4 de março de 2024

GUJIS: PASSAGEM DO PODER



 





O povo guji – mais de dois milhões de pessoas que vivem no sul da Etiópia e pertencem à grande etnia oromo – tem um sistema de governo muito democrático a que chama de Gada

A sociedade masculina está estratificada numa dúzia de graus correspondentes a faixas etárias de oito anos cada, agrupadas em quatro classes, representando as quatro fases da Lua. 

Cada homem guji nasce num determinado grau gada e a sua atribuição tem também a ver com a idade do pai: o filho tem de estar sempre quatro graus atrás do progenitor.

Cada oito anos os homens nascidos num determinado grau passam para o grau seguinte. Os gujis chamam marsá balli (transmissão ou passagem do poder) a este evento. 

Para a passagem do poder, o povo guji reúne-se numa grande assembleia chamada Gumi em Arda Jila – uma colina sagrada junto à cidade de Me’e Bokko, a meia dúzia de quilómetros da missão de Qillenso. 

Celebraram a sua cultura e elegem os abba Gada – literalmente os pais da ordem: os líderes dos três subgrupos gujis: Uraga (com quem vivi seis anos), Matti (onde me encontro) e Hokku (os gujis das terras baixas).

Este ano foi o ano da passagem do poder. Milhares de Gujis, homens e mulheres, reuniram-se em Arda Jila para proclamar os seus credos e a sua cultura, ratificar e atualizar as leis costumárias que regem a tribo (desde a fixação de dotes até às compensações por ferimentos ou morte) e para eleger os três Abba Gada e as respetivas equipas de assessores.

A grande assembleia começou a 14 de fevereiro e terminou uma semana depois. A pacata colina de Arda Jila – normalmente pasto de gado e refúgio de babuínos – e arredores, transformaram-se no epicentro do território guji.

Nos dias anteriores, palhotas provisórias foram erguidas para acolher os dignitários da tribo e para realizar algumas das cerimónias referentes à eleição. O espaço à volta de uma me’e, árvore sagrada para os gujis, foi limpo para acolher outros ritos.

Alguns comerciantes construíram barraquinhas para vender comida e bebidas à multidão que veio das três partidas gujis para celebrar a festa Gada, testemunhar a passagem de poder e mostrar que apesar dos ventos da modernidade, devido à escolarização e às redes sociais, a cultura guji continua viva e recomenda-se.

O ambiente durante a semana foi de festa. O branco era a cor dominante das vestes – decorado na maioria com barras azuis para eles e negras para elas. As mulheres traziam as suas cabaças de leite cobertas de missangas e decorações vistosas. Enquanto uma parte da multidão seguia os diversos ritos, sentada na erva seca da colina, outros passeavam a beleza e as vestes pela estrada de alcatrão que ladeia a colina sagrada.

Fui lá nos últimos dois dias para viver o clima de romaria que havia tomado conta da pacata colina e tirar algumas fotos. Vi a alegria e a vaidade de ser guji. E como era dos poucos estrangeiros presentes na assembleia, tive de aceitar fazer dezenas de selfies com quem me pedia, um verdadeiro momento Marcelo Rebelo de Sousa!

A escolha do Abba Gada dos Matti foi controversa. A eleição recaiu sobre um jovem que teve de ser casado à pressa na tarde anterior para poder receber o título e as insígnias de Abba Gada

As pessoas referiam-se-lhe como muchá, o moço. O dono do cavalo em que os Abba Gada eleitos se passeiam por entre a multidão, não lho queria emprestar. Houve alguma confusão, as tropas do estado regional da Oromia repuseram a calma, e o Abba Gada Matti pôde receber a sua (pequena) aclamação.

Abba Gada é o líder supremo de cada um dos três ramos gujis e leva como distintivo um falo de metal (kalacha) amarrado à testa – símbolo de fertilidade – e uma pena de avestruz. Tem poder para abençoar e amaldiçoar e para governar o seu subgrupo. A primazia entre os três Abba Gada cabe ao líder dos Uragas. 

Abba Gada não está sozinho no governo; é assistido por cinco conselheiros também eleitos e por um número de anciãos que já passaram pelo grau gada e são os depositários da memória guji.

Uma vez eleitos e aclamados, os três novos Abba Gada abençoaram a multidão e iniciaram uma peregrinação pelos locais sagrados das respetivas regiões. 

Daí a oito anos vão passar o poder ao escalão que os precede. 

Este ano realizou-se oficialmente a septuagésima quinta transição de poder. Assim sendo, o sistema gada dos gujis tem pelo menos 600 anos. Contudo, durante a conquista e integração do território guji na Etiópia, no século XIX, o imperador suspendeu por alguns anos a Jila Gada, a festa gada, e a passagem do poder.

Sem comentários: