Um banquete requintado no meio do deserto.

Fitámo-las com surpresa e alegria.

As meninas a quem se referiram são as jovens que iniciaram o curso de bordados há apenas alguns meses.

No início, lutaram muito.

«Não volto à aula!»; «Não sou capaz!»; «Não posso...», repetiram uma e outra vez.

Entretanto, à força de insistirmos e de conversarmos com elas, um dia surpreenderam-nos. Bordaram porta-chaves tão bonitos e tão bem feitos que superaram todas as outras bordadeiras.

E daí começaram a florir. 

Os porta-chaves e os marcadores de livros começaram a ser feitos com mais pormenores e perfeição. E alegria. A sua autoestima cresceu e o seu orçamento também.

Estas jovenzitas, que nunca tinham recebido uma remuneração pelo seu trabalho, partilharam o dinheiro que agora recebem com a venda dos seus belos bordados.

Com alegria e orgulho, ofereceram parte dos seus lucros para as crianças – e nós próprias! – termos uma refeição digna e abundante.

Comemos até nos saciarmos a deliciosa makluba, um prato festivo feito de arroz e frango.

 As crianças são pequenas, como as flores que espreitam por entre as pedras e a areia.

Caminharam muito e continuam cheias de energia. Resistem, sorriem, brincam. 

Outra memória feliz que podem entesourar.

Oh, sim: Deus faz florir o deserto e de maneira admirável e belíssima.

Obrigado, meu Deus. Que admirável que és!

Cecília Sierra, missionária Comboniana

A Ir Cecília faz parte de uma equipa de três missionárias combonianas e algumas voluntárias que trabalham com os beduínos palestinianos no Deserto da Judeia, na Terra Santa.

4 de março de 2024

GUJIS: PASSAGEM DO PODER



 





O povo guji – mais de dois milhões de pessoas que vivem no sul da Etiópia e pertencem à grande etnia oromo – tem um sistema de governo muito democrático a que chama de Gada

A sociedade masculina está estratificada numa dúzia de graus correspondentes a faixas etárias de oito anos cada, agrupadas em quatro classes, representando as quatro fases da Lua. 

Cada homem guji nasce num determinado grau gada e a sua atribuição tem também a ver com a idade do pai: o filho tem de estar sempre quatro graus atrás do progenitor.

Cada oito anos os homens nascidos num determinado grau passam para o grau seguinte. Os gujis chamam marsá balli (transmissão ou passagem do poder) a este evento. 

Para a passagem do poder, o povo guji reúne-se numa grande assembleia chamada Gumi em Arda Jila – uma colina sagrada junto à cidade de Me’e Bokko, a meia dúzia de quilómetros da missão de Qillenso. 

Celebraram a sua cultura e elegem os abba Gada – literalmente os pais da ordem: os líderes dos três subgrupos gujis: Uraga (com quem vivi seis anos), Matti (onde me encontro) e Hokku (os gujis das terras baixas).

Este ano foi o ano da passagem do poder. Milhares de Gujis, homens e mulheres, reuniram-se em Arda Jila para proclamar os seus credos e a sua cultura, ratificar e atualizar as leis costumárias que regem a tribo (desde a fixação de dotes até às compensações por ferimentos ou morte) e para eleger os três Abba Gada e as respetivas equipas de assessores.

A grande assembleia começou a 14 de fevereiro e terminou uma semana depois. A pacata colina de Arda Jila – normalmente pasto de gado e refúgio de babuínos – e arredores, transformaram-se no epicentro do território guji.

Nos dias anteriores, palhotas provisórias foram erguidas para acolher os dignitários da tribo e para realizar algumas das cerimónias referentes à eleição. O espaço à volta de uma me’e, árvore sagrada para os gujis, foi limpo para acolher outros ritos.

Alguns comerciantes construíram barraquinhas para vender comida e bebidas à multidão que veio das três partidas gujis para celebrar a festa Gada, testemunhar a passagem de poder e mostrar que apesar dos ventos da modernidade, devido à escolarização e às redes sociais, a cultura guji continua viva e recomenda-se.

O ambiente durante a semana foi de festa. O branco era a cor dominante das vestes – decorado na maioria com barras azuis para eles e negras para elas. As mulheres traziam as suas cabaças de leite cobertas de missangas e decorações vistosas. Enquanto uma parte da multidão seguia os diversos ritos, sentada na erva seca da colina, outros passeavam a beleza e as vestes pela estrada de alcatrão que ladeia a colina sagrada.

Fui lá nos últimos dois dias para viver o clima de romaria que havia tomado conta da pacata colina e tirar algumas fotos. Vi a alegria e a vaidade de ser guji. E como era dos poucos estrangeiros presentes na assembleia, tive de aceitar fazer dezenas de selfies com quem me pedia, um verdadeiro momento Marcelo Rebelo de Sousa!

A escolha do Abba Gada dos Matti foi controversa. A eleição recaiu sobre um jovem que teve de ser casado à pressa na tarde anterior para poder receber o título e as insígnias de Abba Gada

As pessoas referiam-se-lhe como muchá, o moço. O dono do cavalo em que os Abba Gada eleitos se passeiam por entre a multidão, não lho queria emprestar. Houve alguma confusão, as tropas do estado regional da Oromia repuseram a calma, e o Abba Gada Matti pôde receber a sua (pequena) aclamação.

Abba Gada é o líder supremo de cada um dos três ramos gujis e leva como distintivo um falo de metal (kalacha) amarrado à testa – símbolo de fertilidade – e uma pena de avestruz. Tem poder para abençoar e amaldiçoar e para governar o seu subgrupo. A primazia entre os três Abba Gada cabe ao líder dos Uragas. 

Abba Gada não está sozinho no governo; é assistido por cinco conselheiros também eleitos e por um número de anciãos que já passaram pelo grau gada e são os depositários da memória guji.

Uma vez eleitos e aclamados, os três novos Abba Gada abençoaram a multidão e iniciaram uma peregrinação pelos locais sagrados das respetivas regiões. 

Daí a oito anos vão passar o poder ao escalão que os precede. 

Este ano realizou-se oficialmente a septuagésima quinta transição de poder. Assim sendo, o sistema gada dos gujis tem pelo menos 600 anos. Contudo, durante a conquista e integração do território guji na Etiópia, no século XIX, o imperador suspendeu por alguns anos a Jila Gada, a festa gada, e a passagem do poder.

22 de fevereiro de 2024

PROVOCAÇÕES DO PAPA À MISSÃO NA ETIÓPIA


O Papa Francisco publicou a Exortação Apostólica Laudate Deum (LD) sobre a crise climática, dirigida a todas as pessoas de boa vontade, na festa de São Francisco de Assis, oito anos depois da inovadora Carta Encíclica Laudato si' (LS) sobre o cuidado da nossa casa comum.  

O ecoPapa regressa ao tema, porque o nosso «maltratado planeta» está a entrar em colapso e as alterações climáticas estão a causar estragos por todo o lado. O Papa explica:

«Já passaram oito anos desde a publicação da carta encíclica Laudato si’, quando quis partilhar com todos vós, irmãs e irmãos do nosso maltratado planeta, a minha profunda preocupação pelo cuidado da nossa casa comum. Mas, com o  passar do tempo, dou-me conta de que não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando dum ponto de rutura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida que o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e noutros âmbitos» (LD 2).

Que desafios a Laudate Deum coloca à missão comboniana na Etiópia? Retiro cinco provocações concretas da Exortação Apostólica.


1. Pequeno é importante: «Pequenas mudanças podem provocar alterações importantes» (LD 17).

Os católicos na Etiópia são, de facto, uma Igreja muito pequena, com menos de um milhão de fiéis (cerca de 0,8 por cento da população). A província dos Combonianos também é pequena: 24 missionários em oito comunidades e mais dois a caminho. A pequenez pode criar um complexo de inferioridade, levando-nos a escondermo-nos na nossa zona de conforto — as nossas missões — à margem da sociedade. 

No entanto, Jesus apresenta o Reino de Deus em termos de pequenez: um grão de mostarda, um pouco de fermento. Ele chama o seu pequeno rebanho para ser a luz, o sal e o fermento do mundo — três coisas que, em grandes quantidades, representam desastre seguro.

O Papa apela à Igreja Católica e aos Combonianos na Etiópia para que vivam a sua cidadania plena sem medo. A Igreja dá um grande contributo para a educação e a saúde. Deveria também ser uma voz profética líder para os que não têm voz em tempos de agitação ao longo de linhas de fratura étnicas a nível regional e nacional, especialmente em questões de Justiça, Paz e Integridade da Criação.


2. Humildade: «Repensamos a nós próprios para nos compreendermos de maneira mais humilde e mais rica» (LD 68).

Como Combonianos, passámos por uma grande mudança histórica, especialmente no Vicariato Apostólico de Hawassa: de fundadores com uma história missionária de grande sucesso, passámos a ser um grupo pequeno entre os seus muitos agentes pastorais. 

Comboni queria os seus missionários santos e capazes... e humildes (Escritos 6655). Para Comboni, a humildade é uma virtude fundamental para o serviço da missão, «fundamento de todas as virtudes» (Escritos 2814). 

Este processo de desempoderamento torna-nos participantes da própria kenosis de Jesus. A missão não é nossa. É missio Dei, missão de Deus. Somos humildes trabalhadores na vinha de Deus. Este processo de auto-esvaziamento deve também afetar a nossa relação com as pessoas que servimos e as suas culturas, tirando as sandálias do nosso etnocentrismo para decolonizar o serviço missionário.


3. Multilateralismo: «A globalização propicia intercâmbios culturais espontâneos, maior conhecimento mútuo e modalidades de integração dos povos que levarão a um multilateralismo “a partir de baixo” e não meramente decidido pelas elites do poder» (LD 38).

O multilateralismo é para a sociedade civil o que a ministerialidade é para a Igreja: um forte remédio para o elitismo e o clericalismo — onde os clérigos sabem tudo, fazem tudo e mandam em todos. Deve vir «a partir de baixo»: ao promover uma Igreja ministerial, temos de ouvir a comunidade cristã, dando-lhe poder e permitindo-lhe definir o próprio roteiro.


4. Transição energética: «Quanto à necessária transição para energias limpas, como a eólica, a solar e outras, abandonando os combustíveis fósseis, não se avança de forma suficientemente rápida» (LD 55).

O carbono é o principal agente da crise climática mundial. A transição energética para fontes renováveis é a única forma de a travar e inverter. Temos de reduzir a nossa pegada de carbono de duas formas: (1) preferindo a energia solar ao gasóleo para iluminar as nossas casas; (2) mantendo os nossos carros em bom estado de conservação, uma vez que não temos dinheiro para comprar veículos eléctricos ou novos. Outras medidas: programar viagens, partilhar carros e, sempre que possível, utilizar meios de transporte locais.


5. Percurso de reconciliação: «Convido cada um a acompanhar este percurso de reconciliação com o mundo que nos alberga e a enriquecê-lo com o próprio contributo, pois o nosso empenho tem a ver com a dignidade pessoal e com os grandes valores» (LD 69).

São muitas as escolhas que assinalam a nossa participação nesta reconciliação global. Entre elas distingo

  • optar por um estilo de vida simples, ecológica e economicamente sustentável para reduzir a pegada de carbono e contrariar o consumismo;
  • comer menos carne e mais proteínas de origem vegetal, porque as vacas contribuem para o aquecimento global através do metano que libertam;
  • comprar a granel ou em embalagens maiores e escolher embalagens de vidro, papel ou metal para reduzir a poluição causada pelo plástico;
  • reduzir os desperdícios e reciclar; 
  • comprar roupas em segunda mão nos mercados locais para contrariar a moda, que é responsável por dez por cento das emissões de carbono;
  • utilizar computadores, telemóveis e outros aparelhos até ao fim da sua vida útil, resistindo à tentação de mostrar o último modelo; 
  • manter as nossas casas reparadas, sem perdas de energia e de água
  • reflorestar os nossos terrenos com espécies autóctones, evitando o eucalipto. 

«Tudo concorre para o conjunto» (LD 70), afirma Francisco. Juntemos a nossa pequena parte para salvar o planeta e a nós próprios da catástrofe eminente que paira sobre a nossa casa comum.

12 de fevereiro de 2024

DEUS MENOR


No sorriso desdentado das crianças enxergo o rosto resplandecente de Deus.

Nos olhos traquinas e curiosos da pequenada  vejo o olhar translúcido de Deus.

No brincar despreocupado dos miúdos contemplo a força criativa de Deus.

No dormir tranquilo do bebé
adoro o descanso de Deus,
a sua eternidade.

Nos soluços esfomeados, doridos dos mais pequenos
sinto o Deus que sofre connosco.

Deus-connosco,
Emanuel.

10 de fevereiro de 2024

NA VIDA, NA MORTE, NO AMOR UNIDOS



Faz dois meses que os pais partiram: o Ti Amadeu depois do meio-dia de domingo, 10 de dezembro, a Ti Livina depois das 04h00 de segunda, 11.

Tinha falado com eles por vídeo-chamada na sexta-feira anterior e estavam tão bem. O pai recuperava de uma infecção no hospital de Penafiel e falou da alta iminente. Entretanto, A mãe foi levada para o São João, no Porto, no dia 9, para exames depois de uma queda em casa.

O coração do pai, depois de 89 anos de trabalhos e canseiras, entrou em falência. Conforme ele piorava em Penafiel a mãe — que não acusou nenhuma lesão da queda — começou a piorar de uma pneumonia que contraiu durante o breve internamento hospitalar. Parecia que, apesar da distância entre Penafiel e o Porto, os dois comunicavam entre si. Depois de 66 anos de casados nem a morte os separou. A mãe acabou transferida para Penafiel pouco antes de falecer.

Durante o velório e nos dias que se seguiram, muitas pessoas falaram da beleza deste amor, do lado romântico do seu finamento. Os meus amigos gujis, com quem partilho o diário viver no sul da Etiópia, também disseram o mesmo: casal enterrados juntos na mesma sepultura é sinal de um amor enorme.

A missa de corpo presente, presidida pelo senhor bispo de Lamego, o meu amigo D. António Couto, e animada pelo coro de cerca de três dezenas de padres do clero de Lamego e Guarda e do Instituto Comboniano a que pertenço, foi uma sentida homenagem aos pais por uma igreja a abarrotar de familiares e amigos.

Todavia, ficar órfão de pai e mãe em menos de 24 horas é uma experiência avassaladora. Quando soube que o pai faleceu através da chamada dominical costumeira fui chorar para trás da igreja da missão.

Soube da morte da mãe por volta das 16h00 quando cheguei a Adis-Abeba, a Nova-Flor que é a capital etíope.

A notícia tinha chegado muito antes, mas tinha os óculos de ler no saco de viagem e só abri o telemóvel depois de oito horas para cobrir os cerca de 450 quilómetros que separam Qillenso — onde vivo — da capital. Os meus olhos transformaram-se na nascente de um rio de dor.

Veio ainda a incerteza de que talvez não conseguisse participar nos funerais devido a problemas burocráticos com a renovação do meu cartão de estrangeiro residente na Etiópia.

Porém, graças ao empenho do meu provincial e de outras pessoas para conseguir autorização para deixar o país e ao adiamento dos funerais por um dia, consegui estar presente no último adeus aos pais e receber os pêsames de tanta gente — conhecidos e desconhecidos, dois ingredientes fundamentais para iniciar o meu luto com a minha família.

As semanas seguintes foram dedicadas à burocracia para deixar tudo em ordem antes do regresso à Etiópia. A Drª Liliana Ferreira, a quem reconhecidamente agradeço, foi fundamental neste processo.

Como família dorida, respeitamos a memória dos nossos pais, avós e bisavós celebrando o Natal juntos na casa deles e dando as prendas que tinham combinado com a minha irmã Armanda.

Regressei à Etiópia menos de um mês depois como turista e… com mais meia dúzia de quilos. A mana e os vizinhos trataram-me bem de mais! A anca, essa queixa-se.

De volta a Qillenso, foi a vez de ritualizar o luto à moda dos gujis. No primeiro domingo, à tarde, fi-lo com os católicos de Qillenso. Reunimo-nos em grande número no salão paroquial. 

Abraçaram-me e disseram-me palavras de alento. Depois pediram que lhes contasse a morte dos pais e os funerais. No fim, partilhamos um pão de trigo redondo com cerca de um metro de diâmetro com refrigerantes, café e leite.

Nas semanas seguintes vieram delegações das capela de Hindhale, Urdata e Badeye. O ritual e as narrativas repetiram-se.

As sobras do pão, dos refrigerantes e do leite ficavam connosco.

A vida continua!

Gosto muito de ler, mas durante o primeiro mês não tinha disposição para virar uma página que fosse nem de escrever nada. Dois meses depois, começo a normalizar a minha rotina.

Agora não falo nem brinco com os pais através da vídeo-chamada dominical, mas nas asas da oração de intercessão pela família alargada, pela paz na Etiópia e no Sudão do Sul. Creio na comunhão dos santos.

Além da foto deles que sempre me acompanha nas andanças de andarilho do Evangelho, uso uma volta de ouro que a mãe fez com o seu cordão de solteira, dividido em três para a Celeste, para a Armanda e para mim; e a aliança das bodas de ouro do pai. 

Trago-os sobretudo no meu código genético e na memória. Sei que estão em paz, que estão bem, que estão com Deus!

A morte súbita dos pais, poupou-os a outros sofrimentos. Agradeço a Deus por isso. E pelo testemunho de que nem a morte separou quem Deus uniu — como escrevemos na lápide da campa.

Deixo também uma palavra de agradecimento sentido a todas as pessoas que suavizaram a nossa dor com gestos tão carinhosos e próximos nos funerais e no tempo que passei em Portugal.

Agradeço ao senhor Dom António Couto, que presidiu às exéquias; ao pároco de Cinfães, P. Francisco Marques, que foi incansável no acompanhamento dos pais em vida e nos preparativos para os funerais; ao provincial dos Combonianos, P. Fernando Domingues, que me foi buscar ao aeroporto e também esteve presente na missa de sétimo dia; aos membros da família comboniana (seculares, leigos, irmãs, irmãos e padres); às generosas gentes de Cinfães tão próximas e solidárias também nas ofertas que me entregaram para a missão; aos familiares do lado do pai e da mãe; aos amigos de perto e de longe; a todos os que estiveram connosco em tão dorido momento e nos fortaleceram…

Os gujis dizem Bayee galaatooma! Muito obrigado!

5 de dezembro de 2023

TODOS OS NOMES



Não, esta crónica não é sobre o romance de José Saramago que mais me custou a ler. É sobre os muitos nomes que ganhei com a minha estada na Etiópia.

Abba Yooseefi. Abba significa pai e por extensão padre, embora na nova tradução do Pai-nosso em vez de Abba rezemos Abbo. Yooseefi é a forma guji de José. O nome vem do hebraico Yowceph (com a tradução grega de Iosef) e significa «Ele [Deus] acrescenta» ou «Deus multiplica». E Deus não pára de acrescentar na minha vida a sua ternura, misericórdia e graça. Herdei o nome do meu padrinho José, o marido da falecida tia Arnalda, a irmã mais nova do meu pai e minha madrinha. Era assim naquele tempo. Os gujis nomeiam os filhos de acordo com as circunstâncias da sua gestação e nascimento. A nossa cozinheira chama-se Guyyate porque nasceu à uma da tarde quando a manhã (bari) passa a ser dia (guyya). A irmã mais pequena chama-se Bontu, porque nasceu gordinha.

Abba Joe. Este é o nome porque sou conhecido em inglês. Joe é a forma abreviada de Joseph, o nosso Zé.

Farenji/Farenjicha. Farenji significa estrangeiro em amárico. Farenjicha é a versão guji. Uma das suas raízes possíveis é French (francês). Os galeses construíram a via férrea que liga Adis-Abeba ao Jibuti através de Dire Dawa há mais de cem anos. Farenji é o antónimo de habesha, o termo pelo que os etíopes se designam a si próprios e marca de uma boa cerveja. Tecnicamente, habesha é o nome dos povos etíopes de origem semita, que vêm do cruzar de povos locais com migrantes da Península Arábica: amaras, tigrinos e guragues… Abissínia, a terra dos habesha era o nome da Etiópia até ao século XIX antes de o país conquistar os povos do sul. A palavra também entrou na língua portuguesa: abexim é sinónimo de etíope. Já etíope vem do grego e significa rosto(s) queimado(s), palavra que designa na Bíblia os habitantes a sul do Egito (Sudão, Etiópia). A famosa rainha de Sabá tanto poderia ser etíope como sudanesa, do reino de Meroé onde as rainhas eram chamadas Kandake.

China. Esta é a nova maneira de os miúdos — e os graúdos em menor escala — chamarem os estrangeiros brancos. Ouvi-a pela primeira vez em Adis-Abeba na tarde em que cheguei ao país há dois anos. Quando me chamam «China» eu respondo «China, não. Portugal!» (ou Burtukan que é a forma etíope de dizer Portugal e significa laranja). Os chineses têm uma presença muito notada no país através da construção de infra-estruturas (auto-estradas, estradas, vias férreas — renovaram e electrificaram a linha do Jibuti e montaram um metro de superfície na capital, fábricas, linhas de alta tensão, etc.). Uma presença em quase toda a África. Os chineses são os novos senhores do continente negro mais interessados nas matérias primas (petróleo e outros minerais, madeira, etc.) em troca de empréstimos ou de construção de infra-estruturas. Quando os estados não pagam as dívidas tomam conta e gerem em proveito próprio as infra-estruturas locais (portos, aeroportos, auto-estradas, etc.) dadas como garantia para os empréstimos.

Petros. Este é o nome que me chamam na zona de Anfarara, uma aldeia que está a uns 25 quilómetros de Qillenso a caminho de Adola. O comboniano mexicano P. Pedro Pablo Hernández — conhecido em guji como Abba Petrosi — abriu em Anfarara um catecumenato durante algum tempo. Ser branco é ser Petros!

Lio. Na picada através da floresta para a missão de Soddu Abala — filha da missão de Qillenso onde vivo — a pequenada grita «Lio, Lio» quando vê o veículo passar. O P. Leonardo d’Alessandro, um sacerdote da diocese de Bari que trabalha como missionário na Etiópia há trinta anos, foi pároco de Soddu Abala durante muito tempo. É conhecido como Abba Leo.

Beka. Junto do bairro onde as Missionárias da Caridade vivem e têm e o centro de acolhimento para doentes terminais e bebés rejeitados, nos arredores de Adola, a pequenada quando vê o todo-o-terreno que conduzo desata a gritar «Beka, Beka». É o nome do condutor das missionárias que têm um veículo igual.

You you. Tu, tu em inglês. Há 30 anos, quando cheguei à Etiópia pela primeira vez, ao verem um estrangeiro os miúdos entoavam a lengalenga: «You, you, you! Money, money, money!», «Tu, tu, tu! Dinheiro, dinheiro, dinheiro!». Agora ficam-se pelo «You, you!» quando querem chamar a minha atenção.

Oito nomes para a mesma pessoa! Sou rico de nada!

24 de novembro de 2023

NOVO DIÁCONO COMBONIANO ETÍOPE









Melaku Wolde Tekle fez a profissão perpétua no Instituto dos Missionários Combonianos e foi ordenado diácono em vista ao presbiterado missionário.

Melaku — Anjo, em amárico, uma das muitas dezenas de línguas faladas na Etiópia — nasceu há 30 anos em Tanaka, eparquia de Emdibir.

Depois de concluir o postulantado em Adis-Abeba em 2015, foi para o noviciado em Lusaka, Zâmbia. Fez a primeira profissão como missionário comboniano em 2017 e completou o curso de teologia em Casavatore, Itália, em 2022.

Em 2023 regressou à Etiópia para o serviço missionário, um período de pastoral de dois anos antes da ordenação, integrando a comunidade comboniana de Gublak, entre o povo Gumuz.

A consagração perpétua para a missão no Instituto Comboniano teve lugar na tarde de 16 de novembro de 2023 no Postulantado de São Daniel Comboni em Asko, um bairro de Adis-Abeba, a capital etíope.

O comboniano ganês P. Joseph Anane, superior do postulantado, nas boas-vindas apresentou a celebração como um acontecimento grandioso que motiva os sete postulantes no processo pessoal de discernimento vocacional.

A celebração solene, presidida pelo superior provincial P. Asfaha Yohannes, contou com a presença de familiares e amigos do professante, uma dúzia de padres (dez combonianos e dois de Emdibir) e algumas Missionárias Combonianas.

Durante a homilia, o P. Asfaha recordou que Melaku iniciou a sua formação de base naquela comunidade há uma dezena de anos e agora encerra-a no mesmo local através da profissão de perpétua castidade, pobreza e obediência no Instituto Comboniano.

O Superior Provincial convidou Melaku a seguir as pegadas de São Daniel Comboni, abandonando-se à Providência Divina.

Depois das fotos da praxe, a celebração concluiu com o jantar festivo para todos os participantes.

Três dias depois, Melaku foi ordenado diácono em Bahirdar, a sede da eparquia onde serve como missionário e capital do estado regional amara.

A ordenação diaconal teve lugar no domingo, 19 de novembro, na igreja paroquial de Genete-Selam Kidanemihret.

Dom Lesanuchristos Metheos, eparca de Bahirdar-Dessie, presidiu à eucaristia da ordenação, que foi celebrada no Rito Católico Etíope.

Eparquia é o nome dado a uma diocese do Rito Católico Oriental e o seu bispo é eparca.

A Igreja Católica Etíope tem quatro eparquias (do rito oriental etíope) e oito vicariatos apostólicos e uma prefeitura apostólica (do rito latino).

Uma assembleia diversificada, formada por paroquianos, freiras, padres do clero local, jesuítas, vicentinos e combonianos, participou na eucaristia da ordenação.

Durante a homilia, Dom Lesanuchristos disse que a estimada posição de serviço do diácono traz uma responsabilidade imensa, pedindo-lhe para ser um farol do amor de Cristo, de compaixão e serviço aos irmãos e irmãs da comunidade cristã.

O novo diácono continua o seu estágio em Gublak, uma das duas missões confiadas aos combonianos na Eparquia de Bahirdar-Dessie.

A ordenação estava agendada para o fim de outubro na missão de Gublak, durante a festa dos seus padroeiros, os Beatos Mártires de Paimol (Uganda), Daudi Okelo e Gildo Irwa. Contudo, a insegurança causada pelos combates desde abril passado entre a milícia amara e o exército levou ao seu adiamento para Bahirdar.