30 de junho de 2020

PRESENTES NA NOVA NORMALIDADE



XXX ASSEMBLEIA GERAL DA CIRP 
Comunicado final 

1. A XXX Assembleia Geral da CIRP decorreu no Centro Paulo VI, em Fátima, no dia 29 de junho de 2020. Devido à situação de pandemia do coronavírus Covid-19, a Assembleia reduziu o tempo dos trabalhos a um dia e foi exclusivamente para superioras e superiores maiores ou equiparados, consistindo o seu programa fundamentalmente na eleição da nova direção.

2. Na sua palavra de abertura, o presidente da CIRP, Padre José da Silva Vieira, começou por saudar os presentes, referindo-se à dura experiência de confinamento e distanciamento social como, igualmente, um tempo de graça, um tempo kairológico, onde se terá distendido a atenção a Deus e aos outros; vivência em sobriedade feliz. A Internet, por seu lado, revelou-se nas suas características de meio de relação e evangelização. Cortámos no espaço e ganhámos no tempo, sentindo a presença do Ressuscitado numa Páscoa em confinamento.

Expressou solidariedade com os mais de 10 milhões de infetados e apelou ao silêncio orante pelas vítimas. Congratulou-se com os gestos de entrega e comunhão por parte de muitos voluntários.

Agradeceu a colaboração ao longo do triénio e invocou a bênção de S. Pedro e S. Paulo sobre cada uma e cada um, especialmente sobre aqueles que irão constituir a direção ao longo dos tempos difíceis de pós-pandemia.

3. Foram dadas algumas indicações específicas com vista ao discernimento para eleição da direção e seguiu-se o trabalho de grupos, cujas linhas de ação foram sintetizadas do seguinte modo:
  • Dar atenção aos sinais destes tempos imprevisíveis, conjugando maleabilidade e firmeza;
  • Revalorizar a ecologia integral, na linha da Laudato Si’;
  • Testemunhar a Vida Consagrada para o despertar de Deus na juventude, tendo em vista as Jornadas Mundiais da Juventude, em 2023;
  • Reforçar os meios de comunicação social e as plataformas digitais;
  • Valorizar a internacionalidade e a intercongregacionalidade;
  • Que as consagradas e os consagrados se coloquem na linha da frente diante da nova normalidade. 

4. A tarde iniciou com a sessão eletiva. A nova direção da CIRP ficou assim constituída:
Presidente: Irmã Maria da Graça Alves Guedes (Religiosas do Amor de Deus);
Vice-Presidente: Padre Pedro Alexandre Simões Gouveia Fernandes (Missionários Espiritanos);
Vogais: Irmã Natália Maria Areias da Rocha (Aliança de Santa Maria), Padre Adelino Ascenso (Sociedade Missionária da Boa Nova) e Irmã Alzira Rodrigues Ferreira (Dominicanas de Santa Catarina de Sena). Agradecemos à equipa cessante o empenho demonstrado ao longo destes últimos anos e expressamos igualmente a nossa gratidão pela disponibilidade daqueles que agora iniciam, desejando bom trabalho na orientação desta barca de consagradas e consagrados de Portugal.

Procedeu-se à nomeação do Conselho Fiscal, que ficou assim constituído:
Presidente: Irmã Maria da Conceição Oliveira Fernandes (Irmãs de São João Baptista e de Maria Rainha);
Secretário: Padre Tiago Martinho Alberto (Agostinhos)
Vogal: Irmã Maria de Fátima Machado (Irmãs de São José de Cluny).

5. Foram elencados alguns assuntos e informações da vida da CIRP: Colaboração da CIRP para a JMJ, Lisboa, 2023; Assembleia Geral da UCESM; ponto da situação sobre História Global da Missionação.

6. A Assembleia Geral da CIRP saúda o novo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas Carvalho, bispo de Setúbal, e o Padre Manuel Joaquim Gomes Barbosa, reconduzido no cargo de secretário da mesma CEP.

7. Uma palavra de agradecimento aos profissionais de saúde e de segurança pelo seu esforço relativo ao controlo da Covid-19 e à proteção dos infetados.

8. Reforçamos a nossa solidariedade para com aquelas e aqueles que sentiram a solidão originada pela impossibilidade de visita dos entes queridos hospitalizados, assim como destes de a não poderem receber, forçando à dolorosa situação de lágrimas adiadas. Que estes tempos difíceis nos ajudem a valorizar os pequenos gestos e a encontrar neles serenidade esperançosa.
Fátima, 29 de junho de 2020

29 de junho de 2020

TEMPO DE PANDEMIA, ESTAÇÃO DE GRAÇA


Estamos a viver uma estação extraordinária, sem precedentes, uma conjuntura imprevista de pandemia global provocada pelo novo coronavírus, o SARS-COV-2.

Cronologicamente, foram seis semanas de confinamento e três meses de distanciamento social, máscaras e álcool-gel com avanços felizes e recuos arreliadores no combate ao Covid 19.

Para muitos dos superiores maiores este tem sido um tempo de preocupações e cuidados acrescidos devido a surtos do vírus em comunidades e/ou lares da terceira idade e afins.

Todavia, a estação que estamos a viver é sobretudo um kairós, tempo de graça.

«O Senhor é bom para com todos», reza o Salmo 145, 9. Em todas as circunstâncias. Também em tempo de pandemia global.

Durante o confinamento forçado fomos devolvidos ao aconchego da Trindade e da comunidade, o espaço vital essencial da nossa consagração.

Para muitos de nós tem sido um mininoviciado com mais tempo para Deus, para os outros e para nós próprios, ajudados pelas tecnologias da comunicação.

Durante o confinamento vivemos com o essencial numa sobriedade feliz. Desaceleramos. Fizemos tempo em vez de andar a correr contra o tempo. A natureza agradeceu a redução da poluição.

Exploramos a internet como campo e meio para louvar o Senhor, celebrar e evangelizar. Consagradas e consagrados deram um grande contributo para a Igreja no digital durante o tempo de confinamento. Uma experiência que importa continuar, melhorar e aprofundar. Os nativos do digital agradecem!

Descobrimos as reuniões telemáticas, novos programas, funcionalidades, novas palavras. Cortamos na quilometragem e ganhamos no tempo. Reduzimos a pegada do carbono.

Nesta estação de pandemia, de medo, de doença e de morte Deus caminha e sofre connosco através do Espírito do Ressuscitado que este ano celebrou a Páscoa em confinamento. Connosco e como nós. Ele é Emanuel das horas boas e das horas más. O Emanuel, sempre!

Estamos solidários com os mais de dez milhões de infetados pelo SARS-COV-2 e com as vítimas colaterais da pandemia, sobretudo quem perdeu entes queridos sem os poder chorar devidamente, e o ganha-pão quotidiano. Para eles pedimos com Jesus o afeto e o pão nosso de cada dia.

Queremos lembrar num momento de silêncio as consagradas e consagrados que faleceram vítimas do Covid-19, parte dos cerca de 500 mil mortos nos cinco continentes.

Bendizemos o bom Deus pelo serviço generoso e dedicado do pessoal de saúde entre os quais se encontram coirmãs e coirmãos nossos. Pelos gestos de solidariedade de tantos voluntários, anónimos na maioria. Pelos novos caminhos de comunhão que exploramos: nos momentos de prova, aparece o melhor da humana condição.

28 de junho de 2020

A ARTE DO ACOLHER

Jesus, na parte final do seu Discurso Missionário (Mateus 10, 37-42) usa seis vezes o verbo acolher.

É um convite claro a aprender a conjugar o verbo acolher:
  • Acolhê-lo como o primeiro e maior amor da nossa vida, a nascente do amor aos outros e de outros amores;
  • Acolhê-lo na cruz de cada dia, na oferta da vida aos outros como caminho de salvação;
  • Acolhê-lo naqueles com que Ele se identifica: os seus missionários, os profetas e os justos, os discípulos mais pequeninos.
A Bíblia registas muitas experiências da bênção da hospitalidade: Sara e Abraão tiveram Isaac, porque acolheram os três peregrinos; o casal de Sunam tive um filho, porque acolheu o profeta Eliseu.

Deus também toma a forma de hóspede, encarna nos forasteiros, nos migrantes, nos pobres.

No caldo cultural do individualismo narcisista globalizado em que vivemos urge recuperar a arte do acolher. Porque precisamos uns dos outros, pertencemo-nos uns aos outros.

A pandemia global prova como estamos tão interdependentes: um novo coronavírus que surgiu num remoto mercado chinês de animais selvagens vivos alastrou-se ao mundo inteiro e já contaminou dez milhões de pessoas e matou quinhentas mil.

Precisamos uns dos outros para nos protegermos e para nos cuidarmos: máscaras, álcool gel e distância social são parte da arte de acolher.

Finalmente, temos que reaprender a acolher Deus.

O Salmo 89 convida-nos a caminhar à luz do rosto do Senhor. Usa três substantivos para definir a Deus: misericórdia, fidelidade, bondade.

Temos muitas ideias feitas de Deus. São produto da educação e das experiências de vida – que temos de revisitar e converter para acolher o Deus da Vida.

Deus é bom e só nos abençoa com a sua bondade. O que acontece de maldade na nossa vida não vem de Deus, mas das circunstâncias do nosso quotidiano e do fundo do nosso coração.

O Senhor encheu-nos da sua bondade, porque «a terra está cheia da sua bondade» (Salmo 33, 5).

Aprender a conjugar o verbo acolher é também apropriar-se a bondade que está no nosso coração, reconhecê-la e cumpri-la através do serviço amoroso a quem precisa. Assim somos abençoados.

19 de junho de 2020

FORMAR-SE É CONFIGURAR-SE COM O CORAÇÃO DE JESUS BOM PASTOR


Mensagem por ocasião da Solenidade do Sagrado Coração de Jesus 

«Qual é o teu nome? Vai para casa, para junto dos teus, e anuncia-lhes o que o Senhor, na sua misericórdia, fez por ti.» (Marcos 6,9ss)

«No mistério do Coração de Cristo o comboniano contempla, na sua expressão mais plena, as atitudes interiores de Cristo e assume-as: a sua doação incondicional ao Pai, a universalidade do seu amor pelo mundo e o seu comprometimento com a dor e com a pobreza dos homens.» (RV 3.2)

«A formação deve operar prioritariamente sobre as motivações interiores e deve educar para enfrentar com criatividade, competência e flexibilidade os desafios que emergem das novas situações.» (Ratio Fundamentalis 113)

Caríssimos confrades,

Em comunhão com toda a Humanidade, celebramos este ano a solenidade do Sagrado Coração de Jesus num contexto particular, marcado pela pandemia covid-19, que continua a causar tanta tragédia e tanta dor no mundo. Com confiança em Deus, dirigimos a todo o Instituto o convite a contemplar o Coração de Jesus, abrindo os nossos corações ao mistério do seu amor, para que este amor possa tocar-nos profundamente, libertar-nos de todas as forças que nos mantêm fechados ou isolados e ajudar-nos a sermos fiéis à nossa consagração e missão.

Como discípulos missionários entramos na escola do Coração de Jesus que, na sua humanidade, nos revela o coração de Deus – o Coração do Bom Pastor que sai, se aproxima dos pobres, dos sofredores e dos marginalizados, convidando-os a sair do seu isolamento, da sua incomunicabilidade, habilitando-os para uma nova comunicação e para um encontro de qualidade com Deus, com os outros e com a criação. Trata-se de participar no amor que sempre se comunica, sempre comunica e que, se recebido pelo amado, sempre dá vida, faz crescer e educa no sentido do latim educere, que significa fazer emergir o melhor que há no ser humano.

É importante notar que este encontro com Cristo põe em movimento um processo de conversão, de formação e transformação ou, ainda melhor, de “Cristificação”, que dura toda a vida e que deve tocar o coração. O conteúdo da nossa formação inicial e permanente é a santidade e a transformação da pessoa em Jesus Cristo pela dupla orientação complementar da sequela e da imitatio Christi. Assim, converter-se em Cristo é para nós um privilégio da misericórdia e graça de Deus e, ao mesmo tempo, uma responsabilidade que compromete na coerência de vida com a pergunta insistente e incessante: «Que teriam feito Cristo e Comboni nesta minha situação histórica?».

É Cristo, com o seu coração misericordioso, que toma a iniciativa e vem ao nosso encontro perguntando a cada um de nós «Qual é o teu nome?», como fez com o endemoniado na passagem evangélica acima citada. Conhecer o nome de alguém, segundo a mentalidade hebraica, significa entrar no mais profundo da sua realidade pessoal. Esta pergunta mostra o seu interesse por nós como pessoas amadas por Deus, e ajuda-nos, por um lado, a fazer uma releitura do que temos em nós mesmos e à nossa volta, para descobrir o que levamos no coração, quem realmente somos, e, por outro lado, manifesta-nos o Coração de Cristo cheio de amor, compaixão, acolhimento e ternura.

Para os Missionários Combonianos do Coração de Jesus – seja no caminho de formação inicial ou de formação permanente – cultivar, aprofundar, contextualizar a nossa espiritualidade do Coração de Jesus, permanece um empenho pessoal e do Instituto, para que toda a nossa vida possa aderir ao “programa” contido no nosso nome.

É Cristo que, com o seu coração acolhedor, mostra plena confiança no outro, seja qual for a situação em que se encontre, o valoriza e o restitui à comunidade, à sua casa, símbolo do lugar da esperança, da cordialidade e do calor humano. A vida é feita de comunicação e relações de qualidade. São Daniel Comboni fala do Instituto «como Cenáculo de Apóstolos, um ponto luminoso que manda outros tantos raios que resplandecem, aquecem, e juntos revelam a natureza do Centro do qual provêm» (cf. Escritos 2648). Fazemos votos que o Coração de Jesus seja, verdadeiramente, o centro de comunicação entre todos os confrades e que possamos fazer da comunicação fraterna um instrumento para construir pontes, para unir e partilhar a beleza de sermos irmãos em missão neste tempo marcado por contrastes, divisão e indiferença.

Por fim, reflectindo este ano sobre o tema da ministerialidade no Instituto, rezemos para que a contemplação do Coração de Jesus possa ajudar-nos a viver a missão, não superficialmente, como um papel a desempenhar, mas como serviço ao Reino de Deus e como expressão de um processo de kénosis e descentramento.

Boa Solenidade do Sagrado Coração de Jesus a todos vós!

O Secretário Geral da Formação e o Conselho Geral

MISSÃO DO CORAÇÃO





O profeta Jeremias, no desassossego das suas buscas incessantes, faz uma observação franca: «Nada mais enganador que o coração tantas vezes perverso». E coloca uma questão inquietante: «Quem o pode conhecer?». Também giza uma resposta: «Eu, o Senhor, penetro os corações e sondo as entranhas» (Jeremias 17, 9-10).

É nesse espaço afetivo do coração e no recôndito mais obscuro das entranhas que muito da nossa vida se decide e joga: no entender da Bíblia, pensamos com o coração e amamos com as entranhas.

Nas buscas essenciais e existenciais de sentido e de significado temos de voltar ao Senhor da Vida para as respostas que não nos satisfazem ou escapam.

Entendemos o que se passa no segredo do nosso coração ao contemplar o Coração do Bom Pastor, um coração trespassado pela lança, aberto, nascente de graça e oásis de descanso.

Foi assim que São Daniel Comboni viveu a espiritualidade do Coração de Jesus. «Sim, poderá cair o mundo; mas eu, enquanto o Coração de Jesus me assistir com a sua graça, permanecerei firme e inamovível no meu posto e morrerei no campo de batalha» (Escritos 5282), escreve.

O Coração trespassado do Bom Pastor é a fonte da força e criatividade para realizarmos o serviço missionário, mais que técnicas e tecnologias.

Esse Coração amoroso é também o conforto e o descanso, o colinho e o respiro, o consolo de que precisamos.

A uma pessoa amiga Comboni recomenda: «Diga a Augusto e a Maria que se lancem aos pés de Jesus Cristo; que se escondam dentro do Coração de Jesus Cristo e aí, nessa fonte inesgotável de conforto, poderão encontrar consolo» (Escritos 2833).

Estas duas frases alavancam a espiritualidade comboniana: beber do Coração Trespassado do Bom Pastor a graça e a inspiração para continuar o serviço missionário ao qual o Senhor nos chamou e encontrar n’Ele o respiro que precisamos para reabraçar o ministério de cada dia.

A contemplação do coração de Cristo é também o método mais eficaz para o processo de cristificação que iniciamos com o nosso batismo e concluiremos com a páscoa da vida eterna.

Jesus desafia-nos: «Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas vidas» (Mateus 11, 29.

Contemplar o Coração de Jesus que palpita de amor por cada pessoa, propondo a mansidão e a humildade como os carris sobre os quais assenta a viagem da nossa vida é parte da formação contínua para o serviço missionário em qualquer estação de vida ou de geografia.

O amor é essencial nesse serviço. Comboni quer-nos santos e capazes. E é o amor que nos capacita; não é o paradigma tecnológico (Escritos 6655).

Paulo recorda no imenso e intenso cântico do amor no capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios que «ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me vale» (versículo 3). Sem coração não há santidade, sem amor não há missão.

É nesta linha que os bispos portugueses descrevem a missão como um ato cordial. Escreveram na Nota pastoral para o Ano Missionário que «do encontro com a Pessoa de Jesus Cristo nasce a Missão que não se baseia em ideias nem em territórios, mas “parte do coração” e dirige-se ao coração, uma vez que são “os corações os verdadeiros destinatários da atividade missionária do Povo de Deus”».

Na espiritualidade comboniana, esse amor fontal, total, final, brutal aprende-se da cruz: «Com a cruz, que é uma sublime efusão da caridade do Coração de Jesus, tornamo-nos poderosos» (Escritos 1735) – escreve o Fundador.

Ele grafou palavras que são profecia para os dias de hoje. Afirma: «firme na convicção de que de toda esta tormenta o Sacratíssimo Coração de Jesus saberá tirar grande bem em favor da santa obra para a redenção da Nigrícia e de que o meu querido Vicariato, depois de tão duríssimas provas, que quase me custaram a vida, ganhará novo vigor e adquirirá mais estável fundamento, à imagem da Igreja, que da perseguição ressurge mais forte e mais fecunda em conversões e em virtudes heroicas» (Escritos 4290).

Na memória ressoam as palavras de Paulo aos cristãos de Roma: «sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados de acordo com o seu desígnio» (Romanos 8, 28). Na economia da graça não há desperdícios, tudo é reciclado, transformado em bondade. Até o pecado! E muitas vezes não sabemos que fazer com o nosso próprio pecado. Basta entregá-lo ao Grande Reciclador.

Ao celebrar o Coração de Jesus, somos chamados a fixar o olhar e a afeição n’Aquele que é o nosso Mestre: «O Sagrado Coração de Jesus palpitou também pelos povos negros da África Central e Jesus Cristo morreu igualmente pelos Africanos. Jesus Cristo, o Bom Pastor, acolherá também a África Central dentro do seu redil. E o missionário apostólico não pode percorrer senão o caminho da cruz do divino Mestre, semeada de espinhos e fadigas de todo o género» (Escritos 5647).

O Coração Trespassado do Bom Pastor é o marca-passo que precisamos para as nossas arritmias. Comboni escreve na introdução da quarta edição do Plano para a Regeneração da África: o católico «levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana, sentiu que o seu coração palpitava mais fortemente; e uma força divina pareceu empurrá-lo para aquelas bárbaras terras, para apertar entre os seus braços e dar um ósculo de paz e de amor àqueles infelizes irmãos seus» (Escritos 2742).

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus surge como resposta ao otimismo excessivo do Iluminismo que proclama que o Homem se basta a si mesmo e o pessimismo obsessivo do Jansenismo que quer proteger Deus do nosso pecado colocando-o atrás das grades, nas igrejas.

O racionalismo iluminista consagra o aforismo cartesiano «penso, logo existo» fechando a pessoa no individualismo racional. É o domínio da razão sobre o coração, do eu sobre o nós. A espiritualidade do Coração de Cristo devolve o coração à humanidade no processo de conversão – metanoia – que nos convida a ir além da razão.

Aliás, o coração é o lugar da conversão como reza o Salmo 85. É também o lugar de «uma fonte de água viva que jorra para a vida eterna» (João 4, 14) – como Jesus explicou à Samaritana. A conversão pode ser descrita como um exercício artesanal, paciente do jardineiro que cuida da surgente da água.

Etty Hillesum, a mística judia holandesa que foi executada em Auschwitz, explica-o no seu diário: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo».

Finalmente, a devoção ao Coração Trespassado do Bom Pastor devolve-nos uns aos outros, porque, como Comboni intuiu, é no Coração de Jesus que nos comunicamos e comungamos uns aos outros: «O Coração de Jesus seja o nosso centro de comunicação» (Escritos 4764).

O Coração de Cristo é o ambiente alternativo à internet sem factos alternativos, notícias falsas nem campanhas de desinformação. É a central onde uma comunicação cordial e profunda é possível através da partilha da vida e da consagração, a comunicação que ansiamos, a partilha que nem sempre logramos para sermos verdadeiro cenáculo de apóstolos.

14 de junho de 2020

EM MISSÃO, SEMPRE


De volta aos domingos do tempo comum, depois de celebrar o tempo central da nossa fé – o mistério pascal de Jesus – a liturgia devolve-nos à missão com a leitura de Mateus 9,36 – 10,8. A missão é a essência da vida cristã.

Mateus conta que o envio dos Doze em missão tem origem no amor entranhado de Jesus que sente compaixão do povo que o segue como ovelhas sem pastor.

Hoje, os meios de comunicação social transformam o sofrimento em espetáculo, inundam-nos com imagens e histórias de sofrimento e afetam a nossa capacidade de empatia com os que sofrem.

Somos cristãos para partilhar a compaixão de Jesus, para sentir empatia com as alegrias e tristezas, as esperanças e o desespero das pessoas de hoje. Vamos reclamar a capacidade da compaixão.

A primeira expressão da compaixão: pedir ao Senhor da seara que envie operários para a sua seara, porque «a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos».

Temos de pedir ao Senhor que continue a chamar jovens, raparigas e rapazes, dispostos a fazer a experiência da compaixão do Senhor por eles e pelo mundo para partirem e a partilharem com os deserdados de hoje.

Dois terços da humanidade não conhecem Deus como Papá amoroso e Jesus, o Vivente, como irmão maior que deu a vida por todos para que tenhamos uma vida cheia.

Entre os Doze havia de tudo: Pedro, o fanfarrão que tanto promete ir com o Senhor até à morte como o nega; Tiago e João, dois irmãos a quem Jesus chama filhos do trovão, porque têm o fusível curto: quem mandar fogo do céu sobre a aldeia samaritana que recusou acolhê-los porque iam para Jerusalém.

Há ainda Filipe, um homem com nome grego, quiçá um judeu da diáspora; Mateus, cobrador de impostos; Simão, um revolucionário violento; Iscariotes, de Keriot, ou mentiroso, ou sicário.

E estamos cada um de nós: com nome próprio, histórias únicas… A todos Jesus envia a partilhar o Evangelho. Somos missionários pelo batismo, participamos da missão de Deus; não somos um clube fechado de gente preocupada como a própria salvação. Somos luz, sal e fermento do mundo: temos que nos misturar e diluir no mundo.

Jesus ensina-nos uma série de imperativos, os verbos com os quais conjugamos a gramática da missão: ide, proclamai, curai, ressuscitai, sarai, expulsai.

Primeiro é preciso sair da zona de conforto: ide!

Depois vem a proclamação do Reinado de Deus, que está dentro de nós, acompanhada por uma série de atos libertadores que testemunham a força de Deus a trabalhar entre nós na luta contra o mal, contra a morte. É pelo dedo de Deus que libertamos as pessoas.

A missão faz-se através do anúncio e através de gestos de solidariedade e promoção humana.

Finalmente, a gratuidade: «recebestes de graça, dai de graça» ou «Recebestes como dom, dai como dom!». O Evangelho, a fé são dons de Deus, dons de graça a partilhar.

A missão de Jesus começa por ser local: «ide às ovelhas perdidas da casa de Israel». Depois da sua ressurreição, o Senhor tem autoridade no céu e na terra, a missão é global: ide a todos os povos, a todas as nações.

Esta é a nossa missão, hoje.

Rezemos pelas missionárias e missionários em situações complicadas; rezemos pelos jovens para que tenham a coragem de dizer sim ao envio do Senhor: o serviço missionário é uma forma de vida que nos faz felizes.

11 de junho de 2020

PÃO PARA O CAMINHO


Celebramos a solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo há 756 anos (com nomes diferentes) para sublinhar o lugar único da Eucaristia na vida do povo cristão. A celebração foi criada pelo Papa Urbano IV em tempos de crise sobre a presença real de Jesus no Sacramento do Altar. 

O Papa Francisco sublinha na exortação apostólica Querida Amazónia duas afirmações fundamentais sobre a Eucaristia: ela é fonte e cume de toda a vida cristã (nº 88, recordando o Concílio Ecuménico Vaticano II que afirma que «a Eucaristia aparece como fonte e coroa de toda a evangelização») e que é a Eucaristia que faz a Igreja (nº 89).

Estas duas afirmações atestam sobre a primazia essencial da Eucaristia na vida cristã: vivemos da Eucaristia e vivemos para a Eucaristia. Infelizmente, devido a uma certa esquizofrenia doutrinal há muita gente barrada desta fonte e desta meta, porque não há ministros ordenados solteiros suficientes ou porque vivem muitas pessoas em situações irregulares.

Há ainda aqueles que decidem autoexcluir-se do banquete que o Senhor prepara com o seu próprio corpo e sangue para o seu povo.

A participação na Eucaristia não é uma devoção opcional. Sentar-se à mesa da Palavra e do Pão é um ato essencial para a vida da comunidade que se reúne cada domingo para fazer memória da Páscoa do Senhor e para se tornar cada vez mais seu corpo aqui e agora.

«A Igreja vive da Eucaristia», escreveu São João Paulo II.

Moisés, num dos três grandes discursos de despedida do outro lado do Rio Jordão, diz ao povo para recordar o êxodo de 40 anos através do deserto.

Deus queria conhecer o íntimo do seu coração e alimentou-os com o maná desconhecido «para te fazer compreender que o homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca do Senhor».

No Evangelho, Jesus autoapresenta-se como o pão vivo descido do céu. Jesus tinha saciado uma multidão de vários milhares de pessoas com cinco pães de cevada – o pão dos pobres – e dois pequenos peixes que foram partilhados por um rapazito.

Pão e circo são votos garantidos. As pessoas, saciadas, queriam fazer Jesus rei. Ele retirou-se sozinho para um monte e depois regressou com os discípulos de barco a Cafarnaum.

As pessoas foram à procura de Jesus. Ele faz então o grande discurso sobre o pão da vida.

Jesus diz: «O pão que Eu hei de dar é a minha carne, que Eu darei para a vida do mundo».

Jesus explica assim o seu mistério pascal que recordamos e atualizamos em cada Eucaristia que celebramos: Ele oferece-se por cada um de nós.

As pessoas puseram-se a discutir as palavras de Jesus: «Como pode Ele dar-nos a sua carne a comer?». Não somos canibais…

A resposta de Jesus não deixa espaço para dúvidas: para termos a vida eterna em nós, para sermos ressuscitados temos de comer a carne do Filho do Homem e beber o seu sangue.

Através desse alimento verdadeiro permanecemos no Senhor, Ele em nós e viveremos por Ele; a carne e sangue do Senhor são o verdadeiro pão do Céu para vivermos para sempre, para vivermos do e com o Vivente.

A vida eterna que o corpo e sangue de Jesus alimentam não é um tempo futuro: já está em construção aqui e agora. Precisamos de comungar Jesus para sermos como Ele, para podermos viver o seu Evangelho no dia-a-dia.

O alimento que ingerimos é assimilado pelo nosso organismo para se transformar em energia. Quando comungamos o corpo e sangue do Senhor, assimilamo-lo em nós – a sua vida e o seu evangelho, os seus gestos – e temos a energia para viver o amor e a bondade ao seu jeito.

O Papa Francisco escreveu na exortação A alegria do Evangelho que «a Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos» (nº 47). Repetiu-o diversas vezes.

Construímos uma teologia da Eucaristia que afasta mais do que aproxima as pessoas da mesa eucarística. Jesus fala que os convidados para o banquete messiânico, as suas núpcias, não são os perfeitos, mas as pessoas com defeito – os pobres, aleijados, cegos e coxos – que estavam banidos da liturgia do templo.

Só têm de vestir a roupa de casamento, o traje nupcial, aceitar a viver uma relação amorosa com Jesus-esposo de cada um de nós.

É importante reconhecer que não nos bastamos a nós próprios: precisamos de Jesus, da sua força, da sua vida em nós para vivermos dele e com Ele.

Quando era adolescente li uma frase que ficou sempre comigo este tempo todo. O autor refletia sobre o que se passa na consagração: o pão e o vinho transformam-se no corpo e sangue do Senhor. Essa transformação é chamada de transubstanciação, mas tradições teológicas diferentes chamam-lhe nomes diferentes.

Esse autor escreveu que para ele não era importante o nome técnico do que se passa na consagração. O que importa é que o Espírito Santo que transforma o pão e o vinho no corpo e sangue do Senhor também é capaz de me transformar n’Ele.

Celebrar a Eucaristia em memória do Senhor – como ele nos mandou – é repetir os gestos da sua última ceia (que explicam o que se passou horas depois no monte Calvário).

É também estar disposto a oferecer a nossa vida pelos outros, aceitarmos ser pão repartido para a salvação do mundo de braços e coração escancarados.

A segunda leitura termina com uma expressão interessante: «Visto que há um só pão, nós, embora sejamos muitos, formamos um só corpo, porque participamos do mesmo pão».

Este pensamento de Paulo ensina duas coisas: que a eucaristia é o sacramento da nossa unidade; e que quando comungamos Jesus na Eucaristia nos comungamos uns aos outros, porque formamos o mesmo e único corpo de Cristo.

Comungar o outro é amá-lo como ele é, relacionar-se.

A Eucaristia tem também uma dimensão cósmica.

São Daniel Comboni conta numa carta ao pai que uma noite o barco da missão ficou preso num banco de areia no Nilo Branco pondo os missionários e a tripulação em grande perigo e à mercê de homens armados. De manhazinha cedo os missionários celebraram a Eucaristia a bordo.

«Pela manhã celebrou-se missa. Oh, que doce foi naquela difícil circunstância ter entre as mãos o Senhor de todos os rios e de todas as tribos da terra e pedir-lhe por nós e por nossas necessidades, pelos que estavam em perigo junto a nós, por vós, pelos que não o conhecem, por todo o mundo!» (E 256) – escreveu.

Jesus-Eucaristia é socorro para as horas difíceis, alimento para o nosso caminho, energia para o processo de cristificação que cada um de nós é chamado a fazer como cristão.

O cardeal José Tolentino Mendonça diz que «nós comemos Cristo para que seja Ele a base da nossa vitalidade. Para que a nossa vida, nas suas múltiplas expressões e sintomas, se torne reflexo da vida de Cristo em nós».

Que assim seja.

8 de junho de 2020

MACÁRIO, FELIZ!



Jesus, no Sermão do Monte (Mateus 5, 1-12), dá-nos um nome novo. Chama-nos Makarioi, Macários, Felizes (em grego) nove vezes.

O Papa Francisco recorda na exortação Alegrai-vos e exultai que as bem-aventuranças são o bilhete de identidade do cristão e o GPS para a santidade.

«A palavra “feliz” ou “bem-aventurado” torna-se sinónimo de “santo”, porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade», escreve no nº 64.

Hoje, no Twitter explica que as bem-aventuranças são os caminhos improváveis que Deus escolhe para se dar a nós.

O Papa argentino sumariza esses caminhos: ser feliz é ser pobre no coração; reagir com humildade e mansidão; saber chorar com os outros; buscar a justiça com fome e sede; olhar e agir com misericórdia; manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor, semear a paz ao nosso redor; e, abraçar diariamente o caminho do Evangelho mesmo que nos acarrete problemas.

E desafia-nos: «Permitamos-Lhe que os fustigue com as suas palavras».

São Daniel Comboni era um missionário assumidamente feliz. Não é nada recomendável afivelar uma máscara circunspecta, grave para dar ar de cristão.

Na sua correspondência encontramos frases que o expressam: «Sou o mais feliz dos homens»; «Estou imensamente feliz porque Ele me honrou com tantas cruzes»; «sentir-me-ei feliz por fazer a vontade de Deus»; «somos felizes no meio da cruz que o Senhor nos manda.

Uma semana antes de morrer, ao contemplar o seu sonho missionário a desmoronar-se com os missionários a falecer um depois do outro, exclama: «Eu sou feliz na Cruz, que levada de boa vontade por amor de Deus, gera o triunfo e a vida eterna».

Daniel Comboni, consola o pai que tinha enviuvado recentemente, com uma citação do Sermão do Monte: «Deixo-te ainda uma lembrança e é uma famosa e verdadeira sentença de Cristo. Medita-a sempre e trá-la sempre na mente, que bem merece a nossa veneração. E é esta: BEATI QUI LUGENT: felizes os que choram» (Escritos 421).

Das oito felicitações qual é a que te toca mais?

DEUS ESTÁ

No fogo novo do alvor,
No calor e frio, tempero dos dias,
No êxtase do sol posto,
No silêncio enternecedor das estrelas,
No feitiço da lua cheia,
No abraço multicolor do arco-íris,
Na chuva que tempera dores,
Na brisa que afaga a pele,
Na polifonia do Universo,
No vai-vem do mar,
Na oração murmurada do riacho,
Na beleza singela da flor,
Na graça irrequieta do guarda-rios,
No beijo alado do colibri,
Nas travessuras do golfinho,
No horizonte sem fim do topo do monte,
Lá onde o céu e a terra se fundem,
Na amizade que tempera a vida,
No amor que acalenta e vivifica,
Na crosta protetora da ferida,
Na cicatriz da chaga curada,
No sorriso desarmado da criança,
Na pérola de orvalho presa na teia,
Na fundura de mim mesmo
Lá está o Deus
da Vida,
da Ternura,
da Dor!
O Deus unitrino,
família de Amor
que mora no coração que O quer,
que caminha connosco,
peregrino e senhor da História,
fonte da Paz,
jorro da Alegria,
olho da Bênção.

4 de junho de 2020

CABO SOFRIDO



O bispo de Cabo Delgado pede fim da guerra odiosa.

Dom Luiz Fernando Lisboa, bispo de Pemba, lançou um dilacerante grito de socorro perante a situação de terror que a província moçambicana de Cabo Delgado vive desde 4 de Outubro de 2017, quando rebeldes muçulmanos fizeram o primeiro ataque na área.

O bispo faz com «profunda indignação» o historial da violência dos insurgentes, que começaram por alvejar as forças de segurança, mas agora atacam «as populações indefesas com requintes de crueldade» sobretudo desde o final do ano passado. Em Março, mataram 52 pessoas em Xitaxi, jovens na maioria, que recusaram integrar as suas fileiras. As forças de segurança não são eficazes, denuncia.

Os ataques, que passaram das aldeias remotas às cidades litorais «em grande estilo, por terra e por mar», já fizeram, nas contas do prelado brasileiro, mais de duzentos mil deslocados e entre quinhentos e mil mortos. As populações e as autoridades fogem para as cidades. Com a agricultura parada há dois anos, «a fome é outra realidade gritante». As crianças e os jovens não vão à escola.

Cabo Delgado, que é o epicentro da covid-19, está mergulhado na pobreza, no desemprego e no analfabetismo desde a era colonial, apesar da riqueza imensa do território, incluindo enormes jazidas de gás natural, petróleo, rubis e outras pedras preciosas. A província funciona também como entreposto no tráfico de heroína.

Os primeiros ataques foram obra de um grupo de jovens muçulmanos doutrinados por clérigos quenianos que pregam o salafismo, a versão radical do Islão patrocinada pela Arábia Saudita. Eram financiados por comerciantes tanzanianos. Autodenominavam-se Al Shabab («Jovens», em árabe), mas não tinham ligações com os congéneres somalis. Financiavam-se com o contrabando de madeira e usavam armas tiradas aos soldados.

A situação mudou em meados de 2019, quando aparentemente o autoproclamado Estado Islâmico da Província da África Central mudou a base da República Democrática do Congo para o Norte de Moçambique. Os combatentes usam a bandeira negra do Estado Islâmico e os seus ataques aumentaram em número e violência. Em 2020, fizeram mais de cem incursões.

O Governo do Maputo levou algum tempo a reagir à violência na província. Usou sobretudo a polícia de choque e mercenários russos, que, apesar de bem apetrechados, sofreram algumas baixas e regressaram à base em Nacala.

No final de Abril, Maputo anunciou ter matado 129 rebeldes e recuperado o domínio de algumas localidades. Contribuíram para o êxito helicópteros do Zimbabué e da África do Sul, mercenários sul-africanos e drones, aeronaves controladas à distância, que seguem dos céus os movimentos dos insurgentes.

A guerra em Cabo Delgado, contudo, não tem solução militar. O Governo precisa de promover o desenvolvimento local, investindo parte da riqueza gerada pelas indústrias extractivas na província onde nasceu o presidente Filipe Nyusi. A produção de gás, prevista para 2022, precisa de segurança.

Dom Luiz, por seu turno, propõe a formação de uma comissão suprapartidária «com membros da Assembleia da República, do Judiciário, da sociedade civil para ajudar o Governo no enfrentamento desta odiosa guerra» e pede ajuda concreta das Nações Unidas, União Africana e União Europeia.

3 de junho de 2020

MULHER: FORÇA E TERNURA


Lucas nota nos Atos dos Apóstolos que, depois da Ascensão do Senhor «todos estes [apóstolos] perseveravam, unidos em oração, em companhia de algumas mulheres, entre as quais Maria, Mãe de Jesus» (Act 1, 14).

Li esta passagem muitas vezes! Entendia que os apóstolos e as mulheres, com a Mãe de Jesus, formavam uma comunidade orante que possibilitava a perseverança dos primeiros.

Desta vez dei-me conta das vírgulas e intuí um novo sentido para o texto.

Os apóstolos perseveravam 
  • unidos na oração,
  • em companhia de algumas mulheres.
O que o texto parece sublinhar é que a perseverança dos apóstolos dependeu da oração e da companhia solidária de algumas mulheres que, com eles, acompanharam Jesus desde a Galileia, e se mantiveram firmes no monte Calvário e junto ao túmulo do Senhor.

Esta leitura do texto obriga os líderes eclesiais a entenderem a presença da mulher na Igreja para além da utilidade nos serviços que presta. É uma companhia fundamental para a perseverança dos ministros ordenados.

O Papa Francisco escreve na Exortação Apostólica Querida Amazónia que «as mulheres prestam à Igreja a sua contribuição segundo o modo que lhes é próprio e prolongando a força e a ternura de Maria, a Mãe. […] Sem as mulheres ela se desmorona» (nº 101).

São Daniel Comboni também intuiu o papel fundamental da mulher no serviço missionário na África Central. Por isso, fundou as Missionárias Combonianas com o nome lindo de Pias Mães da Nigrícia.

Escreveu: «Eu fui o primeiro a fazer com que colabore no apostolado da África Central o omnipotente ministério da mulher do Evangelho e da irmã da caridade, que é o escudo, a força e a garantia do ministério do missionário» (Escritos 5284).

Para Comboni, as irmãs e outras agentes de pastoral são o escudo, a força e a garantia do serviço dos missionários.

No passado construíram-se espiritualidades sacerdotais baseadas no medo das mulheres. 

Hoje, para resgatar a experiência da primeira comunidade cristã de Jerusalém, é preciso viver uma mística que favoreça o encontro com a força e a ternura da mulher em Maria e nas Marias como meio de perseverança vocacional.

1 de junho de 2020

RE-PARTIMOS DAS NOSSAS FRAGILIDADES



«Todos têm os olhos postos em Vós e a seu tempo lhes dais o alimento. Abris as vossas mãos e todos saciais generosamente.» (Salmo 145, 15-16) 

«Concluí que o P.e Marani tinha razão, e que o único arrimo, refúgio e fortaleza é pôr a confiança em Deus, que nunca falta – o único que nunca falha – que tem cabeça, coração e consciência e que pode fazer com que nós façamos milagres.» (Escritos 6881) 

Caríssimos confrades,

Saudações e orações de Roma por cada um de vós e pelos povos que acompanhais neste tempo tão difícil para todos e em circunstâncias absolutamente particulares e inesperadas.

Estamos a viver um tempo que está como que suspenso e carregado de surpreendentes revelações, um tempo que nos obriga a rever critérios e prioridades, que desafia o nosso sentido de liberdade chamando-nos à responsabilidade, que questiona as nossas seguranças e põe a nu as nossas fraquezas. Vivemos entre um passado que a memória tem dificuldade em conservar e um futuro que o pensamento não consegue entrever e, na oração, confiamos tudo a Deus.

Como em todo o aniversário, a memória do 153º aniversário da fundação do nosso Instituto, torna-se ocasião para uma celebração que reportando-se ao passado, reforça a esperança no nosso futuro. Mas mais ainda, torna-se para nós um dom e um convite do Senhor a deter-nos uns momentos para avaliar a nossa vida e a nossa missão. De modo que, olhando-nos nos olhos, à escuta do Senhor, encontremos a força de re-partir como discípulos missionários em direção aos nossos irmãos e irmãs que aguardam confiantes a Palavra de Deus. Re-partimos da descoberta que todos fizemos nestes meses de confinamento, a nossa comum fraqueza e fragilidade.

Olhando à vida do nosso Pai e Fundador, São Daniel Comboni, nos anos de 1859 a 1864, achamos que, depois do desaire e do insucesso da sua primeira viagem a África, ele ficou, como contemplativo em ação, «a observar os movimentos do Espírito», aberto à realidade eclesial e social que o circundava e disponível ao Espírito que, do Alto, por fim o ilumina sobre o re-partir: «… esperar novos movimentos do espírito de Deus, sempre dispostos a sacrificar e vencer tudo para seguir e realizar a vontade do Senhor» (Escritos, 464).

Um olhar à nossa história testemunha a promessa de fecundidade, escondida neste repartir das nossas fraquezas, em total abertura a Deus: a preservação da herança comboniana, depois da morte do fundador, e a configuração do Instituto em congregação religiosa (1881-1885); o retorno à missão, depois da Mahdia (1900); o re-partir, depois da dobragem da herança comboniana com a criação das duas congregações FSCJ e MFSC (1922-1923); o abraço à África e as novas aberturas depois da dolorosa expulsão em massa do Sudão do Sul (1964); a sofrida procura de renovamento conciliar e a reencontrada unidade das duas congregações combonianas nos históricos capítulos de 1969-1979, de que recordámos o ano passado o 50º e o 40º aniversários, respetivamente, e que efetuaram a reconfiguração apostólica do Instituto como o conhecemos hoje.

Um olhar atento ao nosso presente convida-nos a ter a coragem de recomeçar a partir das nossas fraquezas, mais uma vez, deixando a Deus a iniciativa e o primado. São Daniel Comboni impele-nos neste sentido e direção, convidando-nos a «ter coragem para o presente e sobretudo para o futuro». O próximo XIX capítulo geral de 2021 será certamente um momento providencial e qualificado para este re-partir.

Como nos convidou também o Papa Francisco no momento extraordinário de oração no Sagrado da Basílica de São Pedro em Roma dia 27 de março passado, vivemos «este tempo de prova como tempo de escolha para organizar a rota da vida em direção ao Senhor, e em direção aos outros», em direção a quantos esperam o Evangelho. Da nossa parte, estamos certos de que o Senhor está à nossa porta e bate (Ap 3, 20) para renovar a nossa vida e a nossa missão com a promessa de uma renovada fecundidade apostólica.

Boa Festa do aniversário da Fundação do nosso Instituto e bom início do mês de junho, mês dedicado à contemplação do Sagrado Coração de Jesus.
Studium Combonianum e Conselho Geral 
Roma, 1 de junho de 2020 
153º aniversário da fundação do Instituto