11 de agosto de 2025

PROFETAS DE ESPERANÇA, AO ESTILO DE COMBONI


 

Em 2025 vivemos um ano jubilar, um tempo especial de reconciliação, de renovação pessoal e comunitária. Para viver este tempo em plenitude, o Papa Francisco proclamou a esperança como mensagem central deste Jubileu desafiando a Igreja e o mundo a serem peregrinos de esperança. A partir da constatação de que «a esperança não engana» (Romanos 5,5), o pontífice ao proclamar o Jubileu escrevia: «Todos esperam. No coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e expectativa do bem. Muitas vezes encontramos pessoas desanimadas que olham, com ceticismo e pessimismo, para o futuro como se nada lhes pudesse proporcionar felicidade. Que o Jubileu, seja para todos, ocasião para reanimar a esperança! A Palavra de Deus ajuda-nos a encontrar as razões para isso».

 

A Esperança não engana

A esperança nasce do amor do Pai e funda-se no amor, feito pão partido para a vida do mundo, o amor do Coração de Jesus trespassado na cruz. Este amor divino, manifestado por Cristo, o missionário do Pai, é também o fundamento da vocação e da missão de S. Daniel Comboni e dos seus missionários. 

Comboni escreveu: «O Sagrado Coração de Jesus palpitou também pelos povos negros da África Central e Jesus Cristo morreu igualmente pelos Africanos. Jesus Cristo, o Bom Pastor, acolherá também a África Central dentro do seu redil. E o missionário apostólico não pode percorrer senão o caminho da cruz do divino Mestre, semeada de espinhos e fadigas de todo o género. Portanto, o verdadeiro apóstolo não deve ter medo de nenhuma dificuldade, nem sequer da morte. A cruz e o martírio são o seu triunfo» (Escritos 5647).

A vida de Jesus «manifesta-se na nossa vida de fé, que começa com o Batismo e desenvolve-se na docilidade à graça de Deus e é por isso animada pela esperança, sempre renovada e tornada inabalável pela ação do Espírito Santo, que irradia nos crentes a luz da esperança e a mantém acesa» (Papa Francisco).

Diante de nós a oportunidade de beber a esperança na graça de Deus, mas também descobri-la nos sinais dos tempos, interpretados à luz do Evangelho. Apesar do muito mal e violência que invadem o nosso quotidiano, há tanto bem no mundo e este merece a nossa atenção. Estes sinais dos tempos pedem para ser transformados em sinais de esperança. Alguns destes sinais são: a necessidade de paz para o mundo; a perda do desejo de transmitir a vida; as pessoas que vivem em condições de dificuldade como os presos, os doentes, os desempregados; os jovens; os migrantes: exilados, deslocados, refugiados; os idosos; os pobres. Temas como o perdão das dívidas dos países pobres, os desequilíbrios comerciais, a luta contra a erradicação da pobreza, a luta contra as injustiças, não nos podem deixar indiferentes.

Ao proclamar o Jubileu o Papa Francisco escreveu: «Precisamos de transbordar de esperança para testemunhar de modo credível e atraente a fé e o amor que trazemos no coração; para que a fé seja jubilosa, a caridade entusiasta; para que cada um seja capaz de oferecer ao menos um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito, sabendo que, no Espírito de Jesus, isso pode transformar-se uma semente fecunda de esperança para quem o recebe». 

O papa Leão XIV, nas primeiras palavras que nos dirigiu, disse: «Deus nos ama, Deus vos ama a todos, e o mal não prevalecerá! Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos de mãos dadas com Deus e uns com os outros, sigamos em frente! Somos discípulos de Cristo. Cristo vai à nossa frente. O mundo precisa da sua luz. A humanidade precisa d’Ele como ponte para poder ser alcançada por Deus e pelo seu amor. Ajudai-nos também vós e, depois, ajudai-vos uns aos outros a construir pontes, com o diálogo, o encontro, unindo-nos todos para sermos um só povo sempre em paz».

 

Acreditar no poder do fogo de Deus

A 10 de Outubro de 2020, na homilia da celebração de S. Daniel Comboni na Cúria dos Combonianos em Roma, o cardeal José Tolentino de Mendonça exortava todos aqueles que se inspiram no carisma de Comboni a não serem prisioneiros de cinzas, mas acolhedores do Espírito que, descendo sobre nós, nos faz corajosos, nos impele a ir mais além.

«Um dia perguntaram a um escritor famoso o que salvaria se a sua casa ou biblioteca ardesse e ele só pudesse salvar uma coisa. Todos esperavam que ele escolhesse um objeto que lhe fosse particularmente caro ou um livro precioso, mas ele respondeu: “Se eu pudesse salvar apenas uma coisa, salvaria o fogo”. O Papa Francisco já retomou esta história mais de uma vez para nos lembrar que o necessário na vida da Igreja é “manter o fogo vivo, não adorar as cinzas”.

«Celebramos São Daniel Comboni. É bonito fazer festa, celebrar. É belo encontrarmo-nos, sentir que temos raízes e sonhos que nos unem. É belo sentir a fraternidade como uma verdade que podemos tocar, não apenas teórica, artesanal e nunca pré-fabricada. É belo sentir a paternidade de um cristão como Comboni, que tinha um coração ardente e não era, de forma alguma, um prisioneiro de cinzas, que sabia acender profeticamente o fogo do Evangelho atravessando fronteiras, zonas de conforto, incompreensões, visões limitadoras, concretizando uma visão missionária inovadora. O que significa hoje celebrar a sua memória? Como é que nos colocamos hoje no caminho que ele inaugurou? A tentação de adorar as cinzas, de percorrer apenas os caminhos já marcados ou de abrir apenas as portas já abertas é uma tentação de todos os tempos, mais insidiosa do que pensamos.

«Na linha da frente da missão, quantas vezes percebeis que o mais importante não é o que damos por garantido, porque isso é ultrapassado pela rápida mudança das circunstâncias! Por isso nos perguntamos: o que é permanecer na fidelidade? Certamente é a capacidade de acreditar no poder do fogo, especialmente quando parece impotente e frágil para vencer o mal. As cinzas só tendem a imobilizar-nos numa imagem resignada e conformista. Pelo contrário, o Espírito, o Espírito que desce sobre nós, é dinamismo, é um apelo a ir mais além, é uma manifestação concreta do amor que Deus reserva para os esquecidos, para aqueles que tão frequentemente são descartados. O Espírito desce sobre nós para nos fazer tornar corajosos frequentadores do futuro.

«Que São Daniel Comboni, pastor à imagem do Coração de Jesus, nos inspire hoje a viver a nossa vocação e missão com autenticidade e profecia, mantendo vivo o fogo do Espírito que renova todas as coisas» – disse o Cardeal Tolentino.

Maria, a Mãe de Jesus e Mãe da Igreja, nossa Mãe é a mulher da esperança por excelência: na vida oferecida a Deus, acolhendo a proposta do anjo, na dor oferecida aos pés da cruz, enquanto via o Filho inocente sofrer e morrer… Ela vem em nosso auxílio, apoia-nos e convida-nos a ter fé e a continuar a esperar! 

Renovemos assim, a nossa confiança em Deus e na sua graça e não deixemos que nos roubem a esperança!

Pe Joaquim Silva, mccj

5 de agosto de 2025

ENCONTROS SAGRADOS




O meu crucifixo, pendurado ao pescoço, atrai imediatamente os seus olhares curiosos. São crianças beduínas, palestinianas, muçulmanas. Algumas olham para o crucifixo, apontam para ele com seriedade e sussurram: 

— Haram! Pecado! 

Mas outras aproximam-se com os olhos bem abertos:

— Quem é ele?

— Jesus, o Messias! — respondo com um sorriso.

— Enti mesihiah? És cristã?

Um deles repete pensativo: 

— O Messias... Ah, é por isso que chamam-vos mesihiyin, cristãos.

Então, um deles pergunta-me:

— Rezas?

Respondo com outra pergunta:

— E tu rezas?

Com voz firme e olhar sereno, começa a recitar a sura al-Fatiha do Alcorão. Depois, olha para mim com ternura e diz:

— Agora é a tua vez.

Recito o Pai-nosso em árabe. 

Uma menina aproxima-se, em silêncio, e acena com a cabeça a cada palavra. Cria-se um momento de suspenso, quase sagrado. Quando digo «Ámen», ela também sussurra:

— Ámen!

A oração de Jesus atravessa os corações. Não precisa de explicação.

Um menino, filho de um xeque, no início diz-me, com firmeza, que carregar a cruz é haram, pecado. 

A sua família é um pouco rígida. A mãe cobre o rosto com uma burca. Mas, no final do dia, algo mudou no seu olhar. Com olhos brilhantes e sinceros, ele olha para mim e diz:

— Eu amo os cristãos. São meus amigos.

No dia seguinte, chega um jovem voluntário estrangeiro. O menino corre emocionado na sua direção:

— Mesihi? Cristão?

— Sim, é cristão! — respondo-lhe.

Então ele sorri, com uma alegria imensa, e diz:

— Sou amigo dos cristãos.

E cumprimenta-o amigavelmente.

Perguntamos às crianças:

— Se pudesses receber um presente de paz, qual seria?

Uma criança de seis anos, sem hesitar, responde com uma única palavra:

— Gaza.

As professoras olham-se em silêncio, comovidas. Não era preciso mais nada. A resposta dele dizia tudo.

São estes os encontros que guardamos na alma. Pequenos gestos, cheios de uma força silenciosa: abrir-se ao outro, acolher o diferente sem medo, descobrir que o sagrado também habita na voz e na fé do outro.

Durante este mês de julho, percorremos nove aldeias no deserto da Cisjordânia, partilhando com crianças temas de paz, esperança, alegria e resiliência através dos campos de verão. 

No meio de uma realidade polarizada, difícil e incerta, nos acampamentos de verão as crianças beduínas aprendem que a diversidade não é uma ameaça, mas uma riqueza. Eles aprendem — e ensinam-nos — que há beleza na oração do outro, na sua forma de nomear Deus, na sua maneira de amar.

A cada passo, o coração se expande. A cada criança, a esperança se renova.

«Quando o teu coração está cheio de amor, nunca verás um rosto estranho», escreveu o autor libanês Gibran Khalil Gibran.

Ir Cecíia Sierra

Missionária Comboniana no Deserto da Judeia.

1 de agosto de 2025

MISSÃO: DESAPRENDER PARA APRENDER



O serviço missionário, especialmente num contexto linguístico-cultural novo, começa com um processo de (des)aprendizagem para abrir caminho para o mundo novo da cultura hospedeira onde o enviado deve inserir-se.

Neste processo inicial de desconstrução, Cristo Jesus, o missionário do Pai, é o paradigma. Um hino cristológico da Igreja nascente proclama que «Ele, que é de condição divina, não Se valeu da Sua igualdade com Deus, mas despojou-Se a Si próprio, assumindo a condição de servo, tornando-se idêntico aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se a Si mesmo, obedecendo até à morte, e morte de cruz» (Filipenses 2, 6-8).

No início de cada envio missionário está este processo de despojamento humilde da experiência humana e cristã referentes para acolher uma nova maneira de ser pessoa e de crer, através da língua e da cultura, do viver.

Confesso que é desafiante para um adulto aceitar voltar a ser criança e reaprender a vida quase do zero. Porém, sem esse «salto» não é possível fazer uma missão inculturada e aceitar o povo hospedeiro como pátria nova e sua.

Tinha quase 33 anos quando cheguei pela primeira vez à Etiópia, a 9 de Janeiro de 1993. Robe, um professor da escola primária da missão de Qillenso, deu-me as primeiras lições de guji. Depois de entender os mecanismos da língua, troquei as suas lições pelo convívio com os mais novos, que não tinham problema – ao contrário dos adultos – em corrigir e galhofar com os meus pontapés na gramática.

Era complicado tentar balbuciar «bom dia» em guji – que literalmente se diz «Passaste bem a noite?» – com as palavras a brincarem às escondidas nas dobras da memória… Uma vez, ia de viagem para Adis Abeba (a capital etíope), quase 450 quilómetros, num misto de picada e asfalto. A meio do caminho, cheio de sede, parei numa loja na berma da estrada. Queria pedir um refrigerante (lasselasse) e saiu-me uma Trindade (Selassie). Dei-me conta da troca quando notei o olhar espantado do vendedor.

Para aprender a língua é preciso perder o medo de errar e tentar pensar na língua local em vez de fazer tradução mental simultânea. O processo exige tempo e o corte radical com a língua-mãe. O que dificulta aos «nativos do digital» – que passam muito do seu tempo ligados à net na própria língua – a aprendizagem do idioma hospedeiro.

Uma evangelização inculturada requer conhecimento da cultura local. Ajuda muito ilustrar a mensagem evangélica com um provérbio ou uma história. Um ancião, vizinho da missão de Haro Wato, a minha segunda casa na Etiópia, foi um apoio fundamental. Na preparação da homilia de Domingo, ia visitá-lo, líamos o Evangelho juntos e depois perguntava se havia algum ditado parecido com a mensagem de Jesus. Ainda hoje o faço, auxiliado pela cozinheira – que, quando, não sabe, vai perguntar ao pai – e por uma pequena coletânea de provérbios publicada por um colega mexicano.

Outra experiência estimulante é aprender como as pessoas dizem Deus na própria cultura. Os gujis iniciam as orações tradicionais evocando Deus como «nosso pai e nossa mãe, nosso avô e nossa avó, nosso bisavô, aquele que nos deu à luz». E têm muitas histórias e provérbios sobre Deus. Usar essa linguagem localiza a mensagem evangélica diluindo a marca de estrangeira.

O processo de aprendizagem é também físico. Sou de Cinfães, uma vila a meio da Serra do Montemuro. Pensei que era muito alta. Qillenso, a minha casa na Etiópia, está a 2.300 metros de altitude e o meu corpo levou quase um ano a acostumar-se ao ar rarefeito e húmido da floresta onde vivemos. Depois de uma dúzia de anos por estas paragens, ainda sinto alguma vertigem quando celebro na capela de Gosa que está a 2.800 metros.

Há outras aprendizagens a fazer: o ritmo de vida (quando não há luz, deitámo-nos com as galinhas e levantámo-nos com os galos); dar tempo aos encontros com as pessoas mais do que à agenda (na África, o tempo não se conta, mas faz-se); descobrir novos conceitos de justiça e justeza (num processo de reconciliação tradicional, ninguém é inteiramente culpado nem ninguém é completamente vítima); desacelerar o quotidiano; as comidas locais (que às vezes provocam alguns desarranjos intestinais).

Diz-se que a paciência é o grande escudo do missionário. É verdade: a paciência aprende-se e exerce-se nos diferentes processos em que estamos envolvidos. Um ditado africano ensina que sozinhos vamos mais depressa, mas juntos vamos mais longe! Os gujis dizem que «o ovo devagarinho foi a pé» para explicar que o processo de crescimento (do ovo ao pinto) precisa de tempo.

A gramática da (des)aprendizagem pode parecer feita de perdas, lutas e sacrifícios. Contudo, é o que faz da vida missionária a aventura mais privilegiada de viver, uma experiência de humanização que leva o missionário a vestir novos modos de ser humano e de viver Deus. Depois, o que nos faz falta é o que temos!