15 de julho de 2014

SINAIS DE DEUS


No dia 29 de Maio de 2014 o campo de desalojados de Bileil foi testemunha de um horrendo e maléfico assalto a algumas das organizações e instituições humanitárias e de solidariedade. O ataque foi perpetrado por uma multidão enraivecida e furiosa que, desde há mais de uma década, tenta sobreviver nesse acampamento do Sul do Darfur.

O ataque ocorreu em pleno dia à vista de muitíssimas pessoas aparentemente indiferentes mas que, na verdade, apoiaram a operação que, astutamente planeada e dirigida, não foi segredo para ninguém, pois todos sabem quem foram os autores e os responsáveis destas e outras operações diabólicas semelhantes. Eles são os notoriamente e demasiado conhecidos janjauides que, por sua vez, integram as milícias do Governo desde o início do conflito armado no Darfur, em 2003. Geralmente, eles atacam o povo e/ou organizações humanitárias indistintamente; desta vez, porém, usaram a multidão contra as instituições humanitárias e de solidariedade numa cilada em que os mesmos cidadãos são, no fim de contas, as vítimas dos seus próprios atos. 

Há quase três anos que não frequento a zona de Bileil, a uns 18 quilómetros do centro da cidade de Nyala por  opção pessoal e por indicação do bispo da diocese de El Obeid. A razão é que, como estrangeiro branco, não é conveniente arriscar nem expor-me sem necessidade às autoridades sudanesas que normalmente procuram um pretexto para interromper a minha permanência na região. Deste modo, levariam a cabo o seu conhecido plano de impedir a continuidade da missão da igreja no país.

Por enquanto, não tem havido problemas de maior, pois o meu colega de missão, o padre etíope Asfaha, tem-me substituído excelentemente nesta tarefa. Ele também não deixa de ser estrangeiro no Sudão. Todavia, é naturalmente protegido graças à sua tez escura que lhe permite confundir-se natural e perfeitamente com a cor da pele da maioria dos nativos sudaneses. Este simples estratagema vai de acordo com as instruções de Jesus quando enviou os Apóstolos em missão: «...sede simples como as pombas e astutos como as serpentes.»

De todos os modos, não é dito que o futuro da evangelização neste país seja sempre claro e nítido. Devemos estar preparados para o menos desejável, mesmo para a interrupção da nossa presença como missionários no Sudão. Mas, no fim de contas, Deus é e será sempre o Senhor da messe e da evangelização. Assim, no caso hipotético da expulsão dos missionários por parte das autoridades do país – não o digo sem tristeza e mágoa – só teríamos que sacudir o pó dos nossos pés e avançar para outro lugar onde as pessoas aceitem a palavra de Jesus, como se lê no evangelho: «ide por todo o mundo e proclamai a Boa Nova...»

Mas voltemos ao incidente de Bileil. Dois dias depois do múltiplo assalto no campo de desalojados aí situado, o P. Asfaha visitou a escola Comboni que a igreja dirige no acampamento. Aí teve a oportunidade de ouvir directamente do director da escola, o Sr. Daúd, a triste e horrenda história a que me referi acima. A multidão de atacantes tinha completamente destruído as três instituições/organizações humanitárias com o conjunto das suas clínicas, armazéns de distribuição de alimentos e educação social a vários níveis. As suas construções foram literalmente arrasadas e os seus locais acabaram por ficar reduzidos a puro chão deserto. Os assaltantes não deixaram restos nem escombros. Até as folhas de zinco dos tetos e os tijolos das paredes levaram.

No meio de tanta malvadez há, no entanto, um lado bom e consolador que nos faz reflectir e dar graças a Deus: o facto de a escola básica Comboni de Bileil ter sido poupada à crueldade e agressão da populaça. A verdade é que, embora a multidão enraivecida se tivesse encaminhado decidida e apressadamente para a escola, as suas intenções diabólicas não foram executadas, porque muitas e muitas pessoas de boa vontade, na quase totalidade os pais dos alunos, acorreram com lanças, varapaus e outros instrumentos, inclusive algumas armas de fogo, para proteger aquela que era a escola dos seus filhos. O resultado positivo desta iniciativa veio à luz mas só depois da violenta confrontação com a grande e enfurecida massa humana com quem tiveram de medir forças à entrada do estabelecimento de ensino. É de louvar, no entanto, o não terem usado as armas de fogo.

A defesa da escola Comboni de Bileil por parte dos pais dos estudantes foi um exemplo que nos tocou a ponto de sentirmos dentro de nós o orgulho «santo» por não termos sido trabalhadores inúteis na vinha do Senhor.

Vale a pena semear. Para nós missionários que trabalhamos para a eternidade sem pretensões nem pressa em colher os frutos – no dizer de S. Daniel Comboni – é consolador recordar este evento. São flores a desabrochar no deserto do Darfur que vamos colhendo como sinais de Deus que se vai manifestando ao longo do caminho da missão.

Feliz da Costa Martins - Missionário Comboniano
Nyala, Darfur
Sudão

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