30 de maio de 2021
DIZER DEUS
A Solenidade da Santíssima Trindade indicia quão complicado é falar de Deus! Porque Deus é mistério.
Os judeus não dizem Deus. Quando vêem o tetragrama — YHWH, as quatro consoantes que representam o nome de Deus em hebraico — lêem Senhor. Porque dizer o nome é ter poder sobre o nominado.
Muitos místicos preferem falar de Deus pela via negativa. Chama-se apófase, dizer o que Deus não é para chegar ao que Ele é.
São Paulo explicou aos gregos o mistério de Deus como o meio divino onde o humano se desenvolve: «É nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos» (Actos 17, 28).
Falar de Deus-Trindade é anda mais complicado. Mas não é uma charada aritmética dizer que Deus é um em três.
São Ireneu de Lião (130-202) tem uma maneira muito interessante de representar a Trindade. O Filho e o Espírito Santo são as mãos de Deus: «O homem é [..] uma carne formada à imagem de Deus e modelada pelas suas mãos, isto é, pelo Filho e o Espírito, aos quais disse: “Façamos o homem”.».
Há formas mais naturais de falar Deus. São Patrício explicava aos irlandeses o mistério da Trindade através da folha do trevo (que tem três lóbulos). A flor da buganvília serve para o mesmo fim. A fogueira (africana) feita com três pedras também.
A nível da arte, os cristãos orientais pintam a Trindade com três pessoas totalmente idênticas.
O ícone que ilustra esta reflexão, pintado pelo russo Andrei Rublev, é o meu favorito: as três pessoas iguais mas de roupa diferente estão sentadas à mesa, mas há lugar para mais alguém, para ti e para mim.
Já os ocidentais representamos a Trindade por um idoso (Deus Pai), pelo Crucificado (Deus Filho) e por uma pomba (Deus Espírito Santo).
Contudo, a Primeira Carta de João contém a mais simples, completa, complexa e extraordinária definição: «Deus é amor».
Amar é conjugar Deus, revelar a sua gramática: «amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1 João 4, 7-8).
Dizer Deus não é balbuciar um mantra, uma palavra mágica, conceber uma ideia abstrata, é amar! Deus é poema de amor que se declama amando.
23 de maio de 2021
PENTECOSTES: A SAFRA DA RESSURREIÇÃO
Celebramos a solenidade do Pentecostes, a vinda do Espírito Santo. Pentecostes significa (em grego) quinquagésimo (dia) depois da Páscoa.
Para o povo hebreu o pentecostes — ou a festa das sete semanas — era o festival das colheitas dos cereais (trigo e cevada) com a apresentação dos primeiros frutos no Templo de Jerusalém onde faziam uma grande peregrinação sete semanas depois da Páscoa.
Nessa celebração também recordavam o dom da Lei (a Torah) feito por Deus a Moisés no Monte Sinai. Mais tarde, transformou-se numa festa caseira com abundância de comida.
Jesus prometeu aos discípulos o Paráclito: antecessor, consolador, advogado, confortador, ajudante. O Espírito Santo é a grande colheita da Ressurreição do Senhor.
Na criação, o Espírito de Deus pairava sobre a superfície das águas. Na re-criação — a Páscoa do Senhor — o Espirito Santo é o sopro de Deus em nós, como o foi na vida e ministério de Jesus, o ungido com o Espírito de Deus, Messias, Cristo.
O Paráclito guiou a Igreja pelos novos caminhos da missão pascal. Os Atos dos Apóstolos bem podiam ser chamados Atos do Espírito Santo.
O santo Paulo VI escreveu que «o Espírito Santo é o agente principal da evangelização: é ele, efetivamente, que impele para anunciar o Evangelho, como é ele que no mais íntimo das consciências leva a aceitar a Palavra de Deus».
O Espírito enviado do Pai pelo Ressuscitado é o grande tradutor das maravilhas, dos grandes feitos de Deus para todas as línguas. Através da linguagem universal do amor.
Os seus frutos são «amor, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, auto-domínio» como Paulo explicou aos cristãos da Galácia. Representam o essencial para o bem-estar de todos e de cada pessoa, para o bem-estar do universo inteiro.
É o Espírito Santo que tatua com o seu fogo a Lei de Deus — o chamamento universal ao amor — no coração de cada pessoa.
Com o Papa Francisco rezamos:
Vinde, Espírito Santo!
Mostrai-nos a vossa beleza refletida em todos os povos da terra,
para descobrirmos como todos são importantes,
que todos são necessários,
que são rostos diferentes da mesma humanidade
amada por Deus.
Amen.
3 de maio de 2021
PÊRA DE OURO
O abacate é produto de valor acrescentado para agricultores africanos.
A pêra abacate impôs-se como um superalimento devido aos inúmeros benefícios para a saúde. De valor nutritivo elevado, é baixa em açúcar, rica em fibra, vitaminas, minerais e gorduras saudáveis, importante no combate ao cancro, artrite, pressão arterial, obesidade, inflamações e até depressões. O grande teor alcalino deu-lhe importância no combate à covid-19. Pode ser consumido simples, em saladas ou aperitivos diversos. Eu gosto dele com limão ou vinho fino no espaço do caroço ou misturado com tomate, cebola e malaguetas picados, o famoso guacamole mexicano. Além da alimentação, o fruto é usado na cosmética e na indústria farmacêutica.
O abacate é originário do México e da América Central. O nome deriva de awa’katl, a sua designação em nauatle, a língua dos Astecas. O México produz um terço da colheita mundial. O Quénia e a África do Sul encontram-se entre os seus dez maiores exportadores. O mercado global desta fruta gerou, em 2019, quase 11 mil milhões de euros e prevê-se que em 2025 atinja os 15 mil milhões. Em 2019, os Norte-Americanos consumiram 1,3 milhões de toneladas desta pêra e, em 2020, os Europeus 1,1 milhões.
A produção do abacate é bastante simples e requer pouca mão-de-obra, excepto na apanha. O abacateiro é das árvores que melhor resiste ao calor das mudanças climáticas, produz sombra e contribui para a formação de chuva, funcionando como regulador ambiental.
A variedade Hass, nativa da Califórnia, é a mais apreciada: o fruto é maior com caroço menor, começa a produzir depois de dois a três anos da plantação, enquanto as espécies nativas levam até oito anos para começar a dar fruto, amadurece rapidamente e tem um tempo mais longo de prateleira.
Agricultores africanos estão a aproveitar a oportunidade, seguindo o êxito do Quénia e da África do Sul. Enxertam a variedade Hass nas espécies locais, mais resistentes às pragas. Quénia, África do Sul, Ruanda, República Democrática do Congo e Camarões formam o grupo dos maiores produtores de abacate na África. Uganda, Tanzânia, Zimbabué, Moçambique, Marrocos e Nigéria também estão a aumentar a sua produção. Etiópia, Angola, Maláui e Zâmbia têm grande potencial para entrar na produção do superfruto, que é exportado fresco, seco ou em óleo (um produto caro e de grande procura).
A produção africana é escoada sobretudo para a Europa e Médio Oriente. A China é um mercado promissor, pois consome mais de 32 mil toneladas por ano. Contudo, o Governo de Pequim é bastante exigente em relação às medidas fitossanitárias devido à mosca-da-fruta e outras pragas. A princípio, exigiu aos produtores quenianos – os primeiros a penetrar no mercado chinês – que exportassem as pêras descascadas e congeladas a temperaturas muito baixas, obrigando a um gasto extra com a rede de frio. Essas exigências foram, entretanto, aligeiradas. O uso de pesticidas ilegais no combate às pragas é outro desafio importante ao cultivo do abacate na África.
1 de maio de 2021
DIÁRIO DE UMA PÁSCOA
Etty (Esther) Hillesum era uma judia holandesa que sonhava ser escritora. Começou a escrever um diário em 1941. Tinha vinte e sete anos.
O seu Diário 1941-1943 é a obra intemporal de uma jovem que quer ser feliz respondendo às questões levantadas pela estação de grande sofrimento e extermínio em que vive através de uma visão lúcida e serena da realidade. Uma mulher que busca a felicidade na simplicidade desbravando as grandes planícies de tranquilidade, o seu imperativo moral.
Na primeira entrada, de 9 de março de 1941, expressa o «bloqueio espiritual» em que vive.
Cinco meses mais tarde, a 4 de agosto, deixa um anseio existencial profundo: «Mais tarde hei-de voltar a escrever: “Como a vida é bela e como estou feliz”, agora porém não consigo mesmo nada imaginar como irei sentir-me nesse momento».
De facto, a 16 de setembro de 1942, no meio de todos os excessos que foi o Holocausto, um tempo de grande e indizível sofrimento humano, anota: «Gostava de juntar as mãos e dizer: “Meninos, estou tão feliz e grata e acho a vida muitíssimo bela e cheia de sentido”. Sim, sim, bela e cheia de sentido, enquanto estou aqui à beira da cama do meu amigo morto, que morreu demasiado jovem, e eu posso ser deportada a qualquer instante para um local desconhecido. Meu Deus, estou-te tão grata por tudo».
Acabou por ser deportada com a família de Westerbork, na Holanda, para Auschwitz, na Polónia, a 7 de setembro de 1943. A Cruz Vermelha anunciou a sua morte a 30 de novembro.
Etty experimenta uma revolução copernicana na sua vida, porque o psicoterapeuta Julius Spier que a guiou para assumir e trabalhar todos os estados de alma, também lhe ensinou a dizer Deus.
A 22 de novembro de 1941 descreve-se como «a rapariga que não conseguia ajoelhar-se e que afinal aprendeu a fazê-lo no tapete áspero de fibra de coco de uma casa de banho desarrumada».
Remetendo para a experiência mística de Santo Agostinho — que lia — escreve: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo».
A 9 de setembro de 1942, grafa: «Continuo a não conseguir encontrar o tom certo para aquele sentimento de firmeza e felicidade que há em mim, onde também se incluem todo o sofrimento e tristeza».
Refletindo sobre o Holocausto, confessa: «Se este sofrimento não levar a um alargamento de horizontes, a uma maior humanidade pela derrocada de todas as mesquinhices e superficialidade desta vida, nesse caso foi em vão».
Na ânsia de viver para os outros, voluntariou-se para o campo de trânsito de Westerbork, na Holanda.
Quer ser o coração pensante de todo o campo de concentração.
«Não existe um poeta dentro de mim, mas sim um pedaço de Deus em mim que poderia desenvolver-se até se tornar poeta. Num campo assim tem que haver contudo um poeta que experiencie a vida lá, lá também, e que como poeta a possa cantar», escreveu no registo de 3 de outubro de 1942.
Li o diário de Etty a primeira vez ao ritmo apressado de comboio rápido entre Lisboa e Castelo Branco numa viagem de ia e volta. A estação da pandemia permitiu-me uma leitura mais lenta e cheia de apeadeiros para mergulhar nas profundezas da sua espiritualidade.
E de sentir o cheiro do jasmim junto à janela do seu quarto.