17 de setembro de 2024

OS DESAFIOS DA POLIGAMIA

Relatório de Síntese da primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre «Uma Igreja Sinodal em Missão» deixou uma tarefa específica ao Simpósio das Conferências Episcopais de África e Madagáscar (SECAM na sigla em inglês), encorajando-o «a promover um discernimento teológico e pastoral sobre o tema da poligamia e sobre o acompanhamento das pessoas que vivem em uniões poligâmicas, que se aproximam da fé.»

O portal aciafrica.org, da Associação para a Informação Católica em África, que acompanha de perto o dia-a-dia da Igreja Católica no continente, reportou duas respostas à tarefa. Em dezembro, a IMBISA, organização que engloba as conferências episcopais de nove países da África Austral, pediu aos teólogos para iluminarem as práticas da iniciação e da poligamia. A resposta da SECAM veio em abril com o estabelecimento de uma comissão (de teólogos, na maioria) para refletir sobre o a proposta do Sínodo. As deliberações seriam apresentadas na assembleia plenária do organismo continental, agendada para julho no Ruanda. 

São João Paulo II deixou o mesmo convite aos bispos africanos depois do primeiro Sínodo sobre a Igreja em África. Dom Armido Gasparini, o então bispo de Hawassa, no sul da Etiópia, contou-me, frustrado, que tentou introduzir a questão numa reunião da Conferência Episcopal. Contudo, o arcebispo de Adis-Abeba, o cardeal Paulos Tzadua, cortou a discussão pela raiz, afirmando de que na Etiópia não havia poligamia. Que entre os amaras e os tigrinos não haja poligamia é possível; estas etnias foram evangelizadas há séculos. No Sul, entre os povos que foram anexados à Etiópia no fim do século XIX, a situação é bem diferente. A título de exemplo, na missão de Qillenso, onde sirvo, dois católicos têm famílias numerosas: o senhor Borama tem 32 filhos de três esposas enquanto o senhor Elema tem 27 filhos de cinco. No passado, perdemos um número de bons catequistas por terem entrado em uniões matrimoniais adicionais.

 

UMA QUESTÃO COMPLEXA

A questão da poligamia é uma matéria complexa de tratar. Envolve antropologia, sociologia, cultura, tradição e ética, entre outros aspetos. Na internet, há grandes discussões sobre o tema. Se o rei Salomão teve 700 esposas, porque temos de ter só uma? – perguntam alguns internautas.

Entre os gujis, com quem trabalho, nos anos 90 do século passado, era comum um homem por volta dos 30-40 anos tomar uma segunda ou mais esposas, dependendo da capacidade económica. Cada casamento pressupõe sempre o pagamento de um dote à família da noiva. A poligamia não é uma questão de perversão sexual, mas de prestígio pessoal e social. A importância de um homem na cultura guji é medida pelos filhos que tem e pelo gado que possui. Nós, os missionários, não temos filhos, mas temos algumas cabeças de gado.

A poligamia entre os gujis coloca alguns desafios concretos: normalmente o primeiro filho é aquele de quem o pai cuida, porque é o primogénito que lhe dá o nome. Quando nasce o primeiro filho o pai e a mãe deixam de ser chamados pelos nomes próprios para serem tratados por pai ou mãe do nome do filho nascido. Cada esposa tem a própria habitação e os outros rebentos ficam sob o cuidado das mães. O pai vai andando de casa em casa. As novas gerações são sensíveis a esta desigualdade de tratamento e, pelo que observo, a poligamia está em declínio entre os gujis.

 

REVISITAR AS ESCRITURAS

Segundo a prática católica, quando um homem polígamo pede para ser batizado depois da catequese do catecumenado, deve escolher uma esposa e despedir as outras. Para os gujis, a primeira esposa é sempre a mais importante. Mesmo que ela aceite que o marido pretenda uma mulher mais nova, se ela quiser voltar ele é obrigado a recebê-la.

Uma vez, em conversa com uma missionária luterana alemã, abordamos a prática da sua Igreja de batizar o marido polígamo com toda a família. Indaguei das bases para essa opção. Ela respondeu que, na primeira carta que Paulo escreveu ao seu colaborador Timóteo, o apóstolo dos gentios explica que a condição para ser bispo ou diácono é que «seja marido de uma só mulher». Este detalhe revela que, embora a comunidade cristã guardasse os ensinamentos de Jesus em relação ao matrimónio – união indissolúvel entre um homem e uma mulher para a vida –, admitia exceções. De facto, a exigência de ser marido de uma só mulher indicia que havia cristãos em uniões poligâmicas.

O acompanhamento pastoral das pessoas em uniões poligâmicas pede uma revisitação do Novo Testamento. Jesus é claro: «Desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e serão os dois um só. Portanto, já não são dois, mas um só. Pois o que Deus uniu não o separe o homem» (Marcos 10, 6-9). Os discípulos quando registaram tal exigência, reagiram dizendo que se é assim, não convém casar-se. 

Este é o princípio-base do matrimónio cristão: uma união monogâmica heterossexual para a vida. Contudo, a leitura atenta do Testamento cristão, revela que desde o princípio a Igreja admitiu exceções a este princípio radical. 

O evangelista Mateus afirma por duas vezes que o divórcio é possível no caso de porneia, palavra grega de significado amplo, traduzida por união ilegal, fornicação, imoralidade sexual, adultério para os ortodoxos (Mateus 5, 32, repetido em 19, 9). Paulo, escrevendo aos cristãos em Corinto, na Grécia, permite que se uma das partes de um casal gentio receber o batismo e a outra quiser abandonar a união, a parte cristã pode recasar (1 Coríntios 7, 12-15). Esta exceção é chamada de privilégio paulino. Vimos antes que, os candidatos a bispo e diácono deviam ser maridos de uma só mulher (1 Timóteo 3, 2. 12) o que pressupõe haver poligamia entre as comunidades cristãs.

Há que juntar a estas exceções o privilégio petrino, a faculdade do papa de dissolver um matrimónio em benefício da fé de uma das partes. No caso de uma união poligâmica, por exemplo, a Igreja considera válido só o primeiro casamento. Contudo, o privilégio petrino concede ao marido poligâmico escolher a esposa de entre as mulheres que tem.

 

ACOMPANHAMENTO DE UNIÕES POLIGÂMICAS

A poligamia é uma realidade transversal ao continente africano, do Cairo ao Cabo. Qual é o acompanhamento possível das pessoas em uniões poligâmicas que se aproximam da fé? O SECAM prometeu apresentar uma reflexão teológica e pastoral em julho, mas não consegui encontrar nada.

A meu ver, e partindo da experiência de missionário entre uma etnia que pratica a poligamia, esta resposta tem de ser dada a nível teológico e a nível pastoral, com a mesma criatividade, justiça e licença da primeira comunidade cristã. Não pondo em causa os ensinamentos do Senhor sobre o matrimónio, admitiram algumas exceções. O importante é que a salvação de uma pessoa – de um polígamo que pede o batismo – não ponha em causa a salvação de terceiros (as esposas que tem de abandonar para ser batizado). Nalgumas culturas, a prostituição é o caminho possível para as mulheres abandonadas pelo marido.

Uma opção possível, é a prática pastoral que seguimos na missão de Haro Wato há duas ou três décadas: quando um homem polígamo terminava o catecumenado, o período de formação para receber o batismo, recebia um nome cristão e um crucifixo, mas só era batizado no fim da sua vida. Assim, acautelávamos o bem-estar de todas as suas esposas. Reconheço que se trata de uma meia-solução: o candidato polígamo é introduzido aos mistérios da fé, mas fica de fora da comunhão dos batizados. Outra opção pode ser a prática da Igreja Luterana de admitir no seu seio toda a família, administrando o batismo ao marido e a todas as esposas e os filhos que o desejem. Mas o discernimento pedido às conferências episcopais pode encontrar outras soluções que acautelam a dignidade de todas as pessoas envolvidas em uniões poligâmicas.

12 de setembro de 2024

DE VOLTA À PRISÃO




A assistência religiosa no Estabelecimento Correcional de Adola, no sul da Etiópia, faz parte do serviço pastoral da missão comboniana de Qillenso desde 2009. Aliás, a capela prisional foi o terceiro local de culto aberto à volta da cidade-mãe dos gujis.

Os inícios foram humildes. Os católicos começaram por se reunir para a missa dominical na capela luterana. Depois, montaram uma tenda. A capela propriamente dita, feita de madeira, barro e zinco, veio depois.

Hoje, uma equipa de duas Missionárias da Caridade, o professor reformado José Sholango e um dos padres da paróquia de Qillenso, visita a prisão cada terça-feira para rezar o evangelho do domingo anterior com alguns reclusos.

O esquema da celebração é simples: um cântico de entrada, acompanhado pelo tambor e pela kerara, uma espécie de guitarra local, e de uma oração de introdução, feita por um dos presos. Depois, o evangelho é proclamado em guji – a língua local – e em amárico – a língua franca na Etiópia.

A Palavra é explicada pelo padre em guji e por uma irmã em inglês ou amárico. Sholango faz de tradutor e concluiu a reflexão com algumas orientações práticas. Depois de outra canção, a Palavra é feita oração. A celebração conclui com a bênção.

Os participantes variam entre duas e quatro dezenas. Católicos são poucos. Por isso, deixamos de celebrar a Eucaristia e valorizamos a partilha da Palavra. Os católicos na Etiópia não chegam a um milhão, representando menos de um por cento da população.

Entretanto, uma reorganização administrativa do Estado Regional da Oromia trouxe para Adola a capital da zona guji. A prisão também foi requalificada e tem mais de um milhar de detidos. 

Para criar novos espaços, a direção decidiu relocalizar os centros de culto para fora dos muros do presídio. Além de reconstruir as capelas, tivemos de construir uma cerca de zinco com cerca de dois metros de altura e uma porta de metal de acesso à nova Aldeia de Deus na cadeia de Adola: as capelas católica, luterana, ortodoxa e apostólica (uma igreja independente etípe) e a mesquita. Tudo lado a lado.

Os espaços de oração foram demolidos e estão a ser reconstruídos. Por esse motivo, suspendemos as visitas à prisão em fevereiro e retomamo-las a 21 de maio, quando o teto de zinco foi terminado, protegendo os orantes do sol e da chuva. Entretanto, estes compraram do próprio bolso um sistema de som para competir com a concorrência!

A nova capela é um pouco maior que a primeira: mede dez por sete metros e foi financiada através do contributo generoso da província comboniana de Portugal. Os trabalhos são feitos pelos próprios reclusos: os mestres são pagos e os ajudantes alimentados. As paredes de barro, o chão e o revestimento externo de cimento estão terminados. Falta pintar por dentro e por fora.

A presença do Evangelho na prisão é muito importante. O Relatório de Síntese da primeira sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade reconhece-a ao agradecer e encorajar «as pessoas comprometidas no serviço de escuta e acompanhamento de todos os que se encontram na prisão e precisam particularmente de experimentar o amor misericordioso do Senhor e de não se sentir isolados da comunidade. Em nome da Igreja eles realizam as palavras do Senhor: “estava na prisão e fostes ter comigo” (Mt 25,36)».

É o que procuramos fazer com estes irmãos. Além da assistência espiritual, prestamos alguma ajuda material sobretudo com sabão, roupa e medicamentos para quem precisa. E, às vezes, material para a escola básica que funciona no presídio.

2 de setembro de 2024

A VIDA DE UM AEROPORTO


Um aeroporto é local aonde chegam e de onde partem os aviões. Ou seja, é um lugar onde as pessoas chegam e partem, usando o avião. Ao aeroporto chega-se para partir. O tempo de espera varia, mas está-se sempre de passagem. Sabe-se de onde vimos e para onde vamos. 

Além disso, cada passageiro tem um bilhete e um cartão de embarque com todas as informações necessárias – identidade, origem e o meu destino do voo. Normalmente espera-se o mínimo possível e é-se feliz quando se pode partir a horas.

 

O aeroporto da vida

A nossa vida podia ser comparada ao que se passa no aeroporto. Há semelhanças, mas muitas e importantes diferenças. Semelhanças – a vida é um lugar de passagem, chega-se para partir. A identidade profunda de tudo o que nasce nesta terra é o prazo de validade. Ninguém vive para sempre. 

Nasce-se para morrer, esta é a infalível lei da vida.

Todos os seres vivos têm um cartão de embarque – “vieste do pó e para o pó voltarás!“ Para os humanos, seres complexos porque feitos “à imagem e semelhança de Deus”, voltam à terra o que é da terra e a Deus o que “a Deus pertence”.

O tempo de espera varia. A grande diferença é que no aeroporto quere-se o mínimo e na vida o máximo. Mas, nos dois casos, dependemos de terceiros – das companhias aéreas ou de Deus. 

A grande diferença é na intenção de viajar ou não. Podemos escolher se viajar de avião ou não. Também se escolhe a hora e o destino. Na vida, tudo é dado como dom e graça de Deus. Ele chama à existência quando quer e decide a hora da partida!

A tragédia da humanidade é esquecer de onde vem e para onde vai. Teimamos em fazer moradas permanentes nos aeroportos e não sabemos ler as indicações precisas do nosso cartão de embarque. 

pessoa humana que foi feita por Deus. Como a água vai para o mar, nós acabamos inexoravelmente na casa de Deus.

Seria fácil imaginar uma sociedade onde cada um lesse frequentemente o seu cartão de embarque. Podemos esquecer a hora “que só a Deus pertence”, mas nunca esquecer o nosso destino. Nós somos o que somos, porque temos um destino divino e eterno.

(Escrito no aeroporto de Bruxelas à espera do voo que me levará ao funeral da minha mãe.)

Abraço amigo,

P. Manuel Fidelino

Missionário Comboniano no Uganda