24 de janeiro de 2007

Abrir aspas

PRESSÕES

Num momento em que o problema do esgotar de recursos - o ar, a água, a energia - se coloca com premência, há em Portugal um ministro que espelha a atitude da classe dominante, em que é manifesta a submissão aos interesses económicos.

1. O ministro do Ambiente fez, em entrevista ao PÚBLICO, na segunda-feira, uma declaração extraordinária. Disse Nunes Correia, a propósito do estado do ordenamento do território e da preservação do meio ambiente em Portugal e da atitude do Governo face a esta questão: «Só se deixa pressionar quem quer. Refuto totalmente que o Ministério do Ambiente esteja a ser pressionado. Eu poria a questão ao contrário. Eu penso que é o Ministério do Ambiente que está a exercer uma grande pressão sobre a economia e sobre os promotores para integrar preocupações ambientais em seus projectos. E em muitos casos, têm sido impostas alterações significativas aos projectos para que eles possam ser aprovados.»
É bom, é reconfortante mesmo, saber que Nunes Correia resiste a pressões. Já é mais preocupante o facto de ele dizer que não há pressões sobre o seu ministério. Será talvez o único que não as tem. Mas a resposta de Nunes Correia, dada no âmbito de um trabalho sobre as excepções que já foram abertas pelo poder político na preservação do meio ambiente, e a argumentação sobre a impossibilidade de não ceder aos interesses económicos, considerando que esses interesses são sinónimo de desenvolvimento, é sintomática de uma preocupante visão do mundo e da sociedade.
Um ministro que apresenta como glória o facto de o Ministério do Ambiente fazer pressão sobre os interesses económicos, ou seja, impor alguns limites à selvajaria da exploração ilimitada de recursos, em nome da economia e do lucro, é manifestamente um ministro que não percebe - ou não quer perceber sequer - o risco que a própria sociedade capitalista actual corre. Numa altura em que qualquer criança, com noções mínimas de inglês (cuja aprendizagem é obrigatória nas escolas) e com TV cabo em casa ou com acesso à Internet, conhece os problemas graves para o planeta que se colocam ao nível do meio ambiente e da sobrevivência do mundo tal como o conhecemos, num momento em que o problema do esgotar de recursos - o ar, a água, a energia - se coloca com premência, há em Portugal um ministro que espelha a atitude da classe dominante, em que é manifesta a submissão aos interesses económicos, em vez de se preocuparem com o que devia ser o motivo central de qualquer governação: as pessoas e o seu bem-estar num mundo habitável.
Mas Nunes Correia vangloria-se de resistir a pressões e de até bloquear alguns projectos, quando, na prática, as cedências têm sido múltiplas, isto num mundo em que os que pensam na sobrevivência do sistema capitalista estão a anos-luz desta atitude. Veja-se, por exemplo, a Alemanha, que tornou o Reno num rio onde de novo se pode nadar. Ou ponha-se os olhos na reconversão da fábrica da Bayer, em Leverkusen. Mas, claro que a Alemanha é aquele país esquisito, tal como os outros países esquisitos do Centro e do Norte da Europa, que se preocupa com coisas esquisitas e menores como os direitos dos cidadãos, o bem-estar das pessoas e a preservação do ambiente. Tudo supostas modernices. Nada que interesse aos governantes portugueses, para quem afinal - e apesar dos créditos e do currículo do primeiro-ministro - o desenvolvimento é tão-só a criação de condições para a obtenção de lucros empresariais, sem que haja grande responsabilização social das empresas. Elites dominantes que parecem nem sequer ter interiorizado que, para que o actual sistema capitalista não impluda, tem de se tornar sustentável e não apenas gerar lucro à custa da destruição da natureza. Para que ela um dia não acabe. A começar pelo ar que respiramos.

2. A primazia absoluta do lucro foi visível esta semana, em Portugal, numa outra situação: a divulgação dos dados sobre o não crescimento dos salários. Os trabalhadores recebem cada vez menos do que produzem e vêem-se confrontados com o não crescimento dos seus salários, em bom rigor com a diminuição dos mesmos em comparação com a taxa de inflação: metade dos trabalhadores por conta própria perdeu poder de compra e qualidade de vida. As consequências para as pessoas das opções económico-políticas de inspiração neoliberal atingiram mais de dois milhões de portugueses, divididos em 730 mil funcionários públicos e 1,3 milhões de empregados do sector privado.
Jean Jacques Rousseau respondeu à pergunta desafiadora da Academia de Dijon em 1754 «Qual é a origem da desigualdade entre os Homens? É justificada pela Lei natural?» (24 anos antes da Revolução Francesa...) com o seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755). Nele defende que ela nem é resultante da vontade de Deus, nem da Natureza, nem consequência de nenhuma desigualdade natural dos seres humanos. Mas, sim - ó heresia das heresias -, da propriedade privada e da apropriação e exploração das riquezas da Terra.
É suficientemente conhecido que em Portugal tem aumentado a diferença entre ricos e pobres, ou seja, tem aumentado a desigualdade, processo aliás existente a nível mundial: hoje dois mil milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por dia, metade da população mundial com cerca de dois dólares. Estudos científicos sobre a distribuição da riqueza e da pobreza são raros. Nem o FMI nem o Banco Mundial os fazem. De saudar, por isso, o estudo recente do World Institute for Development Economics Research (WIDER), da Universidade da ONU, em Helsínquia, em que, pela primeira vez, se analisa detalhadamente, para mais de 94 por cento da população mundial, a distribuição dos salários e riqueza e respectivo desenvolvimento até ao ano 2000.
«Só podemos distribuir o que primeiro produzimos.» Esta frase é já um lugar-comum entre os políticos e comentadores. Mas não será outro o nível de abordagem do problema? Por que não procurar aperfeiçoar o sistema capitalista, no sentido de uma mais justa redistribuição da riqueza? Será que o futuro para Portugal só pode passar pelo empobrecimento dos que ainda têm trabalho, pela exclusão dos que o perderam e pelo enriquecimento da classe dominante?

São José Almeida em «Público»

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