22 de junho de 2022

Haro Wato: MATAR SAUDADES

 





Voltei a Haro Wato, a missão que comecei com dois colegas em abril de 1995. A ocasião foi uma manhã de recoleção na véspera do Pentecostes para as comunidades combonianas (uma feminina e duas masculinas) que servem o povo Guji.

Os cerca de 50 quilómetros de estrada de terra batida que atravessam os Montes Uraga entre Bore e Haro Wato estão em bom estado e a viagem foi agradável apesar de um forte aguaceiro na parte mais alta do percurso. Vi muitos batatais em flor, promessa de uma boa colheita. E os milharais crescem com a chuva.

No cruzamento com a estrada Dilla-Shakisso, onde havia duas ou três cabanas-tabernas para reabastecimento, nasceu Damma, uma aldeia enorme com hospital. Demos boleia a duas jovens que andavam a vacinar as pessoas contra o Covid.

Nalgumas partes onde antes havia floresta densa, agora há campos agrícolas e plantações de eucaliptos. A pressão sobre a natureza é grande e o equilíbrio entre conservação e desenvolvimento é difícil.

A pequena aldeia que se formou em volta da missão de Haro Wato transformou-se e como cresceu! As cabanas tradicionais estão a dar vez a casas maiores e mais cómodas revestidas a cimento.

Tem energia elétrica e uma torre de telecomunicações com internet G2. Também há uma pequena mesquita. No passado os gujis tratavam o Islão com desprezo. Agora há quem o siga, através da influência de empresários muçulmanos que controlam o negócio local do café.

A missão, essa cresceu em todos os sentidos e ficou «entalada» entre duas estradas.

As árvores que plantamos há um quarto de séculos estão frondosas. Produzem mangas e pêras abacate deliciosas. O cafezal cresceu. A casa dos missionários tem mais dois quartos. A clínica, dirigida pelas irmãs, não pára de receber acrescentos para melhorar oferta de serviços. Em 2021 atendeu quase vinte mil pacientes.

As estruturas paroquiais estão maiores com o salão multi-uso e uma nova construção para os catequistas.

A nível de capelas, quando disse adeus ao Uraga em finais de setembro de 2000, a paróquia tinha 29, divididas em três zonas. Agora são 47, agrupadas em sete zonas. Os batizados estão a chegar aos dezanove mil. A resposta dos Gujis do Uraga ao Evangelho é muito generosa.

A paróquia chegou a Sollamo, a capital do distrito, a nove quilómetros mais a norte, que continua com o ar de uma cidadezinha esquecida, para lá do sol posto. No início, as combonianas abriram um jardim infantil. Este ano têm 450 alunos da pré-primária até ao sétimo ano. Para o próximo ano abre o oitavo. Junto à escola há uma capela que serve os católicos da cidade.

A escola de Haro Wato, dirigida pelos missionários, tem mais de duas centenas de alunos do quinto ao oitavo ano.

Senti uma enorme saudade da meia dúzia de anos que passei em Haro Wato entre abril de 1995 e setembro de 2000. Um começo desafiante que está a dar muitos frutos. 

Um jovem comboniano oriundo da missão está em Nairobi a acabar a teologia para ser ordenado padre missionário. Algumas jovens querem ser combonianas.

As cerca de 24 horas que passei em Haro Wato deram para revisitar a alameda da memória. E para encontrar algumas pessoas, nomeadamente o senhor Tsegaye, um vizinho que me ajudava a inculturar as homilias com provérbios e estórias gujis.

Foram, sobretudo, para agradecer ao Bom Senhor por tudo o que vi e recordei! Como a Palavra continua a crescer naquelas colinas verdejantes com os pés lavados pelos rios e riachos.

5 de junho de 2022

DIZER DEUS


As culturas orais tradicionais falam de Deus usando estórias, narrativas, lendas e mitos fundacionais em vez de um discurso teórico teológico e dogmático.

Os Gujis do Sul da Etiópia têm uma lenda muito interessante para definir Deus.

Contam que no princípio Deus — Waaqa — amava tanto a terra que quase lhe tocava com a barriga. E fertilizava-a com a chuva diária.

Ora, a mula, farta de trazer o lombo molhado, um dia deu um coice na barriga de Deus.

Deus ficou muito zangado e amaldiçoou-a: «A partir de agora vais ficar estéril! Não vais emprenhar e parir mais!»

Depois, Deus foi para muito longe!

Mas continua a amar a terra e a fertilizá-la com a chuva. E usa os pássaros quando quer enviar mensagens aos humanos.

Por isso, antes de qualquer grande decisão — desde o programar de um casamento ao cultivo dos campos — perscrutam o voo dos pássaros no horizonte ao cair da tarde para discernir a vontade de Deus.

Chamam-lhe ver o kaayo, o agouro, o augúrio, o presságio.

Os mitos fundacionais também explicam a organização social.

Segundo os gujis, Deus criou os primeiros três homens onde é hoje a cidade de Adola junto à ooda, a grande árvore sagrada dos oromos.

Chamou Urago ao primeiro guji; Darasso ao primeiro guedeo; Amaro ao primeiro amara.

Deus deu a terra a Urago e fez de Darasso seu escravo. Quanto a Amaro, disse que viveria aldrabando os outros.

Deus é invocado nas orações tradicionais gujis como Pai e Mãe, Avô e Avó, Bisavô, que nos pariu. O nosso antepassado comum, que nos irmana na grande família humana.

Um guji não diz que Deus é omnisciente. Mas explica que os olhos de Deus são como o fundo de uma garrafa e os seus ouvidos tão grandes como uma janela.

Os provérbios também falam de Deus.

Cito dois: o silêncio é o lugar que Deus atravessa; o desejo não enche o curral, mas Deus enche-o.

Numa teologia oral que afasta Deus do quotidiano das pessoas, anunciar que Ele se chama Emanuel, que é Deus-connosco, que não fala no voo dos pássaros mas é Palavra na Bíblia e no coração do crente é verdadeiramente boa-nova.

Os gujis trazem Deus sempre na boca. O desafio que o missionário enfrenta é anunciar-lhes o Deus-Pai de Jesus já presente na sua cultura, nas suas tradições, na sua sabedoria milenar.

Este método evangelizador chama-se inculturação: dizer Deus usando a linguagem teológica e simbólica hospedeiras até ao limite.

Exige um estudo aturado da língua e da cultura locais.

Um trabalho que os missionários estrangeiros iniciamos, mas que é continuado e aprofundado pelos cristãos nativos.