15 de fevereiro de 2022

UM SÁBADO EM MISSÃO

 




Adola, seis da manhã de cinco de fevereiro.

Acordo, estremunhado, com o cantar sério e solene de um clérigo ortodoxo através do altifalante da igreja vizinha. A luz que entra pela janela ainda é pálida. O sol, preguiçoso, anda a levantar-se mais tarde.

Depois da eucaristia com as Missionárias da Caridade e do pequeno-almoço volto para o quarto dos hóspedes para preparar a homilia de domingo — como faço todos os sábados de manhã.

Pego no livro das leituras em inglês e guji, na folha onde desenho um pequeno esquema da homilia em inglês e no caderno onde a escrevo em guji. E o dicionário inglês-guji? Esqueci-o em Qillenso! Entro em pânico: como vou escrever a homilia sem o dicionário?

Qillenso fica a 35 quilómetros que Adola e está quase 500 metros mais alto. Vou ter que escrever a homilia sem dicionário. As palavras que não sei escrevo-as em inglês e depois à tarde — tenho de ir a Qillenso — procuro no dicionário.

A rotina da preparação da homilia é simples: rezo as leituras em inglês. Depois faço um pequeno esquema daquilo que a Palavra de Deus me inspira. Por fim, escrevo a reflexão diretamente em guji.

Interessante: só escrevi quatro palavras em inglês! O meu vocabulário está a reconstruir-se aos poucos apesar de a memória já não ser o que era!

Depois do almoço passei por Qillenso para pegar o dicionário e levar pratos e copos para a capela de Urdata, cinco quilómetros mais acima. Amanhã celebram o padroeiro — São Paulo — e prometi ir buscar água com o todo-o-terreno para o almoço da festa. Sim, porque a celebração do tabot — como aqui se chama à festa do padroeiro — termina sempre com uma refeição partilhada!

Na capela, às 15h00, esperavam-me o catequista e um grupo de jovens. Carregamos dois bidões e outro vasilhame de plástico no carro e fomos para a fonte.

Gostei do caminho: a nascente protegida está a uns 20 minutos da capela numa zona verde com alguma floresta e alguns campos agrícolas. Vistas lindas.

Os jovens começaram a encher as vasilhas. O catequista perguntou se conseguia caminhar uns 20 minutos para visitar uma católica que está doente. Sabem da cirurgia que fiz à anca e preocupam-se com os meus limites!

A caminhada foi curta e agradável. Entrámos na casa da doente: uma edificação recente, quadrada, com telhado de zinco e algumas divisórias. Muito diferente das tradicionais cabanas circulares divididas em duas partes.

A senhora estava deitada num colchão. Levantou-se, pôs umas sandálias bonitas em vez dos chinelos que lhe passaram e sentou-se num cadeirão entre o catequista e eu.

Pelo que entendi, sofre de anemia crónica devido aos muitos partos que teve: treze. Foi aos médicos a Adola e a Hawassa, mas não melhora.

Conversamos. Disse-lhe que o fígado mal cozido e a injera — o pão típico de muitos etíopes — são ricos em ferro e podem ajudá-la.

Depois rezamos, impus-lhe as mãos, desejamos-lhe as melhoras e voltamos para a fonte.

Estamos na bona — a estação seca — e das quatro bicas da fonte protegida por uma tanque de cimento coberto só a mais baixa deita água. O enchimento das vasilhas estava a demorar muito mais do que o previsto.

Telefonei às Missionárias da Caridade a dizer que ia chegar atrasado para a missa das 18h00 com os pacientes do centro de acolhimento em Adola.

Um grupito de crianças, curiosas com a presença do farenji — estrangeiro — acercaram-se. Comecei a brincar com elas e tirei algumas fotos. As mais afoitas, chegaram-se ao pé de mim e começaram a tocar nos pêlos dos meus braços. Para a pequenada os cabelos nos braços são uma grande novidade.

«Ani jaldessa fakkata» — «Pareço um macaco» — disse-lhes, na galhofa. Grande risada.

Eram 17h00 quando as vasilhas ficaram cheias.

Descarreguei-as na capela e pus-me a caminho de Adola. Cheguei à capela do hospício pouco antes das 18h30. É uma construção típica, totalmente feita de bambu, uma espécie de cesto gigante com a boca para baixo.

Esta é a eucaristia que mais gosto de presidir. Os pacientes carregam as doenças com um grande sorriso. Cada pessoa participa como pode. A assembleia litúrgica é formada por católicos, ortodoxos e protestantes. Há alguns miúdos! É uma eucaristia tranquila, cantada e rezada em guji, uma oração de agradecimento que chega ao coração de Deus.

As irmãs e os pacientes estavam a rezar o terço enquanto esperavam. Petrosi, o catequista daquela comunidade, orientava-o.

Dado o adiantado da hora, decidi fazer uma pequena reflexão pondo de lado a homilia que tinha preparado. Interessante: as palavras desta vez não me faltaram!

Fui para a cama cedo, depois do jantar, para aproveitar o silêncio e dormir um pouco. Porque no domingo os ortodoxos começam a eucaristia através do altifalante às três da manhã — ou mais cedo. A comunidade das Missionárias da Caridade fica entre duas igrejas ortodoxas!

8 de fevereiro de 2022

VAI UM CAFEZINHO?




Estamos no fim da época da apanha do café nas terras de Qillenso. A altura e a temperatura mais baixa fazem com que as suas bagas amadureçam mais tarde que noutras partes da Etiópia.

A apanha é trabalho árduo, lento, paciente! As bagas encarnadas são apanhadas à mão. Como era a apanha da azeitona em Cinfães, a minha terra. Não há máquinas.  

As flores, a promessa da nova colheita, já se adivinham nos gomos brancos que se formam junto às folhas do cafeeiro.

O café é o ouro vermelho, verde ou negro da Etiópia, a fonte primeira de entradas de divisa estrangeira no país.

A cor? Depende! Se consideramos a casca externa — encarnada, a cor da semente seca — verde clara, ou o café pronto a servir.

A cultura do café foi introduzida nesta parte da Etiópia há cerca de duas década. Dá muito trabalho: o cafezal tem de ser mantido limpo, o café á apanhado à mão, tem de ser seco ao sol… Mas também dá algum dinheiro apesar de os intermediários pagarem menos de um euro por quilo ao produtor. Os ganhos maiores ficam nas cadeias de comercialização.

É o dinheiro do café que, em parte, tem melhorado a vida das pessoas desta área nos últimos vinte anos: têm casas melhores, alimentam-se e vestem-se melhor. Estão mais saudáveis. E podem mandar as filhas e filhos para o ensino secundário e superior, fora da área.

Também temos um cafezal na missão. Dividido em três pequenos talhões. Não é grande, mas dá trabalho que chegue. É um modo de melhorarmos o orçamento da comunidade. E de beber café cem por cento biológico garantido!

O gosto do café cultivado, seco, torrado, moído e feito — fresco — é muito diferente do produto comercializado onde me lês. Aqui não há misturas de lotes: é lote único.

Enquanto vou apanhando as bagas de café, com as mãos ásperas e sujas, os braços doridos pelo esforço de chegar aos frutos mais distantes dos ramos sem os quebrar, ouvindo a sinfonia extraordinária que forma o canto das aves neste paraíso verde ainda com alguma floresta intacta, dou comigo a cismar: quem imaginou que estas bagas encarnadas e carnudas, tipo cereja miúda, depois de secas e descascadas, torradas, moídas e fervidas, seriam a bebida estimulante apreciada por todo o mundo?

Os etíopes dizem que a descoberta é sua!

Café, em amárico — a língua que é considerada nacional — diz-se buna. Mas a palavra internacional para o produto — café, coffee… — encontra supostamente a raiz em Kaffa, a região da Etiópia onde o café crescia selvagem.

Contam que um guardador de cabras deu-se conta de que os animais ficavam muito mais ativos e barulhentos depois de ruminarem as bagas vermelhas de um arbusto na floresta. Foi provar e sentiu-se ligeiramente diferente, mais leve!

Então apanhou algumas bagas, meteu-as na sacola e foi consultar um monge do mosteiro vizinho. Aqueles frutos encarnados seriam coisa de Deus ou do Diabo?

O monge ouviu a história das cabras hiperativas, examinou as bagas que o pastor lhe apresentou e atirou-as para a fogueira que aquecia a noite fria das terras altas etíopes.

Definitivamente aquelas sementes eram coisa do diabo.

Mas, eis que um perfume agradável se desprendeu das bagas em contacto com o braseiro.

Curioso, o monge decidiu tirar da fogueira as sementes tostadas com a ajuda de um chamiço. Colocou-as numa taça com água quente. A água escureceu. O religioso provou a bebida: era amarga, mas gostosa. Para surpresa sua, nessa noite manteve-se desperto na vigília: rezou até à alba sem qualquer ataque de sono.

Afinal aquelas bagas eram coisa de Deus!

E assim foi descoberto o café — cujo nome recorda que vem de Kaffa, na Etiópia. Mas foram os árabes que comercializaram a bebida estimulante. Hoje, o Brasil é o maior produtor mundial de café.

Aqui, até as cascas secas do café são aproveitadas para fazer uma infusão, uma espécie de chá de café, o cafezinho dos pobres.

O café, esse é fervido e temperado de muitas maneiras: com açúcar, cravinho, canela, leite, manteiga, sal…

Na Etiópia, a cerimónia do café é uma liturgia longa. Começa com a preparação do lugar — espalhando erva verde no chão — e o acender do fogareiro a carvão.

Depois as sementes esverdeadas são apresentadas aos convidados, torradas à sua frente, moídas no pilão e fervidas num púcaro de barro próprio, jabená. O café é servida em zi’ina, uma chávena pequena sem asa. Manda a etiqueta que se bebam três xícaras. Depois de cada servir, a fazedora do café — que se mantém num silêncio concentrado, religioso — vai juntando água à jabená para diluir a bebida.

Vai um cafezinho?