18 de abril de 2022

BARSISSA: O PROFESSOR



Hoje quero falar-te de Barsissa, o Professor — como é conhecido o braço-direito dos missionários e das Missionárias da Caridade na zona pastoral de Adola. 

Quando nasceu, há 61 anos, em Hossanna, uma cidade no Sudoeste da Etiópia, os pais puseram-lhe o nome de Sholango.

«Na minha língua natal, o welayitinha, Sholango significa Castanho», explicou-me com um sorriso tranquilo. «Porque eu não era nem negro nem branco».

No baptismo recebeu o nome de Joseph.

Fez a Escola de Formação de Professores em Robe, nas montanhas de Bale, e exerceu os 38 de profissão no distrito de Kibre Menguiste, no sudeste do país.

Casou em Adola, o nome guji para Kibre Menguiste.

É pai de oito filhos. O mais velho ensina na universidade de Harar. O segundo formou-se em informática e trabalha em Hawassa. O terceiro é oficial de saúde e trabalha num hospital.

Sholango foi investindo as poupanças em lotes de terra em Adola e construiu algumas casas que usa para complementar o orçamento familiar e para desenrascar amigos em dificuldade.

Comprou dois tuque-tuque, que fazem parte do serviço de taxis em Adola. Chamam-lhes bajaj — apesar de muitos serem de outros fabricantes. Podem carregar até dez passageiros, uns encima dos outros. Essa fila interminável de «formigas» azuis são um teste à paciência de condutores de veículos de dimensões mais avantajadas em muitas localidades da Etiópia.

Barsissa é um elemento fundamental e carismático na comunidade católica de Adola.

Anima a comunidade da cidade, de que é ancião, e acompanha os missionários nas visitas às suas capelas.

Ajuda nas traduções nos encontros de anciãos e catequistas. 

No fim da eucaristia, costuma motivar os fiéis com um discurso simples e didático sobre a fé e as suas vivências e exigências. 

É um comunicador nato e vivo, e prende a atenção das pessoas com muita facilidade. É Barsissa!

Apesar de ser welayta, domina o guji na perfeição.

Há quem veja com maus olhos a sua notoriedade e proeminência na comunidade de Adola precisamente por não ser guji. Mas a Igreja é católica, aberta a todos, para todos e de todos.

Há outro «senão»: ele trabalha como voluntário. Reformou-se há um ano e tem tempo suficiente para ajudar a comunidade católica a crescer em Adola e nas suas nove capelas.

É bastante crítico dos catequistas e do seu trabalho. Acha que deveriam ser voluntários como ele e não trabalhar por dinheiro.

No último domingo, ao virmos da capela de Ilala, notou com tristeza que o catequista não se empenha nem tem o zelo apostólico que devia para exercer o ministério de animador e líder da sua comunidade. Normalmente vêm à missa uma senhora com o seu bebé, duas jovens, dois jovens e o catequista. A comunidade conta com pelo menos quatro dezenas de batizados registados.

Barsissa está sempre à distância de uma chamada telefónica para dar uma mão. Católico fervoroso, dedicado, missionário.

Um homem de Deus!

7 de abril de 2022

AS TEIAS DA BUROCRACIA


Era uma vez uma carta de condução etíope caducada há dez anos. 

Garantiram-me que era quanto bastava para renovar o documento no meu regresso ao país para uma nova etapa de serviço missionário.

Mas não foi o que as autoridades entenderam.

Quando fomos à Autoridade das Estradas do município de Adis Abeba, explicaram que o título tinha sido passado por troca da carta de condução internacional. Acontece que agora não o documento não é reconhecido pela Etiópia. Que podia conduzir por três meses com a licença portuguesa e começar o processo para obter um novo título de condução etíope.

Estávamos no início de novembro. 

Nessa altura a preocupação maior era conseguir a licença de residência e de trabalho no país como membro de uma organização não governamental — a Igreja Católica. Por causa disso, no fim de novembro, tive de ir a Nairobi, Quénia, pedir um visto ONG e voltar a Adis Abeba duas semanas depois. Em janeiro estava legal!

Nesse mesmo mês, a embaixada portuguesa em Adis Abeba autenticou e traduziu a minha carta de condução. 

Contudo, no Ministério dos Negócios Estrangeiro — por onde o processo de troca passava — revelaram que o trâmite era mais complexo: precisava de receber de Portugal a certificação do título de condução passada pelo IMT e a respetiva tradução autenticadas por um notário e pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e enviar tudo para a embaixada etíope em Paris para validação.

Entretanto, entre o despacho da carta para Portugal e o recebimento de todo o processo — tudo via correio expresso assegurado — passaram-se três meses. A culpa foi do vírus! A entrevista com o IMT para obter a certificação do original levou quase dois meses a ser agendada. Mas aqui o que mais há é tempo!

Munido do original do documento mais um dúzia de páginas com certificados, traduções e certificações, dirigi-me ao Ministério dos Negócios Estrangeiros para autenticar o processo.

No dia seguinte, voltamos à Autoridade das Estradas da capital. A chefe, uma senhora simpática e elegante, reviu o processo página a página, conferiu os carimbos da embaixada etíope em Paris e do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Mas disse que faltava o OK da Agência Federal da Autenticação e Registo de Documentos mais declaração com a minha residência oficial em Adis Abeba.

Tudo conseguido nessa mesma tarde, deixando o verso do processo no estado em que a foto documenta:  dez carimbos ao todo!

E fez-se o terceiro dia! De manhã voltamos à Autoridade das Estradas com todo o processo carimbado a preceito, fotocópias do passaporte e da carta de condução original e uma fotografia, mais as futuras dos emolumentos pagos no ministério e no registo.

A chefe estava em reunião.

Regressamos mais tarde. A senhora reviu todo o processo e encontrou espaço no verso do documento para visar, carimbar e autorizar a emissão temporária da carta de condução etíope por dois anos!

O processo de emissão foi rápido: passado pouco mais de uma hora tinha o documento viário em mãos!

Os meus colegas deram-me os parabéns! A carta nasceu, perfeitinha, depois de seis meses de gestação!

Assim concluo a ânsia de conduzir com uma fotocópia da carta portuguesa. A missão de Qillenso é extensa e sem carro não se chega a lado nenhum. Ou depois de longas horas a caminhar.

A primeira vez que a polícia de trânsito me parou não levantou objeções à fotocópia. Na segunda, fui multado em 400 birr, pouco mais de sete euros, por não ter o original do título de condução. Parece pouco dinheiro, mas é cerca de uma semana do ordenado da nossa cozinheira.

Agora, por dois anos, ando sossegado porque estou encartado!

Se não conseguisse a carta deste jeito a alternativa era repetir o exame de condução aos 62 anos de idade e com quase 40 de condução! Já tinha procurado de uma escola para fazer a prova teórica em Hawassa, a capital do Sul do país, mas estava difícil encontrar onde fazer o teste em inglês. Todas as escolas que tinha contactado só o faziam em amárico, uma língua que desconheço.

2 de abril de 2022

Gujis (Etiópia): A GRANDE REVOLUÇÃO CULTURAL




O povo Guji — que vive no sudeste da Etiópia e pertence à etnia Oromo — passou por uma revolução cultural muito grande durante as últimas três décadas graças à agricultura.

Os gujis são pastores que têm grande orgulho nas suas vacas, ovelhas, cabras, burros e cavalos. Costumavam desprezar a agricultura como trabalho escravo. Um dia, no início da missão de Haro Wato, estava a cavar um pedaço de terra entre a casa e a estrada para fazer uma pequena horta. Um ancião viu-me, voltou para trás, entrou no recinto, tirou-me a enxada das mãos, atirou-a ao chão e repreendeu-me. Eu estava a estragar o meu bom nome ao cavar a terra.

Hoje, os gujis superaram o preconceito sobre a agricultura e produzem quase tudo: do café ao chat (uma planta estimulante alcalóide que é droga legal), dos cereais às leguminosas e todo o tipo de legumes à custa da floresta. Agora, têm dinheiro, estão melhor alimentados, vestidos e alojados.

Têm acesso à rede móvel de telecomunicações, à electricidade ou energia solar, e muitas casas — maiores e mais confortáveis do que as cabanas tradicionais — têm parabólicas de televisão nos seus telhados de zinco com uma oferta enorme de canais de televangelistas etíopes que rezam, louvam, pregam e pretendem fazer curas em amárico, oromo e outras línguas. É um desafio à experiência de culto das comunidades católicas que já se debatem com questões de organização e culto de inspiração protestante.

Quando eu era director escolar de Haro Wato, a carreira académica de uma menina terminaria muito provavelmente na quarta classe. Era muito difícil convencer os anciãos a deixar as raparigas continuarem com a escolaridade. Em Qillenso, duas décadas mais tarde, as raparigas são tantas como os rapazes da escola da missão que, entretanto, foi promovida da quinta para a oitava classe. Um bom número de moças frequenta a escola secundária em Me'ee Bokko e Adola, algumas frequentam a faculdade ou universidade e as licenciadas estão a exercer as suas profissões em Adola, Neguele, Uraga ou noutro lugar.

O Islão também está a ganhar entre os Guji. No passado, alguns dos meus amigos em Haro Wato considerá-lo-iam com desprezo. Costumavam dizer-me que os pregadores muçulmanos estavam apenas interessados nas suas mulheres e no seu gado. Agora a aldeia tem uma mesquita. Alguns católicos converteram-se ao Islão devido aos comerciantes muçulmanos que controlam o mercado do café e os locais de processamento na região. As mesquitas em Adola estão ocupadas com o ensino utilizando altifalantes. Na cidade, é comum cruzar-se com mulheres que usam um rigoroso código de vestuário islâmico, deixando de fora apenas os bonitos e enormes olhos.

Entretanto, a missão Haro Wato registou um enorme desenvolvimento: passou de 29 comunidades (em 2000) para as actuais 52. A rede de estradas de terra batida favorece as deslocações às comunidades. Qillenso manteve as suas quatro estações mais a paróquia de Gosa.

Ambas as igrejas foram para a cidade: Haro Wato abriu uma capela em Sollamo, a cidadezinha capital do distrito, e as Missionárias Combonianas iniciaram um jardim de infância na mesma área à qual acrescentaram a escola primária que no próximo ano letivo chegará à oitava classe. Qillenso cresceu do sudeste para Adola. Os combonianos construíram uma pequena casa de barro, uma biblioteca pública, uma igreja espaçosa e gerem um albergue com nove rapazes e sete raparigas das zonas rurais que frequentam a escola secundária na cidade sagrada dos gujis.

À volta de Adola há nove comunidades ao longo do rio Awata, em direcção ao rio Ganalle e junto à estrada para Neguele. Infelizmente, os confrontos entre rebeldes e forças de segurança impedem-nos de visitar três comunidades durante os últimos quatro meses. Em Adola, a liturgia foi amarizada pela forma como as mulheres se vestem para ir à igreja e as pessoas rezam e cantam.

A pastoral vocacional é também um novo desenvolvimento com alguns frutos concretos. Já existe um padre guji entre o presbitério do Vicariato de Hawassa. Os Combonianos têm um escolástico e um postulante gujis. Duas raparigas de Qillenso estão no postulantado de uma congregação local e outra internacional. As combonianas seguem quatro candidatas: três de Haro Wato e uma de Qillenso.

À volta de Qillenso, as comunidades cresceram em auto-sustentação através da agricultura e plantação de eucaliptos, ofertórios dominicais e o côngrua anual. Compraram sistemas solares e sonoros e teclados que trouxeram muito ruído às liturgias. Em Adola, estamos a reiniciar a pastoral prisional após uma interrupção de dois anos devido à pandemia do Covid 19.