23 de maio de 2025

AMOR SECANTE


No evangelho do quinto domingo da estação pascal para o ano C Jesus anuncia: «Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros; como Eu vos amei, que também vós vos ameis uns aos outros. Nisto saberão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (João 13, 34-35).

Este é o pulsar do coração do Evangelho de Jesus: o amor ao seu jeito é o caminho que nos repara e salva, que nos faz felizes. Por outro lado, o que nos distingue como cristãos não são tanto as cruzes mais ou menos valiosas e trabalhadas que levamos ao pescoço, mas o amor até ao fim, extremado, brutal, consumado. Ao jeito de Jesus de Nazaré.

Jesus ensina-nos através do seu viver que amar é autodescentrar-se. Amar é colocar o OUTRO no centro do coração. Um esforço árduo e contracultura em tempos da ditadura globalizada do eu.

Quando preparo a homilia dominical em guji, gosto de conferir a mensagem do evangelho com algum ditado do povo com quem vivo há uma dúzia de anos.

Este povo tem um provérbio que costumo citar nas homilias dos casamentos: «Ka wol jaalatanu harka wol qabanu», «Os que se amam dão-se as mãos». Este provérbio cheio de sabedoria foi transformado num refrão lindo e cantado até à exaustão: «Deus amor, Deus amor, Oh Deus amor; se nos amamos uns aos outros, damo-nos as mãos e, em verdade, vivemos».

Desta feita, peguei na grossa coleção de 4670 provérbios dos povos oromos, coligada pelo padre George Cotter, um Maryknoll norte-americano que foi missionário na Tanzânia e na Etiópia, sob o título sugestivo «Salt for stew» («Sal para o guisado») e pus-me à procura de um adágio diferente sobre o amor. 

Entre uma dúzia, houve um que me chamou à atenção: «Jaalalti goggoduun lafe namaa dhukkubsiti». A tradução literal é esta: «O amor seco faz adoecer os ossos de uma pessoa».

Fui consultar um vizinho a ver se havia correspondência em guji. Confirmou que o provérbio era igual com a diferença de que o verbo «dhukkubsiti» em guji é «dhukkussiti».

Explicou ainda que o amor seco é o amor feito só de palavras, sem obras. Um amor nocivo, insalubre.

Aliás, João, na primeira carta que escreveu, adverte os leitores para o amor seco. «Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade», avisa (1 João 3, 18).

A minha homilia nesse domingo andou à volta do mandamento novo de Jesus e dos perigos de um amor seco, palavroso, sem obras. Quando citei o provérbio nas duas missas que celebrei na igreja de Qillenso e na capela de Chirra, notei sorrisos na assembleia.

Chaltu, uma jovem de Chirra que me acompanha a algumas capelas – quer ser freira, mas antes tem que terminar o décimo segundo ano – informou-me que há outra versão do ditado: em vez de «lafe namaa dhukkussiti» (faz adoecer os ossos de uma pessoa), diz «nama murti», corta uma pessoa (no sentido de golpear. O verbo «murisa» também significa julgar).

É interessante como os povos captam o sentido de Deus através das suas expressões culturais seculares. É a sua teologia encarnada.

A este esforço de cruzar o Evangelho com a sabedoria do povo que o acolhe chama-se inculturação. É uma maneira prática e localizada de transmitir a fé através de imagens que fazem parte do seu depósito cultural.

Este depósito, contudo, vai-se perdendo com o desaparecimento dos mais velhos, que são o registo vivo da cultura local. Diz-se que em África quando morre um ancião desaparece uma biblioteca.

Quando às vezes quero verificar com a cozinheira se há algum ditado guji que corresponda ao que o livro dos provérbios inclui, ela pergunta ao pai, um ancião curtido por milhentos sóis, quando vai a casa depois do almoço ou do jantar. Vivem à frente da missão. 

Os jovens, hoje, nativos do digital e ligados à internet, têm outros interesses.

14 de maio de 2025

PÁSCOA UNIDA


Este ano os cristãos da Etiópia – ortodoxos e católicos – celebraram a Páscoa do Senhor unidos às outras Igrejas. Mas nem sempre é assim. No ano passado, por exemplo, enquanto a maioria festejou a ressurreição do Senhor a 31 de Março, as Igrejas da comunhão ortodoxa e os católicos da Etiópia fizeram-no a 5 de Maio. Porquê?

A regra para a celebração da Páscoa foi estabelecida há exatamente 1700 anos no Concílio de Niceia: a ressurreição do Senhor celebra-se no domingo depois da lua cheia do equinócio da Primavera. O desacerto vem do facto de a comunhão ortodoxa seguir o calendário juliano e as Igrejas do Ocidente usarem o calendário gregoriano que o substituiu em 1582. O mês, entre os dois calendários, começa com uma diferença de treze dias. Por isso, a data da Páscoa varia entre 22 de Março e 25 de Abril segundo o calendário gregoriano e 4 de Abril e 8 de Maio segundo o juliano.

O Papa Francisco sublinhou por diversas vezes a necessidade da celebração comum da Páscoa. Em Janeiro, na conclusão do Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos, renovou o apelo a todos os cristãos «para tomarem medidas decisivas para a unidade à volta de uma data comum para a Páscoa».

O Documento Final do Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade nota que «em 2025, [...] será também uma ocasião para lançar iniciativas audazes para uma data comum da Páscoa, para que possamos celebrar a ressurreição do Senhor no mesmo dia, [...] e assim dar uma maior força missionária ao anúncio d’Aquele que é a vida e a salvação do mundo inteiro». Bartolomeu, o patriarca ortodoxo de Constantinopla, também manifestou o desejo de os cristãos no Oriente e Ocidente celebrarem a Páscoa em «data unificada», propondo a data do calendário juliano.

A Igreja Católica na Etiópia, que foi estabelecida no século XIX sob dois ritos, também mantém duas tradições em relação à Quaresma. No Norte, os católicos do rito oriental começam a preparação da Páscoa duas semanas antes dos do rito romano, no Sul. Seguem a tradição ortodoxa de uma Quaresma de oito semanas, com jejum diário depois do jantar e até ao meio-dia ou às 15h00 do dia seguinte e sem carne, leite, ovos... No Sul, onde vive a maioria dos católicos etíopes, a tradição romana de jejum na Quarta-Feira de Cinzas e Sexta-Feira Santa e sextas sem carne é mantida.

A celebração da Páscoa do Senhor também difere. A liturgia oriental é celebrada dentro de portas, sem os ritos do lume novo e do batismo. A assembleia escuta onze leituras bíblicas (dez passagens do Antigo Testamento e uma do Evangelho de João) mais dois textos dos Padres antigos. À meia-noite, é proclamado um canto tradicional a anunciar que o Senhor ressuscitou. A liturgia dura até à aurora, feita de muitos cânticos, orações e incenso. Conclui já em casa com uma refeição festiva para quebrar o jejum vegano. No Sul, a vigília, mais curta, é feita das liturgias da Luz, da Palavra, do Batismo e da Eucaristia nas línguas locais. O almoço, esse também é melhorado.

13 de maio de 2025

«ALHAMDULILLAH!»

«AlhamdulillahAlhamdulillah! Bendito seja Deus! Bendito seja Deus!», repetem vezes sem conta a professora beduína e o seu marido, enquanto olhamos para os restos carbonizados daquilo que foi a casa deles. 

Ela estava a cozinhar com a tia. Tinha deixado a máquina de lavar a trabalhar. O calor abrasador, as chapas de zinco sobreaquecidas... bastou um mau contacto. Em poucos minutos, o fogo tudo devorou.

A casa, no meio da aldeia beduína, ficou completamente destruída. O marido mostra-nos o motor carbonizado da máquina de lavar: é o que resta. 

A família, com os quatro filhos, vive agora com uma tia. O vestido usado pela professora foi-lhe emprestado pela irmã. Todos os seus pertences foram consumidos pelas chamas. 

«Não conseguimos salvar nada», murmura. E, no entanto, repete com uma fé serena: “Alhamdulillah, estamos bem».

Eles já tinham tão pouco e perderam tudo.

«Graças a Deus, estávamos fora», explica a professora. 

Acena silenciosamente com a cabeça, o rosto marcado pela tristeza. 

Alguns dias antes, tínhamos-lhes oferecido sapatos novos que amigos tinham doado para famílias beduínas: um par para ela e outro para a filhita de dois anos. 

Porém, foi a filha mais velha quem sofreu mais. A mãe conta-nos que, quando ela chegou da escola, encontrou a sua casa em chamas e ficou em choque.

Felizmente, os bombeiros conseguiram chegar a tempo e evitaram que o fogo se propagasse às casas vizinhas. Esta é a aldeia mais próxima de Betânia, encravada entre dois colonatos israelitas na Cisjordânia. 

Bênção ou ameaça? Há meses que a comunidade está sob ordens de evacuação: as autoridades israelitas planeiam ligar os dois colonatos e a aldeia, como se não existisse, está no caminho.

Mesmo assim, a professora não perde a esperança. «Vamos reconstruir a casa!», diz, olhando para os restos carbonizados de madeira e chapas retorcidas, tão vulneráveis ao fogo. «Esperemos que fique melhor do que antes!»

Mostram-nos vídeos do incêndio. «Nem sequer quero vê-los», confessa. «Parte-me o coração.» 

Porém, mais uma vez, a sua voz eleva-se em resignação, gratidão e esperança: «Alhamdulillah!». 

E, em eco profundo, o marido repete: «Alhamdulillah!».

Ir. Cecília Sierra

Missionária Comboniana no Deserto da Judeia

 

10 de maio de 2025

REVER O FUTURO







Vinte e três membros da província etíope dos Missionários Combonianos reuniram-se de 6 a 9 de maio na Casa Comboni de Hawassa para celebrar a assembleia provincial de 2025, tendo como intento principal a revisão do Diretório Provincial, o documento que regula a vida da província. Quatro membros estavam ausentes, sobretudo por motivos de saúde ou escolares.

O P. Isaiah Nyakundi deu o mote para os quatro dias de trabalho com a reflexão motivacional de abertura sobre «A província que sonhamos ter». O comboniano, nascido no Quénia, trabalha entre os Gumuz há uma dúzia de anos.

O P. Asfaha Yohannes, superior provincial, apresentou o seu relatório sobre o estado da província em cinco pontos: situação sócio-político-económica, formação, pessoal, missão e economia. Deu também as boas-vindas aos missionários que chegaram recentemente à terra das origens.

Em seguida, a assembleia começou a estudar o novo Diretório Provincial, capítulo por capítulo, debatendo-o e aprovando-o. O esboço foi preparado pelos respetivos secretariados provinciais. Os confrades participaram na preparação da secção sobre a vida comunitária. Por falta de tempo, a secção sobre a economia será estudada durante o próximo Dia de Comboni, um evento anual de formação permanente previsto para outubro.

O bispo Merhakristos Gobezayehu Getachew, novo Vigário Apostólico de Hawassa, participou na assembleia na tarde do terceiro dia. Partilhou com os participantes o seu percurso pessoal de três meses como bispo, o que encontrou ao visitar todas as paróquias exceto uma. Partilhou também alguns projetos para o futuro do vicariato iniciado pelos Combonianos há mais de sessenta anos e que conta com um terço dos católicos da Etiópia.

D. Merhakristos presidiu à missa no final do dia e ficou para o jantar e o convívio que se seguiu, acolhendo com os membros da assembleia o anúncio de «Habemus papam». 

Os secretários provinciais da economia, missão e formação apresentaram os respetivos relatórios à assembleia que ouviu também os relatórios das três zonas pastorais: Guji, Sidama e Gumuz. Seguiu-se de um período de perguntas e de partilha de ideias sobre o que os Combonianos estão a fazer e o que podem fazer no futuro próximo.

O Superior Provincial presidiu à missa conclusiva, na qual o escolástico Asmare Gawo Gebre renovou a sua consagração à missão no Instituto dos Missionários Combonianos. Asmare terminou os seus estudos teológicos no Quénia e está a iniciar o seu serviço missionário de um ano em Gilgel Beles, entre os Gumuz.

Aludindo ao episódio da conversão de São Paulo - a primeira leitura do dia -, o P. Asfaha sublinhou a necessidade de deixar que Deus abra os nossos olhos para ver a realidade que nos rodeia sob uma nova luz. 

A assembleia provincial e o Dia de Comboni são dois eventos em que os confrades, com a sua participação, exprimem e reforçam o sentido de pertença à província.

9 de maio de 2025

TEMOS PAPA


 

Cento e trinta e três cardeais, reunidos em conclave, durante pouco mais de 24 horas, escolheram o cardeal norte-americano Robert Francis Prevost, «um filho de Santo Agostinho», como o papa número 267. A escolha gerou alguma surpresa, mas o Prefeito do Dicastério para os Bispos desde 2023 fazia parte de algumas listas de papáveis, embora não fosse candidato de topo. Dom Robert Francis – partilha o nome com o papa que o precede – escolheu o nome de Leão XIV, o que motivou alguns sportinguistas a fazer montagens com o novo papa vestindo as cores e o emblema do clube.

Segui o conclave com expetativa até porque o sector da Igreja mais tradicionalista se empenhou numa campanha para tentar «queimar» os candidatos mais dispostos a seguir o legado do papa Francisco. Produziram um dossier sobre quarenta cardeais com os seus pontos de vista em matérias mais fraturantes e a promover os próprios candidatos, e ofereceram o livro aos participantes no conclave. O dinheiro e o ruído mediático não chegaram. 

Estes, deram-nos como papa um cardeal missionário norte-americano de 69 anos, com 22 anos de trabalho no Peru como missionário e como bispo, de uma família com raízes na França e Itália (do lado do pai) e na Espanha (do lado da mãe), um homem discreto, doutorado em direito canónico, de Chicago, «o menos americano dos americanos», como publicou a Aleteia na sua lista de doze papáveis. Era o fim de lista.

No discurso de pouco mais de 530 palavras da sua primeira bênção à cidade e ao mundo, Leão XIV deixou claras as coordenadas do seu pontificado. Depois de dar a paz a todos e de querer dar continuidade à bênção pascal do Papa Francisco e de lhe agradecer, o novo papa fez três afirmações muito importantes e reveladoras:

Quero também agradecer a todos os meus irmãos Cardeais que me escolheram para ser o Sucessor de Pedro e para caminhar convosco, como Igreja unida, procurando sempre a paz, a justiça, esforçando-se sempre por trabalhar como homens e mulheres fiéis a Jesus Cristo, sem medo, para anunciar o Evangelho, para ser missionários.

Devemos procurar juntos o modo de ser uma Igreja missionária, uma Igreja que constrói pontes, que constrói o diálogo, sempre aberta para acolher a todos, como esta Praça, de braços abertos, a todos aqueles que precisam da nossa caridade, da nossa presença, de diálogo e de amor.

Queremos ser uma Igreja sinodal, uma Igreja que caminha, uma Igreja que procura sempre a paz, que procura sempre a caridade, que procura sempre estar próxima, sobretudo dos que sofrem».

Leão XIV vai dar continuidade ao legado de Francisco de uma Igreja missionária e sinodal aberta a todos, construtora de pontes, promovendo a paz, a justiça, o amor e a proximidade dos que sofrem, sem medo.

Escolhendo o nome de Leão XIV, o novo papa quer também ser o herdeiro de Leão XIII, o papa da Rerum rovarum, da Doutrina Social da Igreja, do diálogo com a modernidade e com o mundo.

O papa norte-americano é diferente do seu antecessor argentino. Parece mais tímido e mais discreto. Vem com uma tarimba especial: o seu serviço missionário no norte do Peru como padre e como bispo próximo de todos sobretudo em momentos de crise climática. 

As suas primeiras palavras a Roma e ao mundo foram em italiano com uma saudações num espanhol bonito à diocese de Chiclayo onde foi pastor durante nove anos antes de Francisco o trazer para Roma para dirigir o dicastério dos bispos.

A Igreja está em boas mãos. A Trindade Santa, a Trindade das surpresas, deu-nos o papa que quis. Que o assista sempre!

5 de maio de 2025

SONHAR AO SOL

«Vou ser médico!», diz um rapaz beduíno com firmeza enquanto põe os meus óculos com um sorriso travesso. Ao lado dele, uma rapariga experimenta uns óculos de sol que lhe tapam metade da cara. «Também vou ser médica!», diz entusiasmada. Com gestos inocentes, simula uma cesariana: «Vou abrir a barriga das mães para os bebés nascerem.». 

Outra, pequenina e determinada, anuncia que vai ser dentista e espreita para dentro da minha boca como se já estivesse a examinar os pacientes. Ironias da vida: os seus próprios dentes estão estragados pela cárie, sinal doloroso da falta de acesso aos cuidados mais básicos de saúde.

Observo-os com ternura. Todos querem a minha atenção, sonham em grande, agem como se o futuro já estivesse nas suas mãos. Mas a realidade é dura: a rapariga que sonha ser ginecologista vai deixar o jardim de infância dentro de um mês e provavelmente terminará aí a sua educação formal.

A única escola da aldeia, perdida entre as colinas e os vales do deserto, mal sobrevive. Os professores vêm de longe, dão umas horas de aulas e depois vão-se embora logo que podem. «Não vale a pena vir...», diz o diretor com um encolher de ombros. «Eles não querem estudar.». 

Mas nada podia estar mais longe da verdade.

Estas crianças querem aprender. Têm sonhos tão grandes como o horizonte que as rodeia, e uma inteligência viva, aguçada e brilhante. 

No caminho de regresso, passamos por um grupo de raparigas que, sem que ninguém as obrigue, caminham horas a fio todos os dias para irem à escola noutra aldeia. Sobem montanhas, atravessam estradas áridas, enfrentam o calor abrasador ou o frio cortante... tudo para manterem os seus sonhos.

Vemo-las caminhar, pequenas silhuetas ao sol, carregando mochilas e esperanças imensas. Não são apenas raparigas beduínas. São futuras médicas, dentistas, curadeiras das suas comunidades... 

E talvez, se o mundo ouvir e reagir, também protagonistas de um futuro mais justo e mais risonho.

Ir Cecília Sierra

Missionária Comboniana no Deserto da Judeia