25 de outubro de 2024

CORAÇÃO MISSIONÁRIO DE JESUS

 

O papa Francisco publicou no dia 24 de outubro a sua quarta carta encíclica, o documento papal mais relevante, sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus. Chamou-lhe Dilexit nosAmou-nos (em latim). O título é tirado da Carta aos Romanos (8, 37).

O documento está dividido em cinco capítulos: 1) A importância do coração; 2) Gestos e palavras de amor; 3) Este é o coração que tanto amou; 4) Amor que dá de beber; 5) Amor por amor. A encíclica abre com uma pequena introdução e tem a respetiva conclusão. 

A encíclica é formada por 220 parágrafos e 227 notas. Entre os autores citados encontra-se São Daniel Comboni (o fundador das Missionárias e Missionários Combonianos) e a Regra de Vida dos Missionários Combonianos. O património espiritual comboniano de alguma forma pertence também ao Magistério da Igreja.

«Dizia um santo missionário, que “este Coração divino, que suportou ser trespassado por uma lança inimiga para poder derramar por aquela ferida sagrada os Sacramentos, onde se formou a Igreja, jamais deixou de amar”, escreve o papa no nº 149.  

O Papa repropõe a devoção ao Coração humano e divino de Jesus – gosto do sublinhar das vertentes humana e divina – como resposta à falta de coração e de poesia no mundo de hoje. A sociedade de hoje é anti-coração porque narcisista, autorreferencial e artificial. «A poesia e o amor são necessários para salvar o humano» (nº 20), sublinha ao mesmo tempo que lança uma pergunta provocadora: «Tenho coração?» (nº 23).

 

DIMENSÃO MISSIONÁRIA DO AMOR A CRISTO

Neste apontamento debruço-me sobre a conclusão do último capítulo da encíclica onde o papa explora a dimensão missionária da devoção ao Coração de Jesus sob o subtítulo «Fazer o mundo enamorar-se» (nºs 205-216), um cabeçalho que expõe a essência da missão. O nosso amor a Cristo tem uma dimensão missionária.

Francisco começa por expor dois pensamentos de São João Paulo II sobre a devoção ao Coração de Jesus: a reparação ao Coração de Cristo «é a reparação apostólica para a salvação do mundo» e a consagração ao Coração de Cristo é «uma aproximação à ação missionária da própria Igreja» (nº 206).

O papa recorda que a obra missionária da Igreja prolonga o fogo do amor do Coração de Jesus «que leva o anúncio do amor de Deus manifestado em Cristo» (nº 207).

«À luz do Sagrado Coração, a missão torna-se uma questão de amor, e o maior risco desta missão é que se digam e façam muitas coisas, mas não se consiga promover o encontro feliz com o amor de Cristo que abraça e salva» (nº 208), alerta.

Uma missão que nasce do encontro com o amor de Jesus «requer missionários apaixonados, que se deixem cativar por Cristo e que inevitavelmente transmitam esse amor que mudou as suas vidas» (nº 209).

Francisco propõe um simplex missionário: «Falar de Cristo, pelo testemunho ou pela palavra, de tal modo que os outros não tenham de fazer um grande esforço para o amar, é o maior desejo de um missionário da alma» (nº 210).

Adverte a Igreja não faz proselitismo, mas insere as pessoas na experiência do amor de Deus com respeito pela liberdade e dignidade, sem imposições, recordando que «Cristo pede-te que não tenhas vergonha de reconhecer a tua amizade com Ele» (nº 211).

Avisando contra intimismos individualistas, o papa explica que comunicar Cristo não é uma questão entre mim e Ele, mas faz-se sempre em comunhão. «[A missão] é vivida em comunhão com a própria comunidade e com a Igreja. Se nos afastarmos da comunidade, afastamo-nos também de Jesus» (nº 212). 

E alerta: «Nunca se deve esquecer este segredo: o amor pelos irmãos e irmãs da própria comunidade – religiosa, paroquial, diocesana, etc. – é como o combustível que alimenta a nossa amizade com Jesus. Os atos de amor para com os irmãos e irmãs da comunidade podem ser a melhor ou, por vezes, a única forma possível de exprimir aos outros o amor de Jesus Cristo» (nº 212).

 Os missionários são os mensageiros do amor de Deus sobretudo para os mais pobres, desprezados e abandonados. No encontro com os outros, os missionários encontram Cristo que coopera com eles (Marcos16, 20). «Que lindo encontro!» (nº 213), exclama.

«De uma forma misteriosa, é o seu amor que se manifesta através do nosso serviço, é Ele próprio que fala ao mundo naquela linguagem que por vezes não tem palavras» (nº 214), explica o papa argentino.

Francisco retoma o tema recorrente «eu sou uma missão» – que apresentou pela primeira vez na Exortação Apostólica A alegria do Evangelho – e explica que a missão é fundamental para o amadurecimento da relação pessoal com Jesus: «Para que essa amizade amadureça, é preciso que te deixes enviar por Ele para cumprir uma missão neste mundo, com confiança, com generosidade, com liberdade, sem medo. [...] Quem não cumpre a sua missão nesta terra não pode ser feliz» (nº 215).

Logo, desafia: «Deixa-te enviar, deixa-te conduzir por Ele para onde Ele quiser. Não te esqueças que Ele vai contigo» (nº 215) ao mesmo tempo que celebra que ser missionário «é uma experiência preciosa» (nº 216).

É, sim! Uma experiência preciosa e um privilégio. 

21 de outubro de 2024

NA MESA DOS BEDUÍNOS


Quando chegamos à aldeia beduína para o encontro com as mulheres, os filhos de Om Ebrahim estavam a degolar os cabritos. 

Os seus sete filhos e as suas esposas estavam todos ocupados: uns cortavam e lavavam a carne, outros levavam-na para a cozinha e cozinhavam-na. 

Tínhamos combinado começar o primeiro curso de costura com a nova máquina depois de um ano de bordados. 

As mulheres acolheram-nos apesar de estarem à espera de visitas. 

É costume que familiares e amigos se reúnam no quadragésimo dia depois de um funeral para partilharem e comerem juntos. 

Apesar dos muitos afazeres, arranjaram tempo para nos prepararem um prato delicioso: cebolada de fígado de cabrito. Dividiram connosco o melhor!

Nos meus 34 anos como Irmã Missionária Comboniana em Itália, Estados Unidos, Egito, Sudão, Sudão do Sul, Guatemala e Terra Santa partilhei de muitas mesas, em línguas diferentes, comendo as suas comidas e escutando o que lhes dá sentido, alegria, medo e sonhos. 

Fui testemunha do poder de partilhar a mesa, de conversas que edificam e unem para além das fronteiras culturais, sociais, políticas e religiosas.

Na sua mensagem para o Dia Mundial das Missões, o Papa Francisco recorda que Deus preparou um banquete a que todos – sem exceção – estamos convidados. 

Chama-nos à inclusão, ao empoderamento dos vulneráveis e a experimentar a graça e a generosidade de Deus.

Os beduínos, vivendo nas margens, alargam as suas mesas para nos incluírem. 

Hoje, no Dia Mundial das Missões, digo «Sim» ao convite de repartir esta bela missão.

Uma vez mais, agradeço a graça imerecida de partilhar esta vocação na Terra Santa.

Seguimos decididas a assegurar que também os beduínos – palestinianos e muçulmanos – encontrem o seu lugar nas mesas da justiça, paz, fraternidade e a vida digna.

Cecília Sierra

Missionária Comboniana

a trabalhar com beduínos no Deserto da Judeia

19 de outubro de 2024

TODOS AO BANQUETE

 

Este ano, o Papa Francisco escolheu o tema «Ide e convidai todos para o banquete (cf. Mt 22, 9)» para o Dia Mundial das Missões de 2024. A citação é tirada da parábola do banquete nupcial para o filho do rei (Mateus 22, 1-14). O Papa escreve no final do primeiro parágrafo: 

Refletindo sobre esta frase-chave, no contexto da parábola e da vida de Jesus, podemos ilustrar alguns aspetos importantes da evangelização. Tais aspetos revelam-se particularmente atuais para todos nós, discípulos-missionários de Cristo, nesta fase final do percurso sinodal que, de acordo com o lema «Comunhão, participação, missão», deverá relançar na Igreja o seu empenho prioritário, isto é, o anúncio do Evangelho no mundo contemporâneo. 

Podemos entender a Igreja como assembleia para louvar o nosso Deus através de liturgias elaboradas e edificantes, cheias de cânticos e palavras – em latim ainda melhor, como querem alguns – e muito incenso. No entanto, somos, primeiramente, Igreja para anunciar o Senhor, Igreja missionária. 

O Papa Francisco é incisivo: a primeira tarefa da Igreja, «o seu empenho prioritário» – como ele escreve, é a pregação do Evangelho. A Igreja é missão. Cada batizado é uma missão. 

 

VAI E CONVIDA

Na parábola de Jesus sobre as bodas do príncipe, os convidados ignoraram o convite: têm campos para trabalhar, negócios para tratar. Alguns descarregaram a própria raiva sobre os mensageiros, espancando ou até matando alguns deles. 

Sabemos que o rei é Deus; o príncipe é Jesus; os convidados são o povo de Israel; as bodas do filho são as bodas do Cordeiro (Apocalipse 19, 9); os servos do rei são os profetas de Deus. 

A salvação de Deus é geralmente apresentada nas Escrituras judaicas como um banquete rico e abundante. Trata-se de uma imagem muito forte para um povo que apenas comia uma magra refeição por dia, normalmente antes de ir dormir. Os casamentos eram parêntesis de abundância de comida e bebida numa vida que, de outra forma, seria esfaimada.

«Ide às saídas dos caminhos e convidai para as bodas todos quantos encontrardes», ordenou o irritado rei aos seus servos. Esta é a nossa faina primeira como servidores do Evangelho, humildes trabalhadores na seara do Senhor: ir e convidar. 

O Rei convida toda a humanidade para o banquete nupcial do Cordeiro. Escreve o Papa: «Deus, grande no amor e rico de misericórdia, está sempre em saída ao encontro de cada ser humano para o chamar à felicidade do seu Reino, apesar da indiferença ou da recusa. Assim Jesus Cristo, bom pastor e enviado do Pai, andava à procura das ovelhas perdidas do povo de Israel e desejava ir mais além para alcançar também as ovelhas mais distantes (cf. Jo 10, 16)».

A Igreja está em movimento desde a manhã da ressurreição de Jesus, um acontecimento que provocou uma grande agitação e pôs tudo numa roda-viva: Maria de Magdala, as outras mulheres, Pedro e João, até os discípulos de Emaús. Todos a correr. Os seus limites geográficos: os confins da terra, os confins do universo.

Mas a Igreja sai para convidar! «Aqueles servos-mensageiros transmitiam o convite do soberano assinalando a sua urgência, mas faziam-no também com grande respeito e gentileza. De igual modo, a missão de levar o Evangelho a toda a criatura deve ter, necessariamente, o mesmo estilo d’Aquele que se anuncia», observa o Papa. 

 

PARA O BANQUETE

Como já disse, o banquete é uma imagem que serve de parábola para o acontecimento da salvação universal, o banquete escatológico de grande abundância e sem lágrimas, vergonha ou morte, preparado por Deus para todos os povos (Isaías 25, 6-8).

Jesus apresenta a sua missão como o bom e belo pastor que dá vida em abundância a todos: «Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância» (João 10, 10). Ele até iniciou o seu ministério público numa festa de casamento, o seu primeiro sinal, a rogo da mãe.

O Papa sublinha que hoje são oferecidos às pessoas dois banquetes:

1.     O do consumismo, conforto egoísta, acumulação de riqueza e individualismo;

2.     O da alegria, partilha da fraternidade na comunhão com Deus e com os outros.

Ele recorda que a Eucaristia é um sinal sacramental da plenitude da vida prometida a e para todos. «Temos esta plenitude de vida, dom de Cristo, antecipada já agora no banquete da Eucaristia, que a Igreja celebra por mandato do Senhor em memória d’Ele», escreve.

E prossegue: «Todos somos chamados a viver mais intensamente cada Eucaristia em todas as suas dimensões, particularmente a escatológica e a missionária. Reafirmo, a este respeito, que “não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens”», citando Bento XVI.

A Eucaristia, sendo a fonte e o cume da vida cristã, é a fonte e o cume da missão da Igreja. A Eucaristia termina com o mandamento «Ide». Somos enviados para convidar todas as pessoas, todos os povos para o banquete nupcial do Cordeiro, simbolizado na Eucaristia.

 

TODOS

O Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, o ano passado, disse: «Na Igreja há lugar para todos. [...] Repitam comigo: todos! Todos! Todos! Todos! Não vos consigo ouvir. Outra vez: todos! Toda a gente! Todos! E esta é a Igreja, a mãe de todos.»

Mateus escreve que «os servos, saindo pelos caminhos, reuniram todos aqueles que encontraram, maus e bons, e a sala do banquete encheu-se (Mateus 22, 10).

O Papa sublinha este facto escrevendo que «os discípulos missionários de Cristo trazem sempre no coração a preocupação por todas as pessoas, independentemente da sua condição social e mesmo moral. A parábola do banquete diz-nos que, seguindo a recomendação do rei, os servos reuniram “todos aqueles que encontraram, maus e bons”». O desígnio salvífico de Deus não exclui ninguém.

Ele afirma: «o Evangelho de Cristo é a voz mansa e forte que chama os homens a encontrarem-se, a reconhecerem-se como irmãos e a alegrarem-se pela harmonia entre as diversidades».

Bons e maus: todos são convidados para o banquete da salvação que Deus prepara e oferece a toda a criação. Nós, missionários, não podemos fazer julgamentos morais enquanto evangelizamos. Todos são dignos de um lugar à mesa das núpcias do Cordeiro. 

No entanto, cada convidado tem de usar a veste nupcial. Tem de ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo (Filipenses 2, 5) para viver como Cristo Jesus viveu. É esta a transformação que o Evangelho realiza em nós. Chamamos-lhe conversão.

O Papa recorda que a missão é para todos e um compromisso de todos os batizados. Ninguém está desempregado na Igreja; cada batizado está em estado permanente de missão.

«A missão para todos requer o empenho de todos. Por isso é necessário continuar o caminho rumo a uma Igreja, toda ela, sinodal-missionária ao serviço do Evangelho», assinala Francisco. 

 

ESTRELA DA EVANGELIZAÇÃO

O Papa conclui a sua mensagem com um pedido: «Também hoje peçamos a sua [de Maria] intercessão materna para a missão evangelizadora dos discípulos de Cristo. Com o júbilo e a solicitude da nossa Mãe, com a força da ternura e do carinho, saiamos e levemos a todos o convite do Rei Salvador.»

A oração de Francisco apresenta a Mãe como modelo missionário: ela conjuga a alegria materna e a solicitude amorosa com a ternura e o carinho, que são a sua força e nos capacitam para ir e convidar cada pessoa e toda a criação para o banquete nupcial do Cordeiro.

Com Francisco, rezamos: «Santa Maria, Estrela da evangelização, rogai por nós!»

15 de outubro de 2024

ADEUS, HIENA



O dia acordou cheio de sol, lindo mesmo. A cozinheira deu-me os bons dias com cara de caso. «Buchi morreu!», disse, triste.

Bichi era como ela tratava o nosso rafeiro. Eu chamava-lhe Halala, Hiena em guji, por causa das suas cores quando era cachorrito.

Hiena apanhou o portão da missão aberto à noite, foi para a estrada e foi apanhado por um tuque-tuque, os táxis daqui. Fiquei triste, porque estava afeiçoado ao cachorro.

Veio para a missão de Qillenso há menos de meio ano. Tinham-nos matado o Bobi. Fui à aldeia vizinha comprar carne com a cozinheira e ela meteu-o na caixa do todo-o-terreno.

Vi-o quando chegamos a casa. Tremia como varas verdes – nunca tinha andado de carro – e estava cheio de pulgas. Guyyate pegou no spray para mosquitos e resolveu o problema.

Hiena – ou Halala – detestava a água. Quando lhe dava banho chorava como uma criança. Era difícil apanhá-lo perto de casa. Até para lhe tirar as carraças, que eram mais que muitas. Gostava de dormir num monte de palha seca.

Entretanto, cresceu e eu deixei de o lavar. Mas ganhou confiança de novo e gostava de ser acarinhado.

Comia tudo: ossos, restos de comida, bananas, abacates, milho cozido ou cru... O que lhe aparecesse à frente. «Boquinha de missionário!», comentava o meu colega.

Era pequeno de corpo, mas tinha um caminhar vaidoso, altivo, seguro de si.

O seu ladrar estridente à noite punho tudo a milhas.

Quando estava fora de Qillenso por algum tempo, fazia uma festa à minha chegada: corria à frente do carro e quando saía punha-se a grunhir de uma maneira especial à procura de miminhos.

Às vezes, quando cantávamos ele uivava. Nunca entendi se era a fazer pouco de nós ou para cartar connosco.

Durante a oração da manhã e da tarde gostava de se coçar contra os nossos pés, na sala de estar.

Durante as refeições esperava pacientemente por um bocado de pão ou outro petisco.

Cresceu com a gata e os dois filhotes. Mas ultimamente gostava de lhes dar umas corridas. E a comida era toda para ele. Tive de começar a alimentar os gatos no topo de um poço alto onde ele não chegava.

Gostava muito de brincar com as pessoas, sobretudo com os miúdos, que fugiam dele a pés juntos, porque tinham medo de ser mordidos...

É interessante como nos afeiçoamos aos animais. Fiquei muito triste quando mataram o Bibi e mais triste ainda quando o Halala foi atropelado...

Vamos ter de arranjar outro cachorrito, porque de noite os guardas vão dormir para casa e a missão fica escancarada...

MISSIONÁRIOS SEGUNDO O CORAÇÃO DE COMBONI


Os membros do XIX Capítulo Geral dos Missionários Combonianos escreveram na introdução à prioridade da Espiritualidade dos Documentos Capitulares 2022 (DC ’22): «Radicados em Cristo, unidos a São Daniel Comboni, vivemos um contacto constante com o Senhor na oração que se torna vida e missão, incentiva todo o nosso trabalho e as nossas prioridades, humaniza as nossas relações, motiva a nossa ação e a torna fecunda» (DC '22, 11).

Vivemos em Cristo, juntamente com São Daniel Comboni, e transformamos a oração na seiva vivificante que nos dá força para viver de modo fecundo a missão que somos e as nossas relações pessoais.

Os capitulares acrescentaram: «Sonhamos com uma espiritualidade que nos permita continuar a crescer como família fraterna de consagrados radicados em Jesus, na sua Palavra e no seu Coração, e contemplá-lo nos rostos dos pobres e na experiência vivida por São Daniel Comboni para ser missão» (DC '22, 12).

Este sonho deixou em mim uma marca indelével desde a primeira vez que li os documentos do capítulo. Nele se explicitam os ingredientes fundamentais que fazem a nossa vida espiritual: Jesus, a quem Charles de Foucault chamava «meu irmão e Senhor», a sua Palavra, o seu Coração, os pobres e a experiência de Comboni.

Na reflexão de hoje aprofundarei «a experiência vivida por São Daniel Comboni para ser missão» à luz da sua inspiradora homilia em Cartum, Sudão, quando regressou àquela Igreja como Provigário Apostólico.

A nossa família missionária é constituída por Missionários Combonianos, Irmãs Missionárias Combonianas, Missionárias Seculares Combonianas e Leigos Missionários Combonianos. Comboni faz parte do nosso nome, porque é o nosso pai e a nossa herança comum. Ele é o GPS do nosso ser missão; caminhamos sobre as suas pegadas.

 

HOMILIA DE CARTUM

O P. Daniel Comboni foi nomeado Provigário Apostólico para a África Central a 26 de maio de 1872. A 11 de junho, a missão da África Central foi confiada ao seu Instituto por decreto de Pio IX.

Antes, a 1 de janeiro do mesmo ano, tinha fundado o Instituto das Pias Madres da Nigrícia – as Irmãs Missionárias Combonianas – em Montorio, Verona, e no mesmo mês tinha dado início aos Annali del Buon Pastore, semente de tantas revistas e publicações combonianas nos quatro continentes que fazem dos meios de comunicação social um campo de evangelização na tradição comboniana.

A 20 de setembro de 1872, Comboni partiu de Trieste na sua sexta viagem a África. Seis dias depois estava no Cairo. A 26 de janeiro de 1873, partiu do Cairo para Cartum. A expedição inclui pela primeira vez algumas irmãs europeias. A 4 de maio, depois de 99 dias de uma longa e cansativa viagem pelo Nilo e pelo deserto, o Provigário é acolhido solenemente em Cartum. Uma semana depois, a 11 de maio, apresenta o seu projeto de missão através de uma homilia.

A prática, proferida em árabe, foi traduzida pelo P. Giovanni Battista Carcereri e publicada nos Annali del Buon Pastore.

Revisitemo-la de novo:

Estou muito contente de finalmente me encontrar de novo entre vós, depois de tantas vicissitudes penosas e de tantos ansiosos suspiros. O primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia e, deixando tudo o que me era mais querido no mundo, vim, faz agora dezasseis anos, a estas terras para oferecer o meu trabalho como alívio para as suas seculares desgraças. Depois, a obediência fez-me voltar para a Europa, dada a minha enfraquecida saúde, que os miasmas do Nilo Branco em Santa Cruz e em Gondokoro tinham incapacitado para a ação apostólica. Parti para obedecer; porém, entre vós deixei o meu coração e, tendo-me recomposto como Deus quis, os meus pensamentos e os meus atos foram sempre para convosco.

E hoje, finalmente, recupero o meu coração voltando para junto de vós para o abrir na vossa presença ao sublime e religioso sentimento da paternidade espiritual, da qual quis Deus que fosse investido, faz agora um ano, pelo supremo chefe da Igreja Católica, nosso senhor o Papa Pio IX. Sim, eu sou vosso pai e vós meus filhos e como tais pela primeira vez vos abraço e estreito contra o meu coração. Estou-vos muito reconhecido pelas entusiásticas receções que me tendes dispensado: demonstram o vosso amor de filhos e persuadem-me de que quereis ser sempre a minha alegria e o meu diadema, como sois o meu dote e a minha herança.

Tende a certeza de que a minha alma vos corresponde com um amor ilimitado para todo o tempo e para todas as pessoas. Eu volto para o meio de vós para nunca mais deixar de ser vosso e totalmente consagrado para sempre ao vosso maior bem. O dia e a noite, o Sol e a chuva encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender as vossas necessidades espirituais; o rico e o pobre, o são e o doente, o jovem e o velho, o patrão e o servo terão sempre igual acesso ao meu coração. O vosso bem será o meu e as vossas penas serão também as minhas.

Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós. Não ignoro a gravidade do peso que lanço sobre mim, já que, como pastor, mestre e médico das vossas almas, terei de velar por vós, instruir-vos e corrigir-vos; defender os oprimidos sem prejudicar os opressores, reprovar o erro sem censurar o que erra, condenar o escândalo e o pecado sem deixar de ter compaixão pelos pecadores, procurar os transviados sem encorajar o vício: numa palavra, ser ao mesmo tempo pai e juiz. Mas resigno-me a isso, na esperança de que todos vós me ajudareis a levar este peso com júbilo e com alegria em nome de Deus.

Sim, antes de tudo confio no teu trabalho, reverendo padre e meu caríssimo vigário-geral: em ti, que foste o primeiro que me ajudou nesta obra da missão para a regeneração da Nigrícia e o primeiro que arvoraste o estandarte da santa cruz no Cordofão e ensinaste àqueles povos os primeiros rudimentos da fé e da civilização. E também confio em vós, estimados sacerdotes irmãos meus e filhos neste apostolado, uma vez que sereis os meus braços na ação de dirigir pelos caminhos do Senhor o seu povo e ao mesmo tempo meus anjos conselheiros. E igualmente confio em vós, veneráveis irmãs, que com mil sacrifícios vos associastes a mim para colaborar comigo na educação da juventude feminina. E do mesmo modo confio em todos vós, senhores, porque sempre querereis confortar-me com a vossa obediência e docilidade às afetuosas insinuações que o meu dever e o vosso bem me aconselhem a fazer-vos.

Quanto a si, ilustre representante de S. M. I. R. A. o imperador Francisco José I, nobre protetor desta vasta missão, enquanto com prazer lhe agradeço quanto fez até agora por ela, apresso-me a exprimir-lhe a esperança de que quererá continuar a render gloriosamente a homenagem da espada à cruz, a defender os direitos da nossa religião divina, no caso de serem ignorados e espezinhados.

E agora é a vós a quem me dirijo, ó piedosa Rainha da Nigrícia, e, aclamando-vos como Mãe amorosa deste vicariato apostólico da África Central entregue aos meus cuidados, atrevo-me a suplicar-vos que nos recebais solenemente sob a Vossa proteção a mim e a todos os meus filhos, para que nos guardeis do mal e nos dirijais para o bem.

Ó Maria, Mãe de Deus, o grande povo dos negros dorme ainda na sua maior parte nas trevas e sombras da morte: apressai a hora da sua salvação, aplanai os obstáculos, dispersai os inimigos, preparai os corações e enviai sempre novos apóstolos a estas remotas regiões tão infelizes e necessitadas.

Meus filhos, eu confio-vos neste dia solene à piedade dos Corações de Jesus e de Maria, e, no ato de oferecer por vós o mais aceitável dos sacrifícios ao Altíssimo Deus, rogo humildemente que seja derramado sobre as vossas almas o sangue da redenção, para as regenerar, para as sarar, para as embelezar na medida da vossa necessidade, a fim de que esta santa missão seja fecunda para a vossa salvação e para a glória de Deus. E assim seja (Escritos 3156-3164).

Esta homilia foi proclamada há 151 anos. Tem 867 palavras na tradução portuguesa. É curta, mas muito motivadora. Continua a inspirar as missionárias e os missionários de Comboni. É parte integrante do nosso património missionário. Nele encontramos o código genético da nossa espiritualidade comboniana e do modo de ser missão. 

 

A MISSÃO EM TRÊS TEMAS

A partir da homilia de Comboni, gostaria de refletir convosco sobre três temas:

1.         A missão é aliança;

2.         A missão é permanente;

3.         A missão faz-se em rede.

 

1. A MISSÃO É ALIANÇA

A missão, à luz de Comboni, é uma aliança esponsal e martirial com Deus, com os seus missionários e com as pessoas com quem vive e a quem serve.

Comboni pronuncia na sua homilia afirmações muito fortes e profundas. Sublinho sete: 

-      O primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia;

-      Entre vós deixei o meu coração e, tendo-me recomposto como Deus quis, os meus pensamentos e os meus atos foram sempre para convosco;

-      Pela primeira vez vos abraço e estreito contra o meu coração;

-      Quereis ser sempre a minha alegria e o meu diadema, como sois o meu dote e a minha herança;

-      Eu volto para o meio de vós para nunca mais deixar de ser vosso e totalmente consagrado para sempre ao vosso maior bem;

-      O vosso bem será o meu e as vossas penas serão também as minhas;

-      Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós. 

Estas frases fazem-me lembrar a declaração de pertença de Rute a Noemi, sua sogra: «Onde tu fores, eu irei contigo e onde pernoitares, aí ficarei; o teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus» (Rute 1,16).

Esta é a pertença nupcial, este é o coração da aliança de Comboni com os africanos. Esta deveria ser a nossa própria aliança com as pessoas com quem vivemos e a quem servimos. O Papa Francisco escreveu na sua primeira exortação apostólica, o programa do seu papado, que «a missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo» (Evangelii gaudium, 268). Não podemos separar Jesus do seu povo. Eles são um só.

Esta aliança esponsal brota do coração: Comboni usa a palavra coração(ões) seis vezes na sua homilia. É uma aliança cordial que brota do amor: a palavra aparece três vezes no sermão. Sinto o palpitar do seu coração. Enquanto em Itália os políticos proclamavam «Roma ou morte!» a partir da segurança das suas zonas de conforto, Comboni em África dizia com a sua vida «Nigrícia ou morte!». Desafiava a morte com a sua vida. Morreu em Cartum há 143 anos. Tinha 50 anos. A sua morte é o selo do seu amor pelos africanos.

Paulo diz-nos, naquele belíssimo hino ao amor, que «ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me vale» (1 Coríntios 13,3). Uma missão sem amor é inútil!

O Cardeal José Tolentino Mendonça – poeta, místico e mestre de espiritualidade – escreveu que «não há amor se não houver excesso de amor». 

Para entrar nesta relação cordial com os GUJIS, o nosso povo, temos de dizer com a nossa vida: a tua língua é a minha língua, a tua cultura é a minha cultura, a tua noção de tempo é também a minha; os teus sonhos são os meus sonhos, as tuas alegrias são as minhas alegrias, os teus problemas são os meus problemas, as tuas esperanças são as minhas esperanças; e a minha vida é tua.

É assim que exercemos o sentido de pertença às pessoas que servimos. Podem chamar-nos farenji – estrangeiro, mas, na verdade, somos farenji guji! Quando algumas pessoas expressam surpresa por eu, de alguma forma, falar guji, digo-lhes: «Eu sou guji, mas quando nasci, lavaram-me com lixívia e a minha pele estragou-se!» E rimo-nos juntos. 

Por outro lado, cada vocação é um chamamento pessoal e único. No entanto, somos chamados a viver a nossa própria vocação numa comunhão de vocações: os nossos Institutos. Para vivermos a nossa aliança conjugal com os gujis precisamos de temperar a nossa vida com uma boa pitada de ubuntu, a filosofia de vida africana que afirma que «eu sou porque nós somos». Não somos agentes solitários de evangelização. Temos de recuperar «o prazer espiritual de ser povo», como diz o Papa Francisco. O Papa dedica um capítulo inteiro a este tema na Evangelii gaudium.

Comboni proclamou: «o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós». Esta é a dimensão martirial da missão: dar a vida pelo povo que se serve. Segundo a segundo, dia a dia, ano a ano.

A Igreja reconhece dois tipos de martírio: o vermelho e o branco. Aqueles que são mortos por ódio à fé e aqueles que sofrem uma morte lenta devido à sua constância quotidiana. 

O martírio vermelho é o mais fácil e chama mais a atenção. No entanto, somos convidados a dar a nossa vida, a viver o dia-a-dia com as pessoas que servimos no centro do nosso coração. A permitir que sejam elas a ditar a nossa agenda diária. A enfrentar com um sorriso as dificuldades quotidianas. A permanecer no lugar mesmo quando os outros fogem. Este é o martírio branco. Não é apelativo e pode ser muito doloroso. No entanto, este era o modo de Comboni ser missão na África Central.

 

2. A MISSÃO É PERMANENTE

Comboni proclamou na sua homilia: «O dia e a noite, o Sol e a chuva encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender as vossas necessidades espirituais; o rico e o pobre, o são e o doente, o jovem e o velho, o patrão e o servo terão sempre igual acesso ao meu coração».

Estamos sempre em estado de missão. A missão é permanente: «O dia e a noite». Somos missionários para todas as condições meteorológicas: «O Sol e a chuva». Somos missionários cordiais para todos: «terão sempre igual acesso ao meu coração». Os que amamos ou gostamos e aqueles que, de alguma forma, não gostamos.

A missão não é um tempo parcial nem um passatempo. É o nosso respirar, o nosso viver, o nosso morrer. O serviço missionário não é apenas uma entre as muitas coisas que fazemos. Não é mais um parêntesis na nossa agenda pessoal quotidiana. 

É uma disponibilidade constante para amar: «encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender» – diz Comboni. «Sempre!», sublinha.

É cordial: brota do coração da Santíssima Trindade e dirige-se ao coração do mundo inteiro através do nosso próprio coração. É missio Dei (como diz o decreto conciliar Ad gentes), não é a minha missão, não é a missão do meu instituto.

O Papa Francisco escreveu na sua primeira exortação apostólica: «Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar» (Evangelii gaudium 273).

A missão é ontológica: faz parte do meu ser, do meu viver, da minha identidade. Somos missionários porque amamos as pessoas com quem vivemos, sempre. Nós não fazemos missão – diriam alguns confrades: «Fare il missionario!» –, nós somos uma missão. Sempre e em todo o lado!

Somos uma missão para iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar. Que descrição de trabalho! Estes são os verbos com que conjugamos a missão, a sua gramática.

Francisco introduz a sua declaração com estas palavras: «A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser».

ad gentes não é territorial: é cordial. O coração é o território da missão. A missão torna-se um encontro de corações: o coração de Deus com o coração do seu povo através do coração missionário. Somos missionários por estarmos permanentemente e totalmente no coração das pessoas, por trazê-las sempre no nosso coração. 

«Nisto uma pessoa se revela enfermeira no espírito, professor no espírito, político no espírito..., ou seja, pessoas que decidiram, no mais íntimo de si mesmas, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias exigências. Deixará de ser povo» – conclui o Papa.

Assim, também nós somos desafiados a ser missionários no espírito, «pessoas que decidiram [...] estar com os outros e ser para os outros», sempre, sem zonas cinzentas de privacidade que condicionem a nossa opção de estar para os outros.

 

3. A MISSÃO FAZ-SE EM REDE

Comboni, na sua homilia programática, proclama que conta – ele diz «confio» – com o trabalho do seu Vigário-geral, dos seus sacerdotes e irmãos, das veneráveis Irmãs, dos senhores presentes e do representante do imperador austríaco. 

Por outras palavras, Daniel Comboni sabe que o sucesso da sua missão como Provigário Apostólico para a África Central depende da cooperação dos seus colaboradores eclesiais, da sociedade civil – os senhores – e do poder político – o representante do imperador – que, segundo as suas próprias palavras, «quererá continuar a render gloriosamente a homenagem da espada à cruz, a defender os direitos da nossa religião divina, no caso de serem ignorados e espezinhados».

Não somos missionários no singular, nem podemos ser missionários sozinhos. Jesus enviou os Doze e os Setenta e dois, dois a dois. Precisamos de trabalhar em rede com outras pessoas – igreja local à qual pertencemos, missionários leigos, sociedade civil, agentes humanitários, líderes religiosos e membros de outras igrejas, políticos, etc. – para sermos a missão que Deus quer que sejamos. 

Os DC ‘22, sobre a prioridade Ministerialidade ao serviço da requalificação, exprimem o compromisso de «aviar um diálogo e uma colaboração com as Igrejas locais para desenvolver pastorais específicas e trabalhar em rede com os movimentos populares» (DC '22, 31.4)

Hoje, como outrora, a missão é sinodal: caminhamos juntos, trabalhamos juntos, vivemos juntos, acreditamos juntos.

O plano de Comboni era um sonho de colaboração em rede de todos os institutos missionários trabalhando juntos, uma ampla coligação para preparar os africanos para serem salvadores e regeneradores de si mesmos. Infelizmente, este grande projeto não se materializou.

Comboni queixava-se do «maldito egoísmo religioso e fradesco que impera em quase todas as ordens religiosas: “A ordem e depois Cristo e a Igreja”. [...] Não é grande coisa o bem que se faz, diz o frade, se não provém da ordem» (Escritos 2387). Por isso estamos aqui: porque outros institutos não trabalharam com Comboni, ele fundou os seus dois institutos para levar por diante o projeto. Somos um monumento a esta incapacidade de pensar para além da própria ordem, de trabalhar em rede para a glória de Deus.

Hoje, a realidade é tão complexa que não somos capazes de a enfrentar sozinhos, seja na evangelização, na educação, na saúde, na assistência... Precisamos de juntar as nossas ideias, os nossos recursos e as nossas forças para sermos transformadores efetivos da sociedade. Precisamos da experiência e da força uns dos outros para sermos eficazes na prestação de serviços.

 

APELO À MÃE

Comboni chama à Mãe Maria «precioso alívio do missionário» (Escritos 262). Não podia deixá-la de fora da sua missão, do seu programa pastoral: dirige-se a ela no final da homilia.

Reza: 

E agora é a vós a quem me dirijo, ó piedosa Rainha da Nigrícia, e, aclamando-vos como Mãe amorosa deste vicariato apostólico da África Central entregue aos meus cuidados, atrevo-me a suplicar-vos que nos recebais solenemente sob a Vossa proteção a mim e a todos os meus filhos, para que nos guardeis do mal e nos dirijais para o bem.

Ó Maria, Mãe de Deus, o grande povo dos negros dorme ainda na sua maior parte nas trevas e sombras da morte: apressai a hora da sua salvação, aplanai os obstáculos, dispersai os inimigos, preparai os corações e enviai sempre novos apóstolos a estas remotas regiões tão infelizes e necessitadas.

Esta é também a nossa oração, hoje e sempre. Amém!

 

Qillenso, 10 de outubro de 2024 – 143º aniversário do dies natalis de São Daniel Comboni.

11 de outubro de 2024

VICARIATO DE HAWASSA CELEBRA DOIS MISSIONÁRIOS DISTINTOS




A 10 de outubro de 2024, a Igreja Católica de Hawassa celebrou dois distintos missionários com uma Eucaristia de réquiem na sua catedral.

O Vicariato Apostólico celebrou a memória dos combonianos, a Ir. Maria Sarina Nici e o P. Nicolino Di Iorio. 

Foi um modo diferente de assinalar a solenidade de São Daniel Comboni, fundador dos dois institutos.

Os dois missionários nasceram na Itália e regressaram à Casa do Pai na primeira semana de outubro. 

A Ir. Sarina faleceu em Verona, Itália, a 1 de outubro de 2024, com 92 anos. 

O P. Nicola faleceu em Adis-Abeba a 6 de outubro de 2024. Tinha regressado de umas férias de cinco semanas com os pais em Itália e estava a descansar do voo quando a irmã morte o chamou. Tinha 66 anos.

A Eucaristia foi presidida pelo Bispo capuchinho Dejene Hidoto, Vigário Apostólico de Sodo.

D. Seyoum Franso, Vigário Apostólico de Hosanna, o P. Juan Núñez, Administrador Apostólico de Hawassa, e o P. Asfaha Yohannes, Superior Provincial dos Missionários Combonianos na Etiópia, concelebraram com cerca de 50 sacerdotes, diocesanos e missionários.

O P. Juan, Administrador Apostólico, deu as boas-vindas aos participantes no início da Missa. 

Agradeceu ao P. Nicola pelo seu incansável trabalho em Hawassa. “Agora, ele está a descansar no céu”, disse.

A catedral estava repleta com muitos religiosos e religiosas de diferentes congregações que servem o Vicariato de Hawassa ou vindos de foraa e de outros fiéis. 

A liturgia foi celebrada em amárico e sidamo.

O P. Tsegaye Getahun, secretário-geral do Vicariato de Hawassa, fez a homilia, recordando o ministério do P. Nicola.

No final da celebração, a Ir. Weynshet Tadesse Haile, responsável pelas Irmãs Missionárias Combonianas na Etiópia, e o P. Asfaha apresentaram as histórias de vida dos dois missionários defuntos.

A Ir. Sarina entrou para as Irmãs Missionárias Combonianas na Eritreia. 

Depois da formação, iniciou o seu serviço missionário no Bahrein e no Iémen do Sul durante 16 anos.

Entretanto, foi transferida para a Etiópia e serviu nas missões de Dilla, Dongora, Hawassa, Meki e Addis Abeba durante 28 anos. Foi também formadora nos Seminários Menores de Hawassa e Meki. 

A promoção das mulheres era o seu grande amor. O Comboni College for Women de Hawassa é um monumento ao seu trabalho pioneiro. 

Há quatro anos, foi transferida para a Casa-Mãe das Irmãs Combonianas em Verona, Itália, devido à idade e saúde.

“A Ir. Sarina era uma pessoa verdadeiramente espiritual que valorizava em tudo a sua vocação de irmã religiosa. A sua vida influenciou e continua a influenciar muitas pessoas. A sua generosidade, a sua bondade e o seu cuidado para com os outros foram um exemplo e um testemunho do seu profundo amor a Deus e da sua fé, que brotava de uma humanidade bondosa e gentil”, sublinhou a Ir. Weynshet.

O P. Nicola foi ordenado em 1986 e trabalhou em Itália até vir para o Vicariato de Hawassa em 1995. 

Permaneceu na Terra das Origens até à sua morte prematura, exceto por um período de quatro anos em Itália, entre 2012 e 2016. 

Serviu as missões de Tullo, Fullasa, Teticha e Daye entre o povo Sidama. 

Foi também reitor do Seminário Maior de Hawassa em Adi- Abeba e ecónomo provincial dos Combonianos na Etiópia.

Nos últimos quatro anos foi vice-Administrador Apostólico de Hawassa, ajudando o P. Núñez, Administrador Apostólico. 

O P. Nicola estava também empenhado na formação permanente das religiosas, sobretudo através de um retiro mensal, e na Missa dominical em inglês para a comunidade internacional em Hawassa.

Foi celebrado como um administrador e missionário generoso, afável, dedicado e excecional.

“Imagino o P. Nicola a repetir as palavras de São Daniel Comboni: 'Eu morrerei, mas a minha obra não morrerá'”, afirmou o P. Asfaha.

O P. Tesfaye Tadesse, Superior Geral dos Missionários Combonianos e membro radical da província etíope, enviou a sua mensagem de condolências à província e ao vicariato de Hawassa.

“Todos nós agradecemos a Deus pelo dom de Abba Nicola, um grande Comboniano capaz, espiritualmente rico e humanamente generoso”, escreveu o P. Tesfaye.

O P. Tesfaye agradeceu ao P. Nicola pelas suas qualidades humanas e espirituais, pela sua partilha de fé, pela sua simplicidade, pelo seu dom de criar amizade, pelos seus gestos de caridade.

Alguns representantes de grupos eclesiais, incluindo um catequista de Daye, celebraram também os dois missionários e a sua herança.

A Eucaristia memorial terminou com um almoço fraterno. 

As comunidades combonianas femininas e masculinas de Hawassa, juntamente com alguns missionários e  missionárias de Adis-Abeba, Haro Wato, Daye e Qillenso, concluíram o dia de São Daniel Comboni com uma hora de adoração à volta de uma das suas últimas cartas desde Cartum.

7 de outubro de 2024

DESCANSA EM PAZ, ABBA NICOLA


Esta manhã tinha missa na capela de Badeye. Parei junto à torre da Ethiocom. A net estava muito fraca e tinha curiosidade de saber como ficou o Porto-Braga. 2-1! Boa.

Ia continuar a viagem, mas notei que o ícone do WhatsApp marcava muitas mensagens não lidas. A primeira que abri era do Grupo dos Religiosos do Vicariato. O P. Juan Núñez, comboniano espanhol que é administrador apostólico de Hawassa, tinha escrito: «Queridos padres, irmãos, irmãs, fiéis cristãos: tenho esta manhã uma notícia muito triste a comunicar: o P. Nicola veio da Itália no sábado à noite. Foi descansar. Como ontem ele não saiu do quarto, foram ver e encontraram-no morto. É cedo para dar mais informações. Fá-lo-emos ao longo do dia. O que podemos fazer agora é rezar».

Fiquei incrédulo, com o coração partido! Deve ser engano. Voltei a ler a mensagem. Depois fui ao Grupo dos Combonianos na Etiópia. O provincial tinha postado a mesma notícia com o detalhe de que os pais pedem que seja sepultado na Itália.

Fui para Badeye a chorar. Dei a notícia à dúzia de pessoas que enfrentaram a chuva para celebrar a missa. O catequista conhecia o Abba Nicola – como o chamávamos. Rezamos pelo seu eterno descanso e pelos seus velhos pais.

O Abba Nicola (Nicolino) Di Iorio tinha 66 anos, 27 dos quais vividos na Etiópia sobretudo entre o povo Sidama no Vicariato de Hawassa.

Conhecemo-nos em Elstree, Inglaterra, em 1982, estudantes de teologia. Tínhamos feito os votos no mesmo dia, a 6 de junho de 1981. Ele em Venegono, eu em Santarém. Esteve um ano em Chicago, nos Estados Unidos da América. Em 1982 foi transferido para Elstree. 

Era muito tranquilo e organizado. O seu quarto era modelo de arrumação. Um dia com o António Bonato decidimos pôr tudo fora do sítio e fomos para o quarto do lado para ver como reagia à nossa partida. Entrou, re-arrumou tudo e voltou a sair sem dizer palavra!

Voltamos a encontrar-nos na Etiópia em 1993: ele foi trabalhar com os Sidama e eu com os vizinhos Gujis. Por algum tempo foi superior do Seminário Maior de Hawassa em Adis-Abeba e ecónomo provincial na Etiópia.

Reencontramo-nos em novembro de 2021. Desta feita era Administrador Apostólico adjunto, assistindo o Abba Juan Núñez. Disseram-me que fazia parte da terna de padres propostos para bispo de Hawassa. Os outros dois eram etíopes: um comboniano e um jesuíta. Esperava que fosse o meu bispo. A diocese ficava em boas mãos. Era um pastor dedicado e comprometido.

O Abba Nicola vivia a cem por cento o seu trabalho de administração. Reuniões mais reuniões. Visitas às diversas missões. Também organizava retiros mensais para as religiosas de Hawassa e presidia à missa dominical em inglês para a comunidade internacional em Hawassa, feita sobretudo de estudantes do Sudão do Sul. 

Em Hawassa, recebia-me com um abraço e, da última vez com um chocolate, no seu escritório. Achei-o muito cansado. Havia desmaiado duas vezes. Mais de uma vez lhe disse para vir passar uns dias comigo a Qillenso. 

«Lá a rede telefónica é muito fraca e podes descansar sem ninguém te chatear» – expliquei. Foi adiando...

Em agosto encontrámo-nos em Hawassa pela última vez. Disse-me que ia passar cinco semanas com os pais no sul da Itália em setembro e outubro. Aconselhei-o a tirar pelo menos dois meses de férias. Disse que não podia.

Agora descansa no abraço terno e eterno de Deus.

O Abba Nicola foi missionário na Etiópia entre 1993 e 2012. Nesse ano foi destinado à Itália, mas regressou à Terra das origens em 2017. 

O Dr. Pedro Nascimento é um Leigo Missionário Comboniano que trabalhou dois anos na Etiópia, entre o povo Gumuz. Quando soube do falecimento do Abba Nicola mandou-me esta mensagem: «Recebi a triste notícia do falecimento do padre Nicola... Com a sua personalidade forte, fez imenso! Foi ele, juntamente com o padre Sisto, que me foi buscar ao aeroporto, foi ele que fez tudo para irmos visitar as missões combonianas [no Vicariato de Hawassa]; foi ele que nos primeiros tempos cuidou de nós. Um verdadeiro homem de Deus, a quem chamei de amigo! Um testemunho para mim!»

A comboniana Ir Graça Almeida também trabalhou na Etiópia entre os Sidama. «Nicola era uma boa pessoa com todos. Uma bondade e uma gentileza que o distinguia. Que Nicola descanse agora nos braços de Deus» – escreveu-me.

O P. Endrias Shamena Keriba, comboniano etíope na África do Sul, postou no Grupo dos Combonianos: «Querido Abba Nicola... serás recordado para sempre pelo povo da Etiópia pela tua dedicação e amor que tinhas no teu coração. Nós continuamos a amar-te na tua eternidade com o Senhor. Ora por nós».

A Deus, meu irmão, amigo, companheiro. Descansa no Paraíso. Mereces depois de tanto labutar em Hawassa. E intercede junto de Deus pela paz na Etiópia.

4 de outubro de 2024

INGLÊS NO DESERTO

 

Mais de trinta senhoras beduínas participaram na primeira reunião. Perguntamos-lhes se queriam aprender a bordar ou inglês.

«As duas coisas!» – responderam.

«Uma coisa de cada vez.» – propusemos.

No fim, escolheram inglês.

A maioria das alunas que vieram para a primeira aula de inglês não esteve na reunião preparatória. São quase todas caras novas. Jovens. 

As aulas são dadas debaixo de um alpendre de zinco. O chão é de relva sintética.

São cerca de trinta as jovens que frequentam as aulas de inglês nesta aldeia beduína. Estão ansiosas por aprender. Foram divididas em três grupos de acordo com o nível de cada uma.

Estão tão sedentas de aprender que chegam meia hora antes das aulas. As irmãs Lulu, Júlia e eu estamos encantadas.

Hoje, a aula é sobre o uso dos verbos ser, estar, haver, ter, poder no presente, passado e futuro. 

Eu começo.

«Nasci em Tangamandapio.» – digo, marcando um pontinho no mapa do continente americano. 

Digo-lhes que sou missionária comboniana, que somos muitas em todo o mundo e que é um privilégio servir na Terra Santa.

«Eu trabalho desde os três anos!» – conta outra. 

«O meu pai tem duas esposas. A minha mãe está na Jordânia e a mãe dela,» – diz, apontando para a sua irmã – «está na Palestina. Chegamos no dia em que começaram as aulas de inglês. Eu não queria vir para a Palestina, mas, agora que frequento as aulas, estou contente por ter vindo!» – disse, com um sorriso rasgado.

«Eu estou noiva!» –  disse outra aluna. «Vou casar no ano que vem.»

Estamos convidadas para o casamento.

«Se eu pudesse frequentava o magistério!» – explicou outra.

Com o vocabulário aprendido continuamos a alinhavar diálogos. E a entreter vidas e sonhos.

Ir Cecília Sierra

Missionária Comboniana a trabalhar com beduínos no Deserto da Judeia