27 de fevereiro de 2021

TENTAÇÕES


O evangelista Marcos despacha o relato das tentações de Jesus em 30 palavras no texto grego. Mateus e Lucas fazem uma narração mais detalhada em uma dúzia de versículos.

Marcos, contudo, retém o essencial: o deserto é o local das tentações. Mas também é o lugar onde Deus fala ao coração do seu povo.

No deserto Jesus ouve duas vozes, dois projetos de vida antagónicos: do Espírito e de Satanás. A tentação maior voltou já na cruz: “Salva-te a ti mesmo”. 

Jesus foi tentado a usar os recursos com que o Pai o habilitou para a sua missão em proveito próprio. Esta é a maior tentação: sermos o centro da nossa própria vida.

Os 40 dias das tentações recordam os 40 dias do dilúvio antes de a arca de Noé poisar terra firme; os 40 dias de Moisés em retiro no Monte Sinai para receber a Lei da Aliança; os 40 anos do povo a caminhar pelo deserto antes de entrar na Terra Prometida; os 40 dias em que Jesus, depois da ressurreição, num curso intensivo aos discípulos antes de regressar definitivamente para o Pai. 

Na matemática da Bíblia, 40 significa tempo de preparação.

A narração de Marcos termina com uma nota: “Estava com os animais selvagens e os anjos serviam-no”.

Jesus, ao dizer não às propostas individualistas de Satanás e sim ao plano de Deus, transformou o deserto no paraíso, restaurando a harmonia dos inícios com os anjos e com a criação inteira, incluindo a vida selvagem. 

Quando vivia na Etiópia e me cruzava com uma serpente, perguntava-me: "Como posso ser boa-nova para este animal?". E deixava-a ir à sua vida.

A quaresma é o tempo santo para integrar todos os aspetos da vida: conviver tranquilamente com os animais selvagens que povoam o coração e aceitar o serviço dos anjos. Transformar as espadas em foices, a agressividade em ternura, o egoísmo em amor. Não pôr nada de lado. Fazer o deserto florir...

21 de fevereiro de 2021

CINTO DE DEUS


O Livro do Génesis, que abre a Bíblia, conta que, depois do grande trauma que foi o dilúvio universal, Deus fez uma aliança de vida com Noé e os seus filhos. E através deles com a criação inteira.

O texto bíblico reporta o querer de Deus: «Vou estabelecer a minha aliança convosco, com a vossa descendência futura e com os demais seres vivos que vos rodeiam: as aves, os animais domésticos, todos os animais selvagens que estão convosco, todos aqueles que saíram da arca. Estabeleço convosco esta aliança: não mais criatura alguma será exterminada pelas águas do dilúvio e não haverá jamais outro dilúvio para destruir a Terra.»

Uma nota importante: estamos habitados a pensar a salvação de Deus em termos antropocêntricos como a salvação do género humano. Mas a oferta ide felicidade de Deus é mais abrangente: nela cabem todos os seres vivos. É uma salvação cósmica. Não é só da minha alma…

Deus faz uma aliança cósmica de vida.

Depois da grande destruição que foi o dilúvio, a cheia mítica que cobriu a face da terra durante 40 dias e 40 noites só se salvando quem estava na barca de Noé, Deus diz: «Não mais alguma criatura será exterminada»! Da parte dele. Porque da nossa parte há uma extinção silenciosa e paulatina de dez mil espécies por ano devido ao estilo consumista de vida que exige cada vez mais recursos.

Deus também escolheu um símbolo para sinalizar a aliança de vida com a criação inteira: o arco-íris.

Voltemos à narrativa do Génesis: «E Deus acrescentou: “Este é o sinal da aliança que faço convosco, com todos os seres vivos que vos rodeiam e com as demais gerações futuras: coloquei o meu arco nas nuvens, para que seja o sinal da aliança entre mim e a Terra”.»

O povo Guji — com quem trabalhei no sul da Etiópia — chama labaassaa Waaqa (cinto de Deus) ao arco-íris. Uma definição linda: o arco-íris recorda o abraço terno, protetor e abençoado de Deus a todo o universo.

Também em tempo de pandemia.

Uma das mensagens de encorajamento global em estação de pandemia é um arco-íris com a legenda «Vai ficar tudo bem». Começou na Itália durante a primeira vaga do novo coronavírus SARS-Cov-2 e tornou-se viral.

Sim! Deus abraça-nos e protege-nos! Está connosco e connosco vive o drama do Covid 19. 

Está connosco através dos operadores de saúde na entrega generosa e sem limites às vítimas do Covid. 

Está connosco através de tantos gestos de solidariedade e de cuidado entre vizinhos, entre mais novos e mais velhos nestes dias de confinamento (fazendo as compras, vendo se estão bem…).

Quando vires um arco-íris lembra-te que Deus te está a abraçar, sempre!

20 de fevereiro de 2021

TENHO UMBIGO!


Os dois irmãos têm uma diferença de idades de cerca de dez anos. São excelentes amigos. O mais velho, provocador, diz ao mais novo:

— Tu foste adotado! Não és meu irmão.

O petiz, de resposta sempre pronta na ponta da língua, retorque:

— Não fui adotado, não! Tenho umbigo.

Pois é: o umbigo é a cicatriz que testemunha a nossa interdependência: não somos independentes, que precisamos uns dos outros, que pertencemos uns aos outros. A cicatriz da nossa fragilidade. Que algumas pessoas gostam de adornar com piercings.

Descrates, o filósofo francês, dobrou-nos sobre o nosso umbigo com o seu aforismo «penso, logo existo». 

Uma filosofia de vida muito diferente da filosofia africana do ubuntu: «eu sou porque nós somos».   

Tudo na primeira pessoa do singular: eu penso; eu existo. Eu vivo por mim próprio e para mim próprio. A base do «euismo», da ditadura do eu, do individualismo narcisista globalizado. 

Mas a cicatriz umbilical permanece no abdómen como uma tatuagem indelével.

A pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 é prova provada de como estamos interdependentes para o bem e para o mal.

Os primeiros casos registaram-se num mercado de Wuhan, na China, há pouco mais de um ano. De lá viajou para a Europa e espalhou-se por todo o mundo com excessão de algumas ilhas. Já contagiou quase 111 milhões de pessoas, matou 2,5 milhões e provocou uma crise social e económica de dimensões globais.

Desde o Iluminismo que iniciamos a longa caminhada de emancipação do nós para o eu. Mas não somos ilhas e por isso não somos felizes. O umbigo lembra-nos isso.

A pandemia está a devolver-nos uns aos outros através de gestos de cuidado e de solidariedade. Porque precisamos uns dos outros. Porque somos uns nos outros. Porque temos umbigo.

17 de fevereiro de 2021

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Começa hoje a quaresma. A palavra tem a raíz no vocábulo latino quadragesima, que significa quadragésimo (dia antes do tríduo pascal).

Na Bíblia,  40 – além de quantidade matemática – significa tempo de preparação: o dilúvio demorou 40 dias; Moisés esteve 40 dias em jejum e isolamento no Monte Sinai para receber a Lei; o povo de Israel vagueou 40 anos pelo deserto para entrar na Terra Prometida; Jesus foi tentado durante 40 dias no deserto para iniciar o ministério do anúncio do Reinado de Deus; o Senhor ressuscitado ensinou os discípulos durante 40 dias antes de regressar ao Pai, a ascensão.

A quaresma é um período de 40 dias, de quarentena. Não em confinamento, mas em escancaramento de coração a Deus, aos outros e ao universo.

A liturgia propõe, através do evangelho para a Quarta-feira de Cinzas, três modos de fazer quaresma: oração, jejum e esmola. Três vacinas para imunizar contra a pandemia do individualismo narcisista globalizado.

A oração põe-nos em modo de repouso no coração de Deus para aprender a viver o sonho do Criador de bem-estar para toda a criação. Jesus exorta: «aprendei de mim que sou manso e humilde de coração».

O jejum, a renúncia voluntária e consciente a algo de que gostamos e/ou precisamos, remete-nos ao essencial da vida. Na cultura do consumismo desenfreado, que está a destruir o planeta, propomo-nos um estilo de vida sóbrio, sustentável. Para além da ritualização do jejum na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa e da abstinência de carne nas sextas-feiras.

A esmola, a partilha do supérfluo e das renúncias, escancara o coração às necessidades dos outros, sobretudo as pessoas mais afetadas pela pandemia do Covid 19. Jejum só para perder peso ou poupar não é jejum!

O Papa Francisco escreve na sua mensagem para a quaresma que «o jejum, a oração e a esmola – tal como são apresentados por Jesus na sua pregação (cf. Mt 6, 1-18) – são as condições para a nossa conversão e sua expressão. O caminho da pobreza e da privação (o jejum), a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido (a esmola) e o diálogo filial com o Pai (a oração) permitem-nos encarnar uma fé sincera, uma esperança viva e uma caridade operosa.»

Jesus propõe que quarentena da quaresma seja vivida em segredo, no oculto para que a recompensa venha do Pai que vê o invisível.

A quaresma, os quarenta dias de preparação para a páscoa do Senhor, é — como diz a segunda leitura da liturgia das cinzas — «o tempo favorável», «o dia da salvação» vivido — na proposta da profecia de Joel — no coração: «Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes, convertei-vos ao SENHOR, vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia.»

Na quarentena da quaresma, mais que ventilar os pulmões, é preciso converter os corações.

A quarentena da quaresma é um caminho de regresso à ternura de Deus, à casa do Pai.

15 de fevereiro de 2021

A ALEGRIA DA MISSÃO


A alegria da missão concretiza-se na fidelidade da resposta dada ao chamamento de Deus. E essa tem que ser uma resposta diária.

A alegria da missão vive-se, também, de momentos duros, dolorosos, mas riquíssimos.

No momento em que vos escrevo, vivem-se momentos de paz na zona Metekel, no oeste da Etiópia. A paz de que vos falo é a paz da ausência de mortos e feridos. Mas, no meu íntimo, desejo uma paz mais difícil: paz no coração de tanta gente que sofreu e sofre! Aqui existem tantos corações feridos…

Nestes dias, eu e o David temos ido com regularidade à esquadra da polícia, onde se encontram vários detidos, a maioria deles sem justificação e alguns deles feridos. Visitamos os detidos, oferecemos água, algum dinheiro para que possam comprar comida e, conjuntamente com a Ir. Nives Bataglia, Irmã Missionária Comboniana e enfermeira, prestamos cuidados médicos aos feridos. Hoje, quando fomos visitar os detidos, recebemos a notícia de que todos os que estavam feridos tinham sido colocados em liberdade. Melhor assim, que possam estar em liberdade junto da sua família.

Como sinal de alguma estabilidade, as escolas começam a reabrir na cidade (por certo que nas aldeias ainda não haverá escola). Este é o terceiro ano consecutivo que os alunos não têm escola durante todo o ano lectivo e a causa não é a pandemia Covid-19, senão os conflitos étnicos. Alguns jovens pedem-nos pequenos trabalhos para que possam comprar cadernos escolares. O trabalho dignifica e conseguir os seus próprios cadernos com o fruto do seu trabalho é muito melhor. O nosso trabalho deverá privilegiar sempre a promoção da dignidade humana.

Sempre que medito sobre como é difícil a muitos jovens aqui, especialmente os Gumuz, obter uma educação digna, sofro, porque lhes quero muito. Estes jovens são o futuro da Etiópia e da sua região. Se não tiverem acesso a uma educação digna, que futuro podemos esperar da Etiópia? Eu que venho de uma região do interior de Portugal, que tinha que levantar-me todos os dias às 6:00 da manhã para poder apanhar o autocarro e chegava quase todos os dias às 19:00, fazendo diariamente mais de 60 quilómetros para poder ter aulas, no ensino secundário, percebo que fui um sortudo comparado com estes jovens sem condições para poder ter um bom aproveitamento escolar e futuro profissional. A vida é dura… Mas é bela.

Obrigado queridos amigos e amigas pela vossa oração e carinho. Obrigado pela vossa partilha material que nos permite partilhar com os detidos, os doentes, os jovens, comprar livros para a biblioteca, etc.

A missão pertence a Deus e nós somos meros instrumentos do Seu Amor. Sem a vossa generosidade, oração e amizade, a minha missão, para a qual fui chamado, não seria completa. É sincero quando vos digo que sois preciosos nesta missão.

Estou longe de vós, mas acompanho a situação do meu país! Rezo por vós, rezo por Portugal e pelo mundo.

Unidos na oração e no Amor de Deus,
Pedro Nascimento 
Leigo Missionário Comboniano 
Etiópia

14 de fevereiro de 2021

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Marcos, no início Evangelho (1, 40-4), conta que um leproso veio ter com Jesus e, ajoelhando-se, pediu: «Se quiseres, podes purificar-me». Jesus, profundamente compadecido, tocou-o com a mão, dizendo: «Quero: fica purificado!». E imediatamente a lepra deixou o homem.

Os judeus — como muitos outros povos — tinham um pavor medonho da lepra. O Livro do Levítico dedica os capítulos 13 e 14 ao modo como lidar com a doença e com as suas vítimas.

No fim do capítulo 13 prescreve: «o leproso atingido por tal afecção deve rasgar as roupas, desalinhar o cabelo, tapar-se até à boca e gritar: 'Impuro!... Impuro!' Enquanto conservar a chaga, será impuro, viverá isolado, e a sua residência será fora do acampamento.»

O sofredor de lepra transgride a lei ao chegar até Jesus, em vez de permanecer à distância para não o contaminar. Acredita que Jesus pode purificá-lo.

A resposta de Jesus representa outra transgressão: comovido até às entranhas, toca-o e cura-o!

Quem toca um doente de lepra fica ritualmente impuro. Mas Jesus não tem nojo nem medo: quer que o homem fique purificado.

O papa Francisco nota na primeira exortação apostólica que escreveu: «Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros».

E continua: «[Jesus] espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo» (Evangelii gaudium, 270).

Depois, Jesus envia o homem ao sacerdote para este lhe passar um atestado de cura e o readmitir à vida comum.

Ele, em vez disso, começou a proclamar incessantemente o milagre que limpou o seu corpo e o restituiu à comunhão — enquanto teve lepra era um excomungado, excluído da vida social e religiosa.

Jesus, por sua vez, teve que deixar a cidade e ir viver para lugares desertos onde as pessoas o encontravam.

Os papeis inverteram-se: homem, curado, volta para a cidade; Jesus, o curador, já não pode entrar abertamente em nenhuma cidade devido à divulgação do acontecido. Jesus nasceu, viveu e morreu fora da cidade, marginalizado.

Finalmente, Jesus toca-nos e cura-nos não para proveito pessoal, mas para a missão: para proclamarmos as maravilhas que ele faz devolvendo-nos uns aos outros.

Jesus  toca e carrega as nossas doenças como proclama a profecia de Isaías: «Na verdade, ele tomou sobre si as nossas doenças, carregou as nossas dores. Nós o reputávamos como um leproso, ferido por Deus e humilhado. Mas foi ferido por causa dos nossos crimes, esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo que nos salva caiu sobre ele, fomos curados pelas suas chagas» (53, 4-5).

11 de fevereiro de 2021

CENTÚRIA

 


Cem apontamentos, cem olhares para a África.

Eis o centésimo texto que escrevo para esta rubrica que nasceu do convite do então diretor de Além-Mar, Manuel Augusto Ferreira, para incluir uma análise mensal da atualidade africana em três mil caracteres, espaços incluídos. Estávamos em finais de 2011 e eu encontrava-me no Sudão do Sul. Era diretor de informação da Cadeia Católica de Rádios (com oito estações nas sete dioceses do país mais uma nos Montes Nuba, no Sudão, em território controlado pelos rebeldes do Exército de Libertação do Povo do Sudão-Norte).

Aceitei o desafio e batizei a rubrica de «África minha». Talvez influenciado pela tradução portuguesa do filme «Out of Africa», inspirado na autobiografia da baronesa dinamarquesa Karen Blixen que viveu no Quénia. Sobretudo, por beber na espiritualidade de São Daniel Comboni, que escreveu que «o primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia» (um dos nomes da África no século XIX) e fundou o Instituto das Missões Africanas, hoje Missionários Combonianos. Cada comboniana, cada comboniano é um africanófilo por vocação. E, no meu, sentido de pertença ao berço da humanidade.

Foi em Ceuta que respirei pela primeira vez o ar africano. Acompanhei duas pessoas amigas numa viagem de compras ao enclave espanhol sem impostos no norte de África. Mais tarde, passei três semanas no norte de Moçambique, em plena guerra civil, e na África do Sul, para visitar refugiados moçambicanos que enfrentavam as feras do Parque de Kruger para fugirem à guerra e à fome no seu pais. Na Etiópia, partilhei oito lindos anos com o povo Guji. No Sudão do Sul vivi mais sete. E visitei os países vizinhos: Egito, Sudão, Quénia e Uganda. Também estive em trabalho na Guiné-Bissau.

Sinto-me em casa na África, no meio das suas gentes e dos seus lugares: adoro «perder-me» nos seus mercados tão coloridos e de cheiros fortes, fotografar as pessoas e paisagens, aprender mais e mais sobre a sua realidade passada e presente. Tenho saudades dos seus rituais da vida. Das liturgias festivas. Dos horizontes vastos e luminosos. Das florestas cheias de mistério. Dos pores-do-sol dramáticos. Dos mergulhos nas águas cálidas do Nilo Branco ou no lençol acastanhado do Lago Langano (no sul da Etiópia). Das noites mágicas de lua cheia com as suas batucadas e cantares.

O primeiro texto apareceu precisamente há nove anos no número de Fevereiro de 2012 da Além-Mar. Chamei-lhe «Pulmão da humanidade», inspirado na reflexão que o Papa Bento XVI fez na Exortação Africae munus (O serviço da África), o documento pontifício que saiu do segundo sínodo sobre a Igreja em África. O Papa afirma que o continente representa um imenso «pulmão» espiritual para toda uma humanidade que atravessa actualmente uma crise de fé e de esperança.

A partir daí — e sempre com a preocupação de combater o tom miserabilista com que muitos órgãos informação e analistas teimam em apresentar um continente cheio de vida, de boas notícias e de inúmeras riquezas naturais e culturais com os seus mais de 1,3 milhões de habitantes à cabeça — tenho abordado a África a partir da atualidade, dos seus avanços e dos demónios a exorcizar.

Obriguei-me a ir além da África de leste e austral e ter todo o continente debaixo do meu radar. A partir do observatório privilegiado do Sudão do Sul era mais fácil.

Houve textos que saíram num jorro de palavras e emoções do meu coração africano. A maioria, contudo, exigiu investigação e reflexão para apresentar o tema escolhido para o mês com profundidade contida.

Cada apontamento é o meu jeito de dizer «Amo-te, África minha!»

10 de fevereiro de 2021

ENCONTRAR JESUS PELAS VIELAS DA FAVELA



Cuidado para não abandonar o mandamento de Deus para seguir as tradições dos homens (Mc 7,7)

Em todas as dioceses por onde passo, sempre sugiro aos bispos e aos/às provinciais que insiram no percurso formativo para a vida sacerdotal e religiosa experiências em Pastorais de fronteira como a Pastoral Carcerária, da Criança, do Menor, de Rua e da Sobriedade. Falo por experiência pessoal. Estes serviços foram fundamentais na minha experiência de fé e no meu caminho vocacional.

Quando saí da Itália em 1985 depois da primeira profissão religiosa e ainda estudante de teologia e vim para o Brasil, não imaginava que ia encontrar Jesus pelas vielas da favela, nos porões das delegacias, em masmorras abarrotadas de presos em condições desumanas e nas ruas da amargura. Foi nessa Galileia que Jesus marcou o encontro comigo.

Não dá para esquecer o primeiro contato com o Carandiru, considerado na época um dos maiores presídios do mundo com mais de 6.500 apenados. Era um domingo de dezembro. Faltavam poucos dias para o Natal. Decidi visitar alguns jovens da favela do Parque santa Madalena onde prestava serviço pastoral como seminarista. Fui com Valdênia, uma jovem da nossa paróquia que coordenava a Pastoral do Menor e já vinha atuando naquela comunidade. Seu testemunho foi decisivo em minha vida. Ao chegar ao presídio, tive que alugar um paletó. Essa peça de roupa era obrigatória para os visitantes. A entrada não foi fácil. Depois da identificação no guiché que tinha a primeira letra do meu nome, tive que passar por vários controles de segurança. O pior de todos foi quando, junto com mais 9 homens, fui obrigado a entrar no quartinho da revista íntima, encostar na parede, tirar toda a roupa, levantar os genitais e fazer 10 flexões. Tentei evitar isso me identificando como religioso, mas o guarda me mandou calar a boca com uma frase lapidária: “Aqui não tem nada disso. A religião é a gente que faz. É tudo mundo igual!”

Demorei dias para digerir tamanha humilhação. Por um instante senti na pele o tratamento vexatório imposto aos familiares dos apenados.

Mas aos poucos fui lembrando da Carta aos Filipenses, onde Paulo diz que Jesus se espoliou para se fazer servo. Depois recordei que Ele fez questão de entrar na fila, no último lugar, para receber o batismo de João, logo Ele que era como nós exceto no pecado, enquanto eu era como todas aquelas pessoas incluindo o pecado. Enfim pensei na cena da Sua Paixão quando foi espoliado para ser torturado e pregado na Cruz. Então entendi que aquela espoliação fora minha verdadeira vestição. Aquele ato de tirar a roupa à força e de perder os privilégios que achava de ter alcançado por ser “religioso”, longe das luzes, dos enfeites, dos cantos e da solenidade da celebração dos primeiros votos na Itália, tornara-se o rito culminante da celebração da profissão religiosa.

Aquele foi o dia em que Deus me consagrou e iniciou comigo a dura — pelas minhas fragilidades, mas rica pela sua Graça —, jornada de discipulado e apostolado com Jesus de Nazaré. Fui procurar o saudoso padre Chico Reardon, coordenador da Pastoral Carcerária, que me acolheu de braços abertos e, primeiramente, me confiou o pavilhão 8 do Carandiru, mas depois me pediu de servir as delegacias da Zona Leste abarrotadas de presos. Com padre Júlio Lancellotti e com a Valdênia começamos também a marcar presença na Febem, sobretudo no quadrilátero do Belém, um verdadeiro parque dos horrores.

Foi como colocar o pé na areia movediça. A cada dia fui descendo naquele mundo com mais profundidade. A partir daquele momento, assumi a Pastoral do Menor, a Pastoral Carcerária e as periferias geográficas e existenciais como prioridades na minha vida. Estou nelas até agora e não me arrependo.

Por incrível que pareça, é neste mundo desumanizado e desumanizante que, a cada dia que passa, a cada encontro realizado e a cada experiência vivenciada me torno mais gente e mais cristão. Quem não passa por isso não sabe o que perde. Como gostaria que outras pessoas tivessem a oportunidade de experimentar essa Graça.

O primeiro motivo de edificação é o testemunho dos/as agentes de Pastoral. Quantos leigos e leigas, quase sempre sem nenhum apoio, criminalizados por vastos setores da sociedade e “marginalizados/as” dentro de comunidades muito preocupadas com as “tradições”, toda semana visitam os sistemas penitenciário e socioeducativo para partilhar com amor o Evangelho de Jesus. O que me impressiona é ver que muitos/as voluntários/as são pessoas de idade que representam a “velha guarda” de uma Igreja que fica fiel à Tradição de Jesus de Nazaré, o Cristo vivo que entrega a vida para todos, sobretudo para os mais pobres e abandonados.

Também a convivência com os/as apenados/as é constante motivo de enriquecimento e crescimento humano e cristão. O contato com eles e elas desencadeia um longo processo de conversão do coração à luz da misericórdia que, antes de qualquer coisa, ilumina os olhos para que aprendam a enxergar além das aparências. Só assim é possível descobrir que há luz até nos porões do fundo do poço.

Existem tesouros escondidos atrás de espessas camadas de feridas humanas, como também muita miséria humana feita de preconceitos e perversidades atrás de um aparente estado de saúde social, legal, moral e religiosa. Quem desce nos porões das cadeias chega à conclusão de que estamos todos/as precisando de conversão.

A complexidade da realidade desmistifica a autossuficiência. As decepções e frustrações fortalecem a resiliência. As perseguições são um antídoto contra o narcisismo. A pobreza de meios vai esvaziando a mania de grandeza. A incompreensão e o isolamento enrobustecem a solidez das motivações. A desconfiança aprimora o testemunho. A escuta da história de vida das pessoas, a análise de sua proveniência, a sua condição económica, a cor de sua pele e a idade nos colocam diante da iniquidade do sistema que rege a sociedade.

O contato direto com torturas e violações aos direitos humanos questiona as consciências, intensifica a indignação e alimenta o compromisso por justiça. A sobriedade do altar e a essencialidade das vestes litúrgicas aproxima ainda mais à cena onde se consome a paixão de Cristo cujo Mistério é celebrado. A dura realidade carcerária desmonta privilégios, doutrinas e tradições, sobretudo aquelas que vêm carregadas de ódio e preconceito. O que sobra e prevalece é o Mandamento de Deus. É só por Amor que é possível prestar esse serviço a vida toda como fazem muitas pessoas empenhadas nesta frente.

Passar por toda essa “espoliação” torna-se decisivo no itinerário de formação para a vida religiosa e sacerdotal. Com certeza teríamos mais gente adotando o avental do serviço com hábito religioso e a vivência do Mandamento do Amor como a única Tradição que merece ser defendida e vivenciada a qualquer custo. 

P. Xavier Paolillo, missionário comboniano