Comunidades ortodoxas, muçulmanas e católicas vivem tempos difíceis devido a conflitos e reformas administrativas na Etiópia.
Não têm sido fáceis os últimos tempos na Etiópia. O país mais antigo de África tem vivido uma espiral de conflitos com raízes em tensões etnocêntricas, derivadas da sua federalização depois de 1991. Estas tensões afectam as diferentes comunidades de fé.
Igreja Ortodoxa entre cismas
A Igreja Ortodoxa Etíope, uma Igreja com quase 1700 anos e que conta com cerca de 46 milhões de fiéis – 40 por cento dos 115 milhões de etíopes –, está ameaçada por cisões desde Maio de 2021, altura em que os cinco arcebispos do Tigré anunciaram o corte de relações com a Igreja-mãe – o Santo Sínodo Ortodoxo Etíope – criando a Igreja Ortodoxa Tigrínia.
A cisão vem da guerra que opôs o Estado Regional Tigrinío ao Governo Federal entre Novembro de 2020 e Novembro de 2022, e que extravasou aos Estados vizinhos de Amara e Afar. O conflito envolveu tropas federais, milícias locais e soldados eritreus e deixou um rasto enorme de deslocamentos, destruição e morte.
Os arcebispos tigrínios denunciaram o silêncio da Igreja Ortodoxa perante a chacina de milhares de civis, incluindo a mortandade na cidade santa de Axum por tropas eritreias no início dos confrontos, a morte de um grande número de padres e monges e o saque e destruição de mosteiros e igrejas. No início, o patriarca ortodoxo, Abune Matias I, ele próprio tigrinío, denunciou o genocídio contra o seu povo. Depois remeteu-se ao silêncio.
Os prelados tigrínios acusam a hierarquia ortodoxa de ter apoiado o Governo Federal durante a guerra e de contribuir para o financiamento do conflito por meio das colectas levadas a cabo pelas autoridades locais.
Em Fevereiro deste ano, o Santo Sínodo – o governo central da Igreja Ortodoxa – escreveu individualmente aos arcebispos tigrínios a propor um diálogo para a reconciliação e normalização de relações com a Igreja-mãe. A missiva caiu mal, porque não foi endereçada ao Conselho dos Bispos da Igreja Ortodoxa do Tigré, que rejeitou a proposta. «Não podemos viver com aqueles que nos chacinaram», sublinharam.
Com o cisma tigrino por sanar, o Santo Sínodo Etíope foi confrontado por outra rebelião, desta feita no Estado Regional da Oromia. Razões? Línguas, centralismo, finanças e corrupção.
Três arcebispos de etnia oromo decidiram criar o Santo Sínodo de Oromia e das Nações e Nacionalidades, acusando a hierarquia ortodoxa de favorecer os padres de etnia amara nas suas promoções e de travar a celebração da liturgia em oromo em vez do guêes – uma língua morta muito antiga – e do amárico, arrastando milhões de fiéis para as denominações protestantes. Havia ainda a questão financeira com a gestão das ofertas dos fiéis centralizada em Adis-Abeba.
No dia 22 de Janeiro, os três arcebispos ordenaram 26 bispos, 17 para o Estado Regional da Oromia e nove para outras regiões. Quatro dias depois, o Santo Sínodo excomungou os três arcebispos mais 25 dos novos bispos. Um tinha voltado para a Igreja-mãe depois de pedir perdão. Os arcebispos rebeldes retaliaram, excomungando uma dúzia de arcebispos ortodoxos. No dia 22 de Julho, seis dos dez novos bispos nomeados pelo Sínodo do Tigré foram sagrados à revelia da Igreja Ortodoxa Etíope, que marcou uma reunião de emergência para o início de Agosto para analisar os últimos desenvolvimentos.
A cisão oromo gerou alguma insegurança e o Governo pôs as forças da ordem em alerta e restringiu o acesso à Internet, sobretudo às redes sociais mais populares (a meados de Julho a situação foi normalizada). No dia 4 de Fevereiro, pelo menos oito pessoas foram mortas em Shashamane, uma cidade do Sul da Etiópia, quando um dos novos bispos tentou entrar na sua catedral. Um grupo de fiéis ortodoxos opôs-se e as forças da ordem atacaram os manifestantes.
Entretanto, numa intervenção televisiva, o primeiro-ministro, Abiy Ahmed, instou os ministros a não se envolverem na questão da Igreja Ortodoxa, o que foi entendido como um apoio aos dissidentes. O chefe do Governo é oromo e pertence a uma Igreja pentecostal apesar de ter nome árabe. Algumas vozes acusaram Abiy de querer destruir a Igreja Ortodoxa Etíope. O Santo Sínodo proclamou um jejum de três dias e marcou uma manifestação nacional para 12 de Fevereiro em memória dos mártires que perderam a vida durante os confrontos com as forças da ordem. O Governo proibiu-a.
O primeiro-ministro sentou-se à mesa com representantes da Igreja Ortodoxa Etíope e da Oromia a 15 de Fevereiro e a crise foi sanada. Os três arcebispos excomungados foram readmitidos nas suas funções, os novos bispos voltaram ao estado presbiteral e o Santo Sínodo comprometeu-se a desenvolver (e financiar) a liturgia e a catequese nas línguas locais e a abrir seminários para formar clérigos não amaras e a ordenar alguns monges para servirem as dioceses oromos como bispos.
Em Maio, o canal de televisão por cabo da Igreja Ortodoxa foi suspenso durante alguns dias pela Autoridade da Comunicação Social, que acusou a estação de transmitir conteúdos passíveis de provocar conflitos. Em questão esteve um comunicado da comissão nomeada pelo Santo Sínodo para seguir a nomeação de novos bispos de etnia oromo. A comissão ameaçou não ficar em silêncio perante um grupo de bispos «a seguirem agendas mundanas dentro da Santa Igreja». O comunicado coincidiu com a abertura da convenção anual dos padres ortodoxos em Adis-Abeba, a capital do país. O canal, entretanto, voltou às emissões regulares com liturgias, entrevistas, ensinamentos e cânticos ortodoxos.
Muçulmanos protestam
Os muçulmanos representam o segundo maior grupo religioso etíope com mais de 36 milhões, 31 por cento da população, e chegaram à Etiópia ainda Maomé era vivo.
O Estado regional de Oromia redesenhou, em Março passado, algumas zonas administrativas e criou cidades, incluindo Shaggar, nos subúrbios de Adis-Abeba. Os autarcas da nova cidade decidiram demolir milhares de construções ilegais, incluindo 19 mesquitas e outros templos religiosos.
O Conselho Supremo dos Assuntos Islâmicos do Estado Regional da Oromia denunciou a demolição «ilegal» das mesquitas e fiéis muçulmanos manifestaram-se contra as demolições no final das orações de sexta-feira na Grande Mesquita de Anwar, situada em pleno mercado de Adis-Abeba a 26 de Maio e a 2 de Junho. Pelo menos cinco pessoas foram mortas nos confrontos com as forças da ordem e mais de uma centena ficaram feridas, incluindo seis dezenas de polícias. A Comissão Etíope dos Direitos Humanos anunciou que umas 140 pessoas foram detidas na sequência dos protestos. A Grande Mesquita foi encerrada durante algum tempo.
No início de Junho, o presidente do Estado regional da Oromia reuniu-se com o líder do Conselho Supremo dos Assuntos Islâmicos Etíopes, sublinhando que as autoridades de Shaggar não estavam a visar a comunidade muçulmana. Outras construções religiosas ilegais também foram demolidas. Perante as dificuldades que os muçulmanos apontaram em adquirir terrenos e autorizações para a construção de novas mesquitas, os edis prometeram ter o novo plano director para Shaggar pronto em Julho. O mapa incluirá áreas destinadas a templos religiosos, incluindo uma grande mesquita.
As cruzes da Igreja Católica
O conflito no Tigré também afectou a hierarquia da Igreja Católica no país, que conta com pouco menos de um milhão de fiéis. D. Tesfasellasie Medhin, bispo de Adigrat, a diocese católica do Tigré, assumiu a defesa intrépida do seu rebanho e denunciou o conflito como «genocídio devastador com actos horrorosos de crimes brutais».
Dom Tesfasellasie pediu, em Novembro de 2021, à hierarquia católica etíope que rompesse o silêncio perante as atrocidades cometidas no Tigré, uma acusação implícita da falta de solidariedade dos irmãos bispos. A resposta chegou em Março do ano seguinte com uma mensagem onde os bispos pediram a paz para o país: «A Conferência dos Bispos Católicos da Etiópia renova o seu apelo a todas as partes envolvidas no conflito no país para baixar as armas e começar um diálogo genuíno para o interesse do povo.»
Entretanto, a rebelião armada do OLA (Exército de Libertação Oromo, na sigla em inglês) contra o Governo Federal também tem afectado a Igreja Católica na Oromia, sobretudo no Oeste e no Sul.
Em Março, visitei Dom Abraham Desta, bispo de Meki, uma diocese no Estado Regional da Oromia a 150 quilómetros a sul de Adis-Abeba. O bispo esteve exilado durante mais de um ano na Europa onde se encontrava a tratar da saúde quando o conflito no Tigré estalou. Dom Abraham pertence ao clero da diocese de Adigrat e era conotado com os dirigentes tigrínios que lideraram o país de 1991 até 2018. Disse-me que o vicariato tinha limitado o trabalho pastoral à catedral devido à insegurança provocada pelos rebeldes do OLA.
Os rebeldes oramos estão activos sobretudo nas zonas guji e arsi, no Sul, e no Wollega, no Oeste. Há quase dois anos que a insegurança impede a visita a três das comunidades da missão onde sirvo.
O OLA recorre ao rapto, incluindo membros da Igreja Católica, para se autofinanciar. Em Fevereiro passado, uma freira indiana das Irmãs de Betânia foi raptada na sua comunidade perto da cidade de Nekemte, no Wollega, durante a noite e, no início de Junho, um padre da diocese de Meki foi capturado no mercado local onde fazia as compras. Ambas as vítimas foram libertadas mediante o pagamento de um resgate de perto de dez mil euros cada.
No final de Abril, o Governo Federal iniciou o diálogo com o OLA na ilha tanzaniana de Zanzibar. Espera-se que as conversações à porta fechada, mediadas pelo Quénia e a Noruega, respondam ao descontentamento dos Oromos e tragam paz e reconciliação para o Estado regional e para o país.
Sem comentários:
Enviar um comentário