29 de dezembro de 2021

TENTAÇÕES DE NATAL

Caros amigos,

O Natal chegou pontualmente, como todos os anos. Um acontecimento que desafia e provoca a rotina cinzenta do nosso quotidiano. Uma graça que encontra resistência em nós e é ameaçada por tentações particulares. Este ano venho compartilhar com vocês ... precisamente as minhas tentações! Me ajudareis a vencê-las!

A primeira é a imobilidade. Esperei por este Natal na minha cadeira de rodas. Ele chegou e receio que vá embora e eu permaneça aqui imóvel, sem que nada mude. A ESPERANÇA de alguma mudança foi desapontada muitas vezes. Peço boleia, deixando-me levar pela comunidade, pelos ritos, pelas celebrações ... Mas sei que sem caminhar como os pastores e os Reis Magos não há Natal. Paralisado, peço ao Espírito Santo que me conceda as suas asas de águia. (Isaías 40,31)

Mas existe uma tentação ainda mais insidiosa. A do escândalo! Se a distância de Deus era um obstáculo para mim, agora sua proximidade me escandaliza! Um Deus criança, frágil, indefeso, mortal, é demais para a minha frágil . Um Deus que tem fome e chora, enquanto eu esperava que ele enxugasse as nossas lágrimas! Um Deus juiz que, em vez disso, se torna um réu! Aquele que deveria acabar com a injustiça, ao invés, a sofre! Que Deus é ele ?! Nós realmente teríamos esperado outro! Na minha consternação, peço ao Senhor Jesus a primeira bem-aventurança: Bem-aventurado aquele que não se escandalizar de mim (Mateus 11,6).

Mas não para por aí! Deus põe à prova também o meu AMOR instável! Ele chega mascarado, incógnito! Torna-se o estrangeiro que afirma ter o direito da cidadania em meu coração! Proclama a fraternidade universal! Mas como é possível?! Este Natal dele é definitivamente demasiado revolucionário e subversivo! Com o coração petrificado, a única esperança que me resta é pedir ao Pai que cumpra a sua promessa: Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne (Ezequiel 36,26).

Pai, não nos deixeis cair na tentação de desperdiçar a graça deste Natal!

Mesmo se Cristo nascesse mil ou dez mil vezes em Belém, de nada servirá se Ele não nascer pelo menos uma vez no teu coração (Angelus Silesius,1624-1677).

P. Manuel João, comboniano
Natal de 2021 
Castel d'Azzano (Verona) - Itália

13 de dezembro de 2021

ALEGRAI-VOS


No meio do advento e da quaresma a liturgia convida os católicos à alegria. No terceiro domingo do advento e no quarto domingo da quaresma, tempos litúrgicos penitenciais de roxo vestidos, os paramentos podem ser cor-de-rosa para alegrar as celebrações!

«Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos digo: alegrai-vos» — exorta Paulo a comunidade grega de Filipos e cada um de nós.

Estamos habituados a rezar a vida como um vale de lágrimas. O grande amor e a grande dor são o caminho que leva à transformação pessoal, escreve Richard Rohr, o místico franciscano norte-americano.

Contudo, as lágrimas e o sofrimento não são a estação derradeira do peregrinar cristão. «Aqueles que semeiam com lágrimas, vão recolher com alegria. À ida vão a chorar, carregando e lançando as sementes; no regresso cantam de alegria, transportando os feixes de espigas», proclama o salmista.

A alegria do Senhor — que é a nossa fortaleza — é o destino final de cada um! Não é por acaso que o Papa Francisco colocou a palavra alegria no título de três das suas exortações apostólicas: A alegria do Evangelho (o seu programa pontifical), A alegria do amor (sobre o matrimónio cristão), Alegrai-vos e exultai (sobre a santidade nos dias de hoje). 

O advento é tempo de espera alegre. Vivi as duas primeiras semanas deste tempo litúrgico numa espera dupla: a espera do Senhor que vem e a espera do visto ONG para poder voltar à Etiópia. Cada vez que o alarme do telemóvel tocava ia logo à caixa do correio, mas ou era mais um golo do FC Porto, uma atualização da situação da Covid, mensagens via Facebook, Messenger, WhatsApp ou Twitter…

Enquanto esperava tive oportunidade de encontrar ou re-encontrar muitas pessoas — como o Ababayo na foto, de rever lugares…

No advento, não esperamos sentados na berma da vida à espera do milagre do encontro: esperamos vivendo o dia-a-dia com alegria e disponibilidade.

A minha espera não terminou com a chegada do visto uma dezena de dias depois da data em que era esperado. Continuou quando cheguei ao aeroporto internacional de Bole munido de passaporte português e visto ONG na mão.

O oficial de fronteira que me recebeu — que aqui tem o nome pomposo de Agência Etíope para a Imigração, Nacionalidade e Eventos Vitais — mandou-me esperar. Deixou o guichê apressado e foi consultar o supervisor. Parecia que os dois documentos lhe queimavam as mãos.

O supervisor veio com ele e perguntou para que ONG trabalhava. Expliquei que tinha contrato de trabalho como professor voluntário com a Igreja Católica. Apresentei os respetivos documentos.

«Espera ali» — disse, brusco, apontado para um espaço onde não havia ninguém. Esperei uma meia hora. Ainda imaginei que me fossem deportar!

Finalmente o oficial chamou por mim, quis saber a que nível ensinava, carimbou o passaporte e disse para ir-me embora. Que alívio!

Em casa explicaram-me que, uma vez que muitos europeus e norte-americanos deixaram o país com receio de que o conflito com os tigrinos atingisse Adis-Abeba, a chegada de cidadãos desses países é tratada com suspeição!

Hoje entreguei o passaporte e o visto no Secretariado Católico e amanhã prossigo a viagem até Hawassa. Quarta-feira, se Deus quiser, almoço em casa com o P. Hipólito! Entretanto, não reconheceram a minha carta de condução — tinha caducado há dez anos — e ter de fazer exame de código e de condução. De novo! Desaja-me sorte.

10 de dezembro de 2021

FÉRIAS FORÇADAS







Viajei para a Etiópia com um visto de turista, mas, para obter a licença de residência e a autorização de trabalho — oficialmente sou professor voluntário, preciso de um visto ONG. A Igreja Católica na Etiópia — o meu empregador legal — é classificada como organização não governamental.

No fim do mês de novembro viajei para Nairobi, Quénia com um colega da R. D. do Congo que estava nas mesmas circunstâncias para pedir um visto ONG.

O processo — que normalmente leva dois a três dias (no caso do colega) — demorou quase duas semanas para mim. O governo etíope acusa o Oeste de apoiar os rebeldes tigrinos no confronto com o governo federal e pode ser que tenham demorado a passar o visto em retaliação.

Fomos acolhidos em Nairobi — uma cidade em crescimento constante, verde e agradável — na sede provincial dos combonianos. Os colegas receberam-nos fazendo jus à proverbial hospitalidade africana.

Nas duas semanas que aqui passei tive oportunidade de visitar cinco comunidades na capital e inteirar-me de algumas iniciativas da província.

Há dez anos tinha visitado o início da nova missão de Embakasi, numa zona residencial a tomar forma na planície do aeroporto.

Hoje, a paróquia está a funcionar a todo o gas e abriu uma escola secundária em Utawala. A escola, iniciada há quatro anos, tem 125 estudantes divididos por quatro turmas do oitavo ao décimo segundo anos e oito professores. O complexo conta com laboratórios de informática, fisico-química e biologia e um refeitório.

Os missionários planeiam alargar a oferta ao ensino infantil e primário e querem melhorar as instalações desportivas.

O programa de reabilitação Napenda Kuisishi é outro desenvolvimento interessante. Iniciado em 2006, destina-se a tratar e reintegrar jovens dos 13 aos 19 anos com dependência de drogas provenientes do bairro de lata de Korogocho, Nairobi. O programa tem em Kibiko uma quinta para acolher até 26 rapazes que precisam de internamento para serem tratados e reintegrados na sociedade.

Os que estão em idade escolar, voltam para a escola. Em 2017, os combonianos abriram na quinta um centro de formação para garantir um futuro profissional aos jovens recuperados nas áreas de carpintaria, eletricidade, pichelaria, construção civil e serralharia. A formação dura um ano e é totalmente gratuita.

Também visitei a comunidade de Kariobangi onde missionárias e missionários combonianos desenvolvem diversos programas pastorais e sociais, tendo inclusive com um pequeno banco. A igreja paroquial foi alargada e os trabalhos de decoração estão a ser ultimados.

Durante estas duas semanas, tive oportunidade de visitar a Universidade de Tangaza — que nasceu como faculdade de teologia e cresceu noutras áreas do saber — e o centro de estudos de teologia dos combonianos na área. Além de reencontrar o P. Silvestre Hategek’Imana, comboniano ugandês com quem trabalhei largos anos na Etiópia, descobri com surpresa e muita alegria que Ababayo Garramu — um jovem de Haro Waro, a missão onde servi durante seis lindos anos — está no segundo ano de teologia!

Celebrei a solenidade da Imaculada Conceição na casa das combonianas que trabalham no Sudão do Sul, uma oportunidade para rever três missionárias que conheci em Juba. E visitei o Centro de Kivuli no bairro de Riruta, que promove muitas pessoas necessitadas através do ensino, da saúde e do artesanato.

Nestas ferias forçadas também encontrei algumas pessoas amigas que não via há muito e que o acaso nos juntou na capital do Quénia.

Sábado, 11 de dezembro, voo para Adis-Abeba para retomar o meu serviço missionário em Qillenso. Sem mais férias forçadas, espero!

25 de novembro de 2021

REZAR JUNTOS





As Missionárias da Caridade, como são conhecidas oficialmente as irmãs de Santa Madre Teresa de Calcutá, construíram na cidade de Adola um pequeno bairro para alojar 12 famílias que necessitam de apoio porque têm membros com deficiências físicas ou mentais.

Uma das casinhas tem uma divisão que foi transformada em espaço de oração com um pequeno oratório de Nossa Senhora de Fátima.

Todas as segundas-feiras, por volta das cinco da tarde, alguns dos moradores do pequeno bairro juntam-se para a reza do terço com algumas das missionárias e outros católicos da cidade. 

Petrós, o catequista do hospício que as irmãs têm noutra parte de Adola, é quem preside à oração mariana.

Quando estou em Adola também participo. Faz-me muito bem!

Os pai-nossos e as ave-marias são rezados, de vagar, em tom de cantilena com um cântico e uma pequena introdução a cada dezena.

Desfruto imenso daquela hora que passa, tranquila, sem se dar conta, a embalar o coração. Um momento profundo, mágico mesmo, de oração para todos.

No fim do terço, Petrós lê o evangelho do dia e faz uma pequena reflexão-exortação em amárico, a língua comum da Etiópia, porque na cidade há uma mistura de etnias. No interior usamos a língua guji.

Para concluir, pede que dê a bênção. É o único ato que faço como padre! De resto, sou mais um membro do Povo de Deus que reza e canta.

Santo Agostinho escreveu: para vós sou bispo, mas convosco sou cristão!

Em Adola, no terço de segunda-feira, sou cristão com os cristãos. E sinto a força enorme do terço rezado em comunidade.

A missão também se faz com a oração comum!

Rezar juntos é celebrar a presença do Deus unitrino que nos une e abençoa, que é Pai e Mãe — como o invocam os gujis. Porque nos ama e está sedento do nosso amor.

Já comecei a presidir à eucaristia em guji nas comunidades de Qillenso e Adola. Guyaté, uma vizinha que frequenta o décimo segundo ano, corrige a homilia que escrevo e que depois leio.

Voltar a ser criança, reaprender o B A BA aos 61 anos é complicado, mas é possível. Até porque «de tudo sou capaz naquele que me empodera». Faz parte do processo de esvaziamento que a missão pede para poder entrar nesta cultura e viver com este povo a fraternidade ao redor de Jesus — o Senhor da Missão!

18 de novembro de 2021

ETIÓPIA: PRIMEIRAS IMPRESSÕES









O avião aterrou no aeroporto de Adis Abeba — a Nova Flor — por volta das seis da manhã de 30 de Outubro. Na contagem etíope, era zero horas, o início do novo dia. Para mim é a hora zero de uma nova fase de serviço missionário comboniano, 21 anos depois da minha primeira estada na Etiópia.

As montanhas gastas e enrugadas que desenham a linha do horizonte do aeroporto, em cambiantes cinza e laranja, coloridas pelo sol nascente, afirmam que estou a pisar um país antigo, nobre, grandioso. Sagrado.

A cidade parece mais limpa, arrojada, maior. As construções de zinco entre o aeroporto e o centro deram lugar a grandes edifícios modernos, de muitos andares. As avenidas, mais largas e bem pavimentadas. O metro de superfície atravessa, em viaduto, a capital com duas linhas.

O primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali dá, de sorriso rasgado, as boas-vindas de um póster gigante na empena de uma torre na Praça da Cruz, o centro da cidade, que também cresceu em altura com edifícios de linhas arquitectónicas ousadas.

Fui caminhar pelas ruas da cidade para a sentir. Um miúdo fixou-me com olhos grandes, ridentes e gritou «China!». Esperava ouvir «Frenji!», estrangeiro! A China está por detrás de boa parte do progresso da cidade e do país. A que custo, não sei! O trânsito, durante a semana, é caótico e o ar muito poluído.

Duas décadas passam depressa e deixam marcas indeléveis de mudança. Contudo, em Novembro de 2020 o país voltou à guerra no Estado do Tigray. Os tigrinos, a etnia que controlou o poder no país desde 1991 até 2018, pegaram em armas para obter mais autonomia do governo federal. Na capital, a guerra sente-se sobretudo através das filas longas para a compra de pão. E do estado de emergência desde o início de Novembro.

Vim para Qillenso, a 435 quilómetros a sul de Adis Abeba, a 5 de novembro, depois de iniciar o processo de legalização da minha estada no país.

A viagem revelou algumas novidades: os grandes bairros sociais na periferia da cidade com inúmeros autocarros para transportar os trabalhadores; a autoestrada entre a capital e Hawassa já tem uns 130 quilómetros — a portagem custa o equivalente a dois euros — e facilita imenso a viagem, tornando-a mais rápida e segura; no Vale de Rift há inúmeras estufas de plástico para o cultivo sobretudo de flores; nota-se um grande desenvolvimento do sector agrícola (muito trigo e tef já ceifados, plantações de vegetais e vinhas); vi mais igrejas ortodoxas ao longo da estrada em competição com as mesquitas; Langano, o lago de águas castanhas, é agora uma estância turística com muitos hotéis novos; Hawassa, a capital do Sul, cresceu muito e transformou-se numa cidade moderna, movimentada, asfaltada; a estrada para Neguele — que passa em Qillenso — está alcatroada até Kebre Menghist, a cidade a 30 quilómetros a sul da missão, que os gujis chamam de Adola, o lugar onde Deus criou as primeiras pessoas. O trabalho foi feito pelos chineses. Na parte sidamo há pontos bastante degradados a pedir intervenção urgente.

Chegamos a Qillenso à noite. Esperava-nos o padre Hippolyte Apedovi, um jovem comboniano do Togo há dois anos na Etiópia.

No sábado fiz o primeiro reconhecimento: a missão — que me acolheu há quase 30 anos — mudou muito. Tem eletricidade (quando há corrente). O sinal da rede móvel é fraco e os dados móveis só funcionam em Adola. A floresta foi devastada para dar lugar a campos de favas, ervilhas, cevada, trigo, milho, tef, café, couves, batatas. A colina, por cima da missão, é agora um eucaliptal. O campo de futebol foi aplanado pelos construtores da estrada. Temos uma pequena plantação de café. A TV via satélite, gratuita, apanha bem a CNN e a BBC de vez em quando.

A casa das irmãs está fechada. E o programa de promoção da mulher também. A clínica quase não funciona. Não há uma congregação com irmãs disponíveis para virem para Qillenso?

A escola, que antes tinha alunos da primeira à quarta classe, agora funciona da quinta à oitava. Tem 187 estudantes matriculados: 102 rapazes e 85 raparigas. As matrículas ainda não fecharam. Os catequistas vieram saudar-me. Alguns são dos meus tempos!

No sábado à tarde fomos a Adola, o novo centro pastoral da missão.

Fiquei impressionado com o desenvolvimento da cidade e, sobretudo, com a presença comboniana: uma biblioteca de apoio aos estudantes do secundário, uma igreja grande dedicada a São Daniel Comboni, um hostel para uma dúzia de alunas e alunos que precisam de apoio para estudar na cidade. Há nove capelas a funcionar na zona.

Celebramos a missa na capela de bambu com os utentes do hospício das irmãs de Madre Teresa, as Missionárias da Caridade: um oásis verde e tranquilo que acolhe bebés abandonados (uns 16), pessoas com doenças graves e terminais e distribui alimentos e remédios aos mais pobres. Cinco irmãs — quatro da Índia e uma da Roménia — encarnam a ternura de Deus por essa gente necessitada.

No domingo de manhã cedinho regressamos a Qillenso para a missa dominical às 9h00. A igrejinha da missão estava cheia.

As pessoas andam mais bem vestidas e parecem mais saudável (graças sobretudo à produção agrícola; antes cuidavam mais do gado que não dava rendimento, porque não o queriam vender). Os cânticos foram acompanhados por uma pequeno órgão eletrónico. Reconheci algumas pessoas idosas. Alguns jovens adultos disseram que jogámos futebol juntos (quando eram pequenos).

A eucaristia (de quase duas horas) terminou com a bênção de meia dúzia de estudantes que durante a semana iam fazer o exame de admissão à universidade. A maioria eram moças. Há 30 anos a carreira académica das meninas terminava para a maioria com a quarta classe. Agora já há jovens de Qillenso com curso superior.

Durante a semana visitamos a missão de Gosa, a uns 30 quilómetros a norte de Qillenso. O lugar onde antigamente só havia a missão cresceu muito. As irmãs e o pároco também partiram de lá e a missão é agoras uma capela de Qillenso. A clínica e a escola primária funcionam com pessoal local. Tem uma igreja nova, ampla. A floresta cedeu espaço à agricultura.

No fim de semana seguinte voltamos a Adola para a reunião dos catequistas da zona, para a missa dominical e para a assistência espiritual às irmãs.

A igreja nova e ampla, lindamente decorada, em anfiteatro, estava bem composta com jovens estudantes, na maioria. A aparelhagem de som de uma igreja protestante vizinha quase que nos abafava! Encontrei duas pessoas que me são muito queridas: Dabalá Elema — que nos ajudava nas traduções dos textos litúrgicos e dos Evangelhos para guji — e Uddessa Jarso — um adolescente que concertava as bolas de futebol e me ajudou na aprendizagem da língua. Ambos têm bons empregos, famílias bem estruturadas.

No domingo à tarde, presidi ao sepultamento de um bebé de quatro meses no cemitério do hospício das irmãs. Impressionou-me a multidão que se reuniu para apoiar à família devastada pela dor e rezar juntos naquele momento de dificuldade.

Em Adola, os ortodoxos começam a cantar e a rezar às 4h00 da manhã através do sistema de som das suas igrejas, em clara competição com os muçulmanos. A oração pode ir até às 10h00. Por isso, é preciso ir cedo para a cama — eu vou às 21h00 — para aproveitar o silêncio e dormir!

Em Adis Abeba, continuam a tratar dos papeis para oficializar a minha presença no país. E da carta de condução.

Por agora, ando às voltas com a língua guji. O meu organismo está a habituar-se de novo aos 2300 metros de altitude. Tempo de paciência e calma!

Aqui, em Qillenso, não se sente o ambiente de tensão provocado pelo levantamento dos tigrinos há um ano. A vida da aldeia decorre tranquila. A estrada regista grande movimento de pessoas e bens, até durante a noite. Em Adola, há recolher obrigatório desde as 19h00 às 5h30 da manhã.

3 de novembro de 2021

A RIQUEZA DO LEITE DE CAMELA


O leite de camela ganha o estatuto de superalimento e afirma-se como fonte de rendimento.

Algumas economias africanas têm beneficiado com as novas dietas divulgadas pelos influenciadores das redes sociais como o consumo de abacate – que já tratei nesta coluna – e a descoberta do tef, um cereal resistente, miúdo e muito nutritivo oriundo da Etiópia que é a base da injera, o pão nacional etíope.

Agora é o leite de camela que ganha o estatuto de superalimento depois de os nutricionistas terem vindo a afirmar os seus benefícios para a saúde. Encontra-se à venda fresco, congelado, em pó, em iogurte, queijo, gelados e até com vodca. Afigura-se como mais uma oportunidade económica para a África, onde vivem mais de 80 por cento da população global dos dromedários. A lista dos maiores produtores mundiais é encabeçada pelo Quénia, seguido da Somália, Mali, Etiópia e Arábia Saudita. Em 2020, o mercado global do leite de camela gerou mais de 2000 milhões de euros. A grande procura e oferta limitada do produto faz crescer o negócio em oito por cento ao ano.

O leite de camela é um recurso alimentar secular para as comunidades nómadas dos territórios áridos no Norte e Leste de África  e no Médio Oriente; é uma fonte nutritiva em tempos de seca, porque o animal continua a dar leite mesmo não bebendo água todos os dias.

A camela ganha à vaca no confronto directo porque o seu leite tem menos gorduras mono e polinsaturadas, é mais tolerado por ter pouca lactose, possui propriedades antimicrobianas e mais vitaminas e minerais (é dez vezes mais rico em ferro, zinco e vitamina C), tem proteínas de insulina e inibidoras das hepatites B e C.

Pela negativa, sobressai o preço – há muito menos camelas que vacas, uma vaca produz 24 litros por dia, enquanto a camela só dá seis, precisa de 13 meses de gestação e leva de 12 a 18 meses a amamentar a cria. Por outro lado, não vivem em explorações intensivas e não se adaptam bem à ordenha mecânica. Depois há o problema do armazenamento e transporte: o leite de camela não aguenta o processo de pasteurização – as proteínas reagem mal ao aquecimento, o que limita o transporte e tempo de prateleira do produto fresco. O problema está a ser resolvido com a introdução da rede de frio: distribuição de frigoríficos solares por parte de algumas ONG e introdução de máquinas de venda refrigeradas no Quénia, onde um litro de leite fresco custa 100 xelins, uns 78 cêntimos.

Uma curiosidade: em árabe as palavras jámal (camelo), jamal (bonito, lindo) e o feminino jamila – que também são nomes próprios – partilham a raiz jml. Quando vivia na Etiópia, todos os anos ia renovar os meus papéis de trabalho como professor numa zona onde havia muitos camelos com mulheres a vender o leite nas ruas. Ao ver os lábios feios, o olhar altivo e o andar desajeitado do animal, perguntava a mim mesmo onde estava a sua beleza. Um dia recebi a resposta: a beleza do camelo é uma beleza útil, porque tudo se aproveita – o leite, a bosta (para cozinhar), o pêlo (para tecidos), a carne, a pele (para tendas) e os ossos (para fabricar instrumentos de trabalho). Lindo!

29 de outubro de 2021

DE VOLTA A ONDE FUI FELIZ


«O missionário deve estar disposto a tudo: à alegria e à tristeza, à vida e à morte, ao abraço e à despedida. E a tudo isso estou disposto também eu», escreveu o jovem padre Daniel Comboni ao pai pouco depois de chegar a Santa Cruz, a missão entre os dincas que o acolheu na margem do Sudd, o grande pantanal do Sudão do Sul.

Visto esta disposição na hora em que me preparo para regressar à Etiópia 21 anos depois.

É a estação da alegria e da tristeza. Alegria de partir finalmente para um sonho que foi adiado em 2007 e em 2013 para aceitar outros serviços que me foram pedidos no Sudão do Sul e em Portugal.

Tristeza das saudades.

Da vida e da morte: é preciso dizer adeus para poder dizer olá!

Dos abraços e da despedida. E eu gosto muito de abraços…

E também dos agradecimentos!

O meu enorme bem-hajam, antes de mais, à Trindade bondosa por estes quase oito anos vividos dentro de portas exercendo um cargo de liderança que nunca ambicionei e que me fez crescer em humanidade e humildade!

Aos meus irmãos missionários pela confiança, paciência e fraternidade que me brindaram!

Aos meus pais, irmãs e restante família pelo apoio e pelo carinho!

A todas as amigas e amigos por encarnarem a ternura de Deus por mim.

Parto 29 anos mais velho do que da primeira vez! Com uma prótese na anca, com olhos e ouvidos mais cansados, com menos cabelo, dentes e forças para Qillenso, a missão que me acolheu, mas que está muito diferente 21 anos depois a começar pelo alcatrão na estrada.

Inspiram-me as palavras de Paulo aos cristãos de Tessalónica: «tanta afeição sentíamos por vós, que desejávamos ardentemente partilhar convosco não só o Evangelho de Deus mas a própria vida, tão queridos nos éreis».

Estou mais velho, mais cansado, mas parto por amor ao povo que me amou durante oito anos e que me fez renascer, para partilhar o Evangelho e a vida, a minha vida. O que dela resta…

Algumas vozes interpelam-me: «Porque partes? Aqui és tão preciso!». Alguém foi mais franca: «Parece-me uma inutilidade ires… Cá também há trabalho de missão, se calhar até bem mais necessário».

Peço emprestados uns versos à grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen: «E eu tenho de partir para salvar / Quem sou, para saber qual é o nome / Do profundo existir que me consome / Neste país de névoa e de não ser».

Parto porque tenho de partir, sair da minha zona de conforto, ir às periferias da vida dizer «Deus ama-te» através do meu amor, pobre e pequeno.

E levo-te contigo no coração: não vou sozinho, não ficas sozinha, não ficas sozinho.

Parto, porque a missão é um privilégio, é uma graça! De Deus.
                                                                                                                         José Vieira

10 de outubro de 2021

CELEBRAR COMBONI, CELEBRAR A MISSÃO


10 de Outubro de 2021, Festa de São Daniel Comboni

«Também nós, circundados como estamos de tal nuvem de testemunhas, deixando de lado todo o impedimento e todo o pecado, corramos com perseverança a prova que nos é proposta, tendo os olhos postos em Jesus, autor e consumador da fé» (Hebreus 12, 1-2)

Caríssimos confrades, saudações e orações de Roma e BOA FESTA do nosso Pai e Fundador São Daniel Comboni!

São Daniel Comboni tinha escrito a 23/09/1867, «o meu Plano é aprovado por um grande número de bispos… Por isso, eu tento por todos os meios. Se não conseguir nada, Deus contentar-se-á com a boa intenção. Claro que não me pouparei a fadigas, nem a viagens, nem a vida para que a empresa vingue: eu morrerei com a África nos lábios» (Escritos 1441). São Daniel faleceu a 10 de Outubro de 1881, há 140 anos, circundado dos seus missionários e missionárias, aos quais e às quais pediu a fidelidade à missão, fixando o seu olhar em Jesus e repetindo «Meu Jesus, misericórdia».

Regressei há poucos dias de Cartum onde São Daniel Comboni faleceu e onde a sua presença continua graças à vida, ao testemunho e ao serviço dos missionários e missionárias combonianos e da vida cristã de toda a igreja local. São Daniel Comboni chegou até nós hoje porque, antes de nós, muitos confrades, irmãs e leigos, que seguiram Jesus Cristo à maneira de São Daniel Comboni, nos transmitiram o seu carisma; o nosso coração está repleto de gratidão pela sua fidelidade e diz-lhes: OBRIGADO!

Hoje, celebramos o nosso Fundador que, no céu, vive e goza da comunhão dos Santos. Celebrámo-lo também porque com o dom do seu carisma, dom do Espírito Santo, ele continua a agir na vida quotidiana dos membros da Família Comboniana, dos nossos amigos, colaboradores, benfeitores e a estar presente nas nossas comunidades e nas nossas actividades.

Neste particular dia de 2021 celebram-se também, com grande alegria e renovada gratidão, diversos aniversários. Em Ellwangen concluiu-se o ano dedicado ao centenário da nossa presença na Alemanha e as nossas comunidades de Vengono e de Pádua completam 100 anos de presença. No mesmo dia no Brasil tem início o ano dedicado à reflexão sobre o 70º aniversário de presença comboniana que será celebrado em 2022. Sob o auspício deste dia, pensando quer no presente quer no futuro, abre-se uma nova comunidade e casa para confrades estudantes em Nairobi.

Sim! Celebrando São Daniel Comboni, somos todos chamados a deixar-nos renovar pelo Espírito Santo, que continuamente nos forma a ser discípulos missionários combonianos, chamados a caminhar hoje no mundo e a encarnar-nos sempre mais nas situações dos nossos irmãos e irmãs.

São Daniel Comboni recorda-nos ainda hoje o dever de anunciar e partilhar Jesus Cristo nossa Esperança, cujo Coração bate sempre pela humanidade sofredora; instiga-nos a testemunhá-lo na nossa vida quotidiana com espírito de ministerialidade na fraternidade; instiga-nos a viver na comunhão e no espírito de sinodalidade que nos faz todos partícipes da mesma missão e nos ensina a enriquecer-nos mutuamente no testemunho e no empenho para a construção do Reino de Deus, lá onde todos somos chamados a deixar-nos converter e a continuar o nosso caminho de santidade, que nos faz sempre mais humanos…

«Para um cristão, não é possível imaginar a própria missão na terra, sem a conceber como um caminho de santidade, porque “esta é, na verdade, a vontade de Deus: a vossa santificação” (1 Tessalonicenses 4,3). Cada santo é uma missão; é um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, num m omento determinado da história, um aspeto do Evangelho» (Papa Francisco na Alegrai-vos e exultai 19)

Confiemos as nossas comunidades e os nossos confrades à nossa Mãe Maria e a São Daniel Comboni, para que possamos obter as graças necessárias para viver bem o nosso caminho e a celebração do próximo Capítulo Geral, que celebraremos no mês de Junho de 2122,

Boa Festa de São Daniel Comboni!!!

P. Tesfaye Tadesse Gebresilasie MCCJ
Pelo Conselho Geral

4 de outubro de 2021

A LEVEZA DA ALEGRIA





Visitei Assis pela última vez em 2015. A peregrinação começou no complexo franciscano: uma sucessão de construções erguidas a partir de 1230 à volta e por cima do túmulo de São Francisco de Assis, pobre na morte como o foi na vida: uma coluna protegida por uma grade de ferro.

Deslumbrou-me a beleza leve e alegre dos frescos tanto da basílica inferior como da superior: uma simplicidade colorida, um despojamento tecnicolor, um hino policromático à memória do Santo de Assis, o irmão menor universal que nos faz todos irmãos. Fratelli tutti.

Esta festa de alegria leve e colorida contrasta com a sobriedade pétrea, sisuda e despojada da Igreja beneditina de São Pedro, o último templo da visita. Uma construção do século X refeita no século XIII que convida ao silêncio frio, contemplativo.

O contraste arquitetónico entre as construções beneditina e franciscana é uma parábola sobre a grande revolução espiritual que a simplicidade pobre e humilde de Francisco trouxe à igreja e ao mundo. 

A leveza da alegria franciscana continua a contagiar faz mais de 800 anos em nítido contraste com a solenidade despojada, contemplativa e essencial da Regra de São Bento sumariada no ideal do ora et labora. Reza e trabalha.

 

3 de outubro de 2021

AFRICANIZAR O CRISTIANISMO


A fé precisa de um processo de inculturação cultural.

Apesar de ter um nome difícil de pronunciar, Chimamanda Ngozi Adichie é um caso sério de sucesso na literatura anglófona africana contemporânea e uma conferencista notável e premiada, de pensamento original. Nasceu na Nigéria há 44 anos e foi estudar para os Estados Unidos da América com 19. Define-se como contadora de histórias. Tem três novelas publicadas (A Cor de Hibisco, Meio Sol Amarelo e Americanah), uma colecção de pequenos contos (A Coisa à Volta do Teu Pescoço) e três obras de não-ficção (Todos Devemos Ser Feministas, Querida Ijeawele – Como Educar para o Feminismo e Notas sobre o luto – uma reflexão sobre a perda do pai). A obra está traduzida em 31 línguas, português incluído.

Em Junho, deu uma entrevista em directo de Lagos, na Nigéria, ao programa Roda Vida da TV Cultura do Brasil. À pergunta sobre o papel da religião e como é que as religiões de matriz africana podem ajudar a construir um novo modelo de relações humanas, dá uma resposta interessante: «O mais importante a dizer, antes de mais nada, é que por todo o continente africano o cristianismo pentecostal é simplesmente avassalador e há coisas boas nele e outras que não são boas. As coisas boas acho que é o que as pessoas precisam. Na Nigéria, onde não têm acesso a políticas de saúde mental, de alguma forma a religião faz esse papel. Mas, ao mesmo tempo, há um certo tipo de cristianismo pentecostal que prega a prosperidade, e associa riquezas com bênçãos. Essa ideia de que se rezar Deus fá-lo rico ou lhe dá dinheiro, esse tipo de coisa é que acho perturbador.»

Sobre a religião tradicional africana, Chimamanda, que é católica, explica: «Uma das coisas que o Cristianismo fez ao chegar com o colonialismo foi ensinar a muitos africanos que a religião que estava lá, dos pais e dos antepassados, era má de alguma forma. Hoje em dia encontro muita gente a falar sobre as religiões tradicionais como se fossem, de certo modo, “demoníacas”, “diabólicas”, “más”. […] Realmente não existe muito uma consciência sobre as religiões tradicionais africanas entre os jovens nigerianos.»

E continua: «Porque o Cristianismo é tão padrão – no Sul da Nigéria, porque no Norte da Nigéria é o islão – aquilo em que estou cada vez mais interessada é em como africanizar o Cristianismo. Fui a um funeral na minha terra natal. Recordo olhar para a Santíssima Virgem Maria e pensar: “É tão estranho! Tem a estátua de uma mulher branca. Para começar é historicamente incorrecto, porque ela não podia ter sido loira e de olhos azuis.” Depois ficava a pensar: “Porque nunca pensamos em tentar africanizar estas imagens que reflectem a nossa fé? Certamente que é possível africanizar o Cristianismo e apropriarmo-nos um pouco mais dele”.»

Ao processo de africanização da liturgia, teologia e arte já em curso em muitos países chama-se inculturação. Porque «uma fé que não se incultura não é autêntica», como o Papa Francisco escreveu na mensagem ao Congresso sobre Vida Religiosa na América Latina e Caraíbas, em Agosto.

23 de setembro de 2021

REZO


Rezo com o olhar cheio do verde do monte
que se desdobra até ao horizonte pintado de roxo
das urzes que cheiram a mel.
Rezo com o marulhar da água do riacho,
murmúrio de vida por entre pedras gastas,
espelho cristalino da beleza divina.
Rezo com o silêncio cheio de vida,
respiro de Deus que me envolve.
Rezo com a brisa suave,
carícia divina
que afaga a pele e resfria o sol.
Rezo com o azul profundo do céu que me abraça e envolve.
Rezo com as nuvens brancas,
eternas caminheiras, companheiras no espaço sideral.
Rezo com as pedras do caminho que gemem sob os meus passos incertos,
cansados.
Rezo com quem comigo caminha,
anjo custódia que encarna o cuidar de Deus.
Rezo
porque Deus me abraça,
presente de amor,
vida para contemplar,
cuidar.
Rezo porque respiro.
Rezo, sim!

MAIATOS HOMENAGEIAM COMBONIANO FUTEBOLISTA




Um grupo de pessoas ligadas à antiga equipa do Futebol Clube da Maia reuniu-se na tarde de 22 de setembro no Seminário Comboniano da Maia para prestar homenagem ao padre Carlos Bascarán no primeiro aniversário do seu falecimento.

O padre Carlos jogou no Futebol Clube da Maia durante o tempo em que estudou teologia no Porto e desempenhou as funções de prefeito no seminário entre 1966 e 1970.

O comboniano espanhol, natural de Oviedo, faleceu vítima do Covid-19 a 22 de setembro de 2020 em Santa Rita, estado da Paraíba, no Nordeste do Brasil. Tinha 79 anos, a maioria dos quais passada naquele país.

O padre Joaquim Fonseca — companheiro de comunidade e de doença do padre Carlos — presidiu à eucaristia e recordou na homilia o missionário e a sua obras.

«Era um padre bom de bola e bom de missa», frisou, evocando o título de uma reportagem da Rede Globo sobre a presença do padre Carlos na equipa da Ferroviária de João Neiva.

Frei José António Fonseca Santos, padre capuchinho do Amial, no Porto, e colega de equipa do P. Carlos, também esteve presente na eucaristia e na homenagem.

Depois da Eucaristia, o grupo evocou a memória do antigo futebolista do clube, através de uma cerimónia simples: plantou uma oliveira e descerrou uma placa comemorativa no espaço contíguo ao campo de futebol do seminário.

«Padre jogador do F. C. Maia Carlos Bascarán Collantes (1941-2020) amigo que os maiatos guardam no coração» — perpetua a evocatória.

A evocação contou também com a apresentação do “Projeto Legal” (http://projetolegal.org.br/), uma das obras sociais que o padre Carlos mais amava.

O Projeto Legal atende desde abril de 2014 mais de 160 crianças e adolescentes de Marcos Moura, Município de Santa Rita através da educação e alimentação destas crianças de rua.

O padre Carlos além de jogador exímio de futebol era um músico notável. Usava a bola e a música como método missionário para estar com o seu povo.

Homem humilde e alegre, de longas barbas brancas, só se separava dos chinelos brasileiros para colocar as chuteiras.

Começou por estudar química na universidade de Oviedo. Depois trocou o curso pelo serviço missionário como comboniano em Portugal, Espanha e, sobretudo, no Brasil.

22 de setembro de 2021

OUTONO


Os dias minguam
em noites longas, resfriadas
a pedir aconchego
de corpo e coração.

As folhagens pintam-se,
vaidosas,
de ocres, castanhos, rubros,
fogo de artifício
de fim de festa...

Restam os dióspiros, solitários,
fogo-de-Deus,
bolas de natal ao natural
a decorar árvores nuas.

O sol, esgotado dos fulgores estivais,
arrefece
pálida luz,
que acaria a pele
sem o ardor estiolado
do verão passado.

Outono,
o ícone colorido do ocaso
que vai ressuscitar
na erupção da Primavera
depois do hibernar invernal.

A vida decorre:
estação segue estação,
coração alimenta coração.

16 de setembro de 2021

PAPA PÕE IGREJA CATÓLICA A MEXER


A Igreja tem sido representada como uma rocha que permanece firme perante as intempéries da história, bastião da fé e das certezas permanentes.

Contudo, no princípio a Igreja era entendida como a «Via» do Senhor (Actos 18, 25), um caminho, uma comunidade ativa, em movimento. Os cristãos são os «desta Via» (Actos 9, 2).

O Papa Francisco, ao escolher para o Sínodo dos Bispos de 2023 o tema «Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão», recupera este conceito dinâmico de Igreja que faz sair os católicos das igrejas em direção às periferias em missão.

O Papa não cessa de proclamar a sinodalidade — o caminhar juntos — como modo de ser Igreja, hoje, desde o acreditar ao evangelizar e governar a comunidade eclesial: «o caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio».

O Documento Preparatório para o próximo sínodo, publicado nestes dias, explica que «caminhando lado a lado e refletindo em conjunto sobre o camino percorrido, com o que for experimentando, a Igreja poderá aprender quais são os processos que a podem ajudar a viver a comunhão, a realizar a participação e a abrir-se à missão. Com efeito, o nosso “caminhar juntos” é o que mais implementa e manifesta a natureza da Igreja como Povo de Deus peregrino e missionário» (nº 1).

Como o próprio tema do sínodo indica, a sinodalidade traduz-se em comunhão, participação e missão numa interligação essencial.

«A comunhão, que compõe na unidade a variedade dos dons, dos carismas e dos ministérios, tem em vista a missão: uma Igreja sinodal é uma Igreja “em saída”, uma Igreja missionária, «com as portas abertas» (EG, n. 46). Isto inclui a chamada a aprofundar as relações com as outras Igrejas e comunidades cristãs, com as quais estamos unidos mediante o único Batismo», o documento explica no número 15, porque «é impensável “uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus”» (nº 6).

Este sínodo tem uma dinâmica própria precisamente para envolver todos os fiéis, ajudada por um vade-mécum.

Abre oficialmente em Roma a 9 de outubro e nas dioceses uma semana depois.

As perguntas dos dez núcleos temáticos publicadas no documento preparatório devem ser aprofundadas pelas igrejas locais em ampla consulta até abril de 2022.

As respostas, sintetizadas num máximo de dez páginas, vão servir de base para o Instrumento de trabalho 1 que estará pronto em setembro de 2022 para ser estudado nas reuniões internacionais das conferências episcopais e organismos equivalentes na África, Oceânia, Ásia, Médio Oriente, América Latina, Europa e América do Norte antes de março de 2023. 

Os sete documentos finais dessas assembleias serão a base para o Instrumento de trabalho nº 2, pronto até junho de 2023, para ser discutido no Sínodo em outubro de 2023.

2 de setembro de 2021

CONTRABANDO DE OURO


Negócio ilegal de ouro afecta economias da África de Leste e Austral.

A Global Initiative Against Transnational Organized Crime, com sede em Genebra, na Suíça, publicou em Maio um relatório sobre os mercados ilícitos de ouro na África Oriental e Austral. O documento analisa a mineração artesanal e em pequena escala de ouro no Sudão do Sul, Uganda, Quénia, Zimbabué e África do Sul e os seus circuitos de comercialização. De fora da investigação ficaram a Tanzânia, Moçambique e Madagascar, três importantes produtores, por falta de fundos e de tempo.

O ouro é explorado na região há mais de mil anos sobretudo por métodos artesanais. O seu potencial de desenvolvimento está a ser desviado dos canais oficiais de comercialização, apesar de alguns governos terem tentado regular a exploração informal do metal precioso. Trata-se de uma actividade altamente lucrativa e uma alternativa económica poderosa à agricultura de subsistência.

A investigação apresenta uma gama variada de sistemas de mineração – que vai dos métodos rudimentares usados pelos exploradores no Sudão do Sul aos meios altamente mecanizados empregados no Quénia e no Zimbabué, e a criminalidade associada à comercialização do metal precioso – que incluiu o contrabando de mercúrio (muito perigoso para a saúde e o meio ambiente) e a violência exercida sobre os mineiros.

A comercialização ilícita do ouro envolve uma multidão de actores. Começa nos exploradores – que trabalham em condições muito precárias, perigosas e violentas – e nos gangues que controlam as explorações. Passa pelas elites políticas e militares – que licenciam as minas e asseguram rotas de contrabando em troca de dividendos económicos. Continua nos intermediários que compram o ouro aos habitantes locais e o vendem nos grandes centros. E termina nos estrangeiros, maioritariamente chineses e indianos, embora também haja africanos envolvidos, que levam o ouro para a China, Índia, Países Baixos, Dubai, Emirados Árabes Unidos e Rússia.

O Uganda desempenha um papel importante no contrabando do ouro vindo do Sudão do Sul, da R. D. do Congo e do Quénia. As exportações atingem a ordem dos 850 milhões de euros por ano. Em 2019, o Governo declarou ter exportado pouco mais de dez toneladas de ouro para os Emirados Árabes Unidos, enquanto estes reportaram ter recebido mais de 40 toneladas. O país conta com sete refinarias de ouro legais, uma estrutura demasiado ampla para a produção nacional. Muito do metal vem dos países vizinhos com certificados de origem falsificados.

O ouro, dado o seu valor, é muito fácil de contrabandear: pode ser levado em pequenas quantidades num bolso ou numa carteira. Quantidades maiores, na ordem dos quilos, são transportadas sobretudo em camiões com bens essenciais ou madeira em compartimentos escondidos. O contrabando internacional conta com a ajuda das autoridades fronteiriças e inclui a transformação do ouro em jóias, usadas pelos passadores nos voos internacionais.

O relatório propõe que os governos, à semelhança da Tanzânia, regulem a mineração artesanal de ouro, uma actividade vital para muita gente.

25 de agosto de 2021

AS MULHERES, SUBMETAM-SE AOS SEUS MARIDOS


A segunda leitura da liturgia do domingo passado, tirada da Carta aos cristãos de Éfeso (5, 21-32) criou um verdadeiro vendaval nas redes sociais, com algumas figuras públicas a expressar indignação pelo seu conteúdo — no seu entender inapropriado para os dias que correm — e, pior ainda, por ter sido lida por uma mulher na missa transmitida pela RTP1.

O texto em causa é este: «Submetei-vos uns aos outros, no respeito que tendes a Cristo: 22 as mulheres, submetam-se aos seus maridos como ao Senhor, 23 porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da Igreja, seu Corpo, do qual é salvador. 24 Ora, como a Igreja se submete a Cristo, assim as mulheres se devem submeter em tudo aos maridos.

25 Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela, 26 para a santificar, purificando-a, no banho da água, pela palavra. 27 Ele quis santificá-la, purificando-a no batismo da água pela palavra da vida, para a apresentar a Si mesmo como Igreja cheia de glória, sem mancha nem ruga, nem coisa alguma semelhante, mas santa e imaculada. 28 Assim devem também os maridos amar as suas mulheres, como os seus corpos. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. 29 Ninguém, de facto, odiou jamais o seu corpo, antes o alimenta e lhe presta cuidados, como Cristo à Igreja; 30 porque nós somos membros do seu Corpo.

31 Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua mulher e serão os dois uma só carne. 32 Grande é este mistério; mas eu interpreto-o em relação a Cristo e à Igreja.»

A frase «as mulheres, submetam-se aos seus maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher» pode causar arrepios de indignação, mas está introduzida por outra mais abrangente: «Submetei-vos uns aos outros, no respeito que tendes a Cristo». A submissão não é o sistema patriarcal de domínio, mas a relação amorosa entre Jesus e a sua Igreja.

Este texto foi tirado dos «Códigos familiares» que fazem parte das cartas de São Paulo, traduzindo o Evangelho para o quotidiano.

O texto foi escrito há quase 2000 anos e não podemos lê-lo como se fosse escrito hoje. Depois, os textos bíblicos devem ser lidos em diálogo uns com os outros através de exegese para podermos chegar à sua essência.

Segundo o texto, a submissão é mútua e chama-se amor: submetei-vos uns anos outros como vos submeteis a Cristo. Por outras palavras: sede humildes nas vossas inter-relações pessoais.

A relação marido-esposa é modelada na relação de Cristo com a Igreja, baseada no amor que empodera.

Aí reside o conteúdo revolucionário do texto, que escapa a quem se choca com uma linguagem dita inapropriada: o autor propõe aos maridos que amem as suas esposas — essa é também uma submissão — como amam o seu corpo. Porque «quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo». Este imperativo tem algo de muito novo, porque baseia a relação esposa-esposo no amor mútuo e não na posse da mulher por parte do homem.

Para a teóloga Susana Vilas Boas «faltará, talvez, deixar clara a equivalência/correspondência bíblica que aqui é expressa entre o v. 22 (“as mulheres, submetam-se aos seus maridos como ao Senhor”) e o v. 25 (“Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela”).

Se se pretender converter para os nossos dias esta visão de submissão, ter-se-á de pensar a questão em duas valências.

A primeira diz respeito à submissão uns aos outros no respeito de Cristo - v. 21. Neste caso, poder-se-ia transpô-la para a relação filhos-pais (os filhos “submetem-se” aos pais que os amam ao ponto de por eles dar a vida).

Em relação à “submissão” da mulher, esta deve ser entendida não como “exigência de conduta” feminina na relação conjugal, mas como consequência natural de alguém que partilha, corresponde e retribuiu um amor capaz de dar a vida (v. 25).

De facto, se se tratasse de uma “subjugação” e não de uma “submissão ao amor”, como poderiam duas realidades tão assimétricas tornarem-se “uma só carne” (v. 32)?

A “submissão” nada tem de discriminatório, antes ela será sempre recíproca na medida em que a grandeza do amor também for recíproco.

Há que evitar literalismos, senão, não tarda, também os homens se irão questionar porque é que têm eles de abandonar os pais para se unir à sua esposa e não o contrário (v. 31).»

18 de agosto de 2021

SUDÃO DO SUL: REDE DE RÁDIOS CATÓLICA PREMIADA


A Rede de Rádios Católica do Sudão do Sul e dos Montes Nuba (CRN na sigla em inglês) é a vencedora do Prémio Paz 2021 da Pax Christi International.

O anúncio foi feito a 17 de agosto pelo próprio organismo: «Temos o prazer de anunciar que CRN é a galardoada com o Prémio Internacional da Paz Pax Christi 2021». 

O prémio reconhece a importância da CRN na construção do Sudão do Sul, o país mais jovem da África.

«Ao tomarem a sua decisão, os membros da direcção da Pax Christi International reconheceram os tremendos desafios que o Sudão do Sul enfrenta devido à guerra, pobreza extrema, falta de cuidados de saúde, educação, e infra-estruturas governamentais», a Pax Christi explica em comunicado. 

E continua: «Um sistema de rádio público coordenado e de base é uma ferramenta vital para alimentar a esperança e a paz no Sudão do Sul, uma vez que afecta as mudanças nas casas e comunidades em todo o país».

Greet Vanaerschot, secretário-geral do movimento, justifica a atribuição do prémio: «Esperamos que o prémio de paz dê um reconhecimento bem merecido à Rede de Rádios Católica e promova o apoio internacional à construção pacífica e democrática da nação».

Mary Ajith, diretora da CRN, recebeu a notícia com agrado. 

«O prémio encorajará o pessoal a duplicar os seus esforços na prestação de mais serviços ao nosso povo», disse. 

A CRN foi fundada pelas Missionárias e Missionários Combonianos para marcar a canonização de São Daniel Comboni a 5 de Outubro de 2003.

Começou a funcionar em 2007 com a inauguração da Rádio Bakhita em Juba.

A CRN conta com oito estações de rádio no Sudão do Sul e uma nos Montes Nubas, no Sudão, e uma redação central que prepara os boletins noticiosos nacionais, tendo uma audiência conjunta de mais de sete milhões de ouvintes.

A Pax Christi Internacional foi fundada na França a 13 de março de 1945 como movimento cristão para a reconciliação e a paz.

O Prémio Paz da Pax Christi International foi criado em 1988 para homenagear indivíduos e organizações contemporâneas defensores da paz, justiça e não-violência em diferentes partes do mundo. 

17 de agosto de 2021

SUDÃO DO SUL: DUAS FREIRAS MORTAS EM ATAQUE DE ESTRADA


Duas freiras foram mortas num ataque perpetrado por homens armados a dois meios de transporte público na estrada Nimule-Juba, no Sudão do Sul, na segunda-feira de manhã.

A notícia do assassinato de Regina Roba e Mary Abut, religiosas da Congregação das Irmãs do Sagrado Coração, encheu de consternação as redes sociais.

As irmãs tinham participado no domingo na festa do centenário da missão de Loa e regressavam a Juba.

O presidente da República, Salva Kiir Mayardit, e o vice-presidente, James Wani Igga, também participaram nos festejos.

A missão, aberta pelos Missionários Combonianos em 1921, é dedicada à Senhora da Assunção.

O ataque vitimou mais dois passageiros e um motociclista, atropelado por um pesado na confusão do ataque.

As forças de segurança já fizeram três prisões relacionadas com o ataque.

A Irmã Mary tinha 68 anos. Foi superiora geral do instituto. Dirigia uma escola primária privada em Juba.

A Irmã Regina trabalhava no sector da saúde.

A Congregação das Irmãs do Sagrado Coração foi fundada em Juba em 1954 pelo arcebispo comboniano Dom Sisto Mazzoldi.

Que o Senhor receba as duas servas fiéis e que o seu sangue traga a paz ao Sudão do Sul.

12 de agosto de 2021

RAMOS DA MESMA VIDE

 


O Conselho Geral convidou os missionários combonianos a prepararem-se para o XIX Capítulo Geral com o dito de Jesus «Eu sou a videira; vós os ramos. O que permanece em mim e Eu nele, este dá muito fruto» no coração.

Este ícone é poderoso e diz-me imenso. Nasci e cresci literalmente debaixo das ramadas de vides, à volta das casas e por cima dos caminhos públicos. Além das uvas, davam boa sombra.

A alegoria remete-nos para o essencial do serviço missionário do Instituto: somos chamados a Jesus para ser enviados dois a dois (Marcos 6, 7), convocados a estar para ir, a ser discípulos para ser missionários, discípulos missionários nas pisadas de São Daniel Comboni.



UM ÍCONE ANTIGO

Jesus colhe o ícone da videira no vasto repositório de imagens das Escrituras Judaicas que ilustram a relação íntima entre Deus e o seu povo.

O Salmo 80 — uma oração pela restauração de Israel — representa, nos versículos 9 a 16, a história do povo de Deus como uma videira que o Senhor transplantou do Egito: cresceu frondosa e depois foi devastada pelo javali selvagem. Termina com esta prece urgente e pungente: «Deus do universo, volta, por favor, olha lá do céu e vê: cuida desta vinha! Trata da cepa que a tua mão direita plantou, dos rebentos que fizeste crescer para nós».

Jesus explica a sua relação com o Pai e com os discípulos através da alegoria da videira (João 15, 1-8): o Pai é o agricultor, Ele é a verdadeira cepa e os discípulos são os seus ramos. Uma relação em rede, uma ramagem intrincada de relações verticais e horizontais.

Diz que o Agricultor usa a Palavra como tesoura da poda para que os ramos dêem muitos cachos: «todo o ramo que em mim não dá fruto, Ele corta-o. E limpa todo o que dá fruto para que dê mais fruto. Vós já estais limpos por causa da palavra que vos disse» (versículos 2 e 3).

Daí que a lectio divina, a leitura orante e dialogal da Palavra de Deus — o que é que a palavra diz, o que me diz, o que lhe digo — se afigure como a oração por excelência do humilde trabalhador da vinha do Senhor.

Esta forma veneranda de oração pessoal e comunitária cumpre o axioma evangelizados para evangelizar que São Paulo VI formula na Evangelii nuntiandi 15: «Evangelizadora como é, a Igreja começa por se evangelizar a si mesma».



CONJUGAR O VERBO PERMANECER

Depois, Jesus diz: «Eu sou a videira, vós os ramos. O que permanece em mim e Eu nele, este dá muito fruto, porque sem mim nada podeis fazer» (versículo 5).

Jesus usa sete vezes o verbo permanecer (=estar, ficar, habitar) nesta alegoria. Seguir Jesus é ser com Ele, porque fora ou além dele não se faz nada. Nem fora e além da comunidade.

João apresenta na primeira carta uma chave de leitura para conjugar o verbo permanecer: «Este é o seu mandamento: que acreditemos no Nome de seu Filho, Jesus Cristo e que nos amemos uns aos outros, conforme o mandamento que Ele nos deu. Aquele que guarda os seus mandamentos permanece em Deus e Deus nele» (1 João 3, 23-24).

A gramática do seguimento de Jesus, o estar com Ele, conjuga-se com os verbos acreditar (nEle) e amar (os irmãos).

Fica a tentação de uma leitura individualista do ícone da videira e dos ramos: a minha ligação individual com Jesus.

O individualismo é o filho maior do Iluminismo — o «penso, logo existo» fecha a pessoa na caixa-forte do eu-ismo — e afeta-nos como afetou a redação da Regra de Vida que se dirige na maioria dos casos ao missionário, ao indivíduo e não aos missionários, ao todo do Instituto. Somos filhos do nosso tempo!

Porém, as vides formam uma rede de ligações, um enramado de vida, uma afirmação de interdependência, de pertença mútua: alguns ramos brotam diretamente da cepa; a maioria liga-se entre si. Por outras palavras, a seiva da vide chega aos ramos através de uma rede capilar de conexões. À cepa e entre si.

A alegoria convida-nos a transpor a interpretação intimista e individualista da vocação e a visão utilitarista da comunidade como mesa, cama e roupa lavada. Kate Daniels afirma que «todos viemos para casa uns para os outros para sermos curados e saudados».

O chamamento é único e pessoal, mas acontece no contexto da comunidade, que é uma aliança de vida baseada na mutualidade do amor.

A vida comunitária vivida como experiência de amor reciprocado deixa de ser pena capital — São João Berchmans diz que vita communis est mea maxima penitentia — para ser vida melhor. Cenáculos de amantes e amados, em simultâneo, aprendendo a deixarmo-nos ser amados, admitindo que precisamos de ternura. Por tendência, somos auto-suficientes e custa reconhecer que necessitamos uns dos outros.

A comunidade é o laboratório onde testamos a força vital do anúncio simplificado que Deus ama-te, esse amor único e essencial, onde fazemos a experiência da amorosidade de Deus através do amor concreto dos confrades para depois a podermos anunciar e facilitar, encarnar com cada criatura e, sobretudo, com os mais pobres e abandonados.

O Papa Francisco explica a cordialidade do serviço missionário na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2021: «A boa nova do Evangelho difundiu-se pelo mundo, graças a encontros pessoa a pessoa, coração a coração: homens e mulheres que aceitaram o mesmo convite – «vem e verás –, conquistados por um «extra» de humanidade que transparecia brilhou no olhar, na palavra e nos gestos de pessoas que testemunhavam Jesus Cristo». A mística do encontro é o método missionário por excelência.



«SEM MIM NADA PODEIS FAZER»


O serviço missionário que o Instituto desenvolve através dos seus membros é participação na missão de Deus, encarnação da amorosidade trinitária em momentos históricos e geográficos concretos. Por isso, o Instituto não pode ser percebido como uma organização não-governamental — apesar de assim nos considerarem, por exemplo, na Etiópia — e o seu agir como exercício humanitário ou opção sócio-política.

Jesus envia os discípulos, porque, primeiro, o Pai o enviou: «Tal como o Pai me enviou, também em vos envio» (João 20, 21). E explica a dinâmica desse envio: «O que Eu digo, digo-o tal como o Pai me disse a mim».

O Papa Francisco escreveu numa mensagem para o Domingo da Palavra de Deus, que «toda a evangelização está fundada sobre a palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada».

Jesus partilha a missão que recebeu do Pai. E o amor, também: «assim como o Pai me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor» (João 15, 9).

Os percursos do serviço missionário de Jesus são os caminhos do serviço missionário do Instituto e de cada membro: aprendemos dEle o dizer e fazer, o amar, porque o Senhor da Missão é o único protótipo que seguimos. Aliás, como Ele seguiu o Pai. Não é possível ser missão para lá de Jesus ou sem Jesus. Precisamos dele para operarmos, para darmos muito fruto: «sem mim nada podeis fazer».

Podemos medir a missão em termos de construções, estatísticas, quilometragem. Paulo proclama no Cântico do Amor que «ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita» (1 Coríntios 13, 3).

É através da abundância do amor artesanal, dado e recebido, partilhado, que somos discípulos missionários, ramos produtivos da Videira do Pai.

29 de julho de 2021

DANÇA DA REDENÇÃO


Qualquer pecado que fizemos ou que fizermos já foi redimido pelo sangue de Cristo uma vez para sempre!

O que nos condena, mata não é o pecado, é o cerrar-se à graça salvífica de Deus.

Teimamos em tentarmos ser felizes sozinhos.

Em sermos infelizes sozinhos!

Porque a solidão não faz ninguém feliz.

Teimamos em ficar à margem do processo de conversão: passar da razão que tudo justifica ao coração que tudo ama!

O que nos espera à hora da morte não é a lista completa das nossas falhas, do nosso pecado em formato excell guardada nos arquivos do Paraíso.

Espera-nos, sim, o abraço terno e eterno do nosso Pai.

26 de julho de 2021

PÃO PARTILHADO, PÃO MULTIPLICADO


Os quatro evangelistas reportam o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes e são unânimes nos detalhes: Jesus com cinco pães e dois peixes mata a fome a 5000 homens – sem contar mulheres e crianças – num piquenicão num ermo verdejante. Foi, sem dúvida, um sinal muito importante.

Jesus, primeiro, explorou a solução de mercado: perguntou quanto custava comprar pão para toda a gente em vez de os mandar para casa de barriga vazia. Duzentos denários – duzentos dias de trabalho – não chegavam e a bolsa de Judas não comportava tal despesa.

Optou então pela solução local. Os discípulos trouxeram-lhe o que encontraram: cinco pães e dois peixes que – João explica – era a merenda de um rapazito. Os pães, feitos de farinha de cevada, eram o alimento dos pobres.

Jesus manda aos discípulos que sentem a multidão em grupos. Que se reclinem no prado – como nos banquetes romanos! Quer que a multidão seja tratada com dignidade, que sejam seus convidados.

Depois pegou nos pães, deu graças e distribuiu-os por todos. Três gestos eucarísticos. Fez o mesmo com os peixes. Todos comeram até ficarem fartos. Jesus mandou recolher as sobras: 12 cestos!

O milagre aconteceu, porque o rapazito partilhou o que tinha. O pouco com Deus é muito e o muito sem Deus nada – nota o povo na sua sabedoria milenar.

Este milagre é muito atual. Em termos de calorias, o Planeta produz comida suficiente para as mais de sete mil milhões de bocas que o habitam. Três quartos da comida são produzidos por pequenos agricultores, pastores e pescadores. Os pobres!

Contudo, todos os dias 811 milhões de pessoas vão dormir com fome por duas razões: açambarcamento de comida e o seu desperdício. Um terço dos alimentos acaba no lixo, porque ou foi mal armazenado e se estragou ou simplesmente porque foi deitado fora.

Jesus ensina que a solução para a fome no mundo está na partilha e na recolha das sobras. O Refood e o Banco Alimentar são dois gestos evangélicos.

19 de julho de 2021

DESCANSO E COMPAIXÃO


Os apóstolos reuniram-se junto de Jesus e anunciaram-lhe tudo quanto tinham feito e ensinado. E Ele disse-lhes: «Vinde a sós para um lugar deserto e descansai um pouco». De facto, eram tantos os que chegavam e partiam que eles nem sequer tinham tempo para comer. Partiram, então, a sós no barco, para um lugar deserto. Porém, citam-nos partir e muitos perceberam para onde iam; e de todas as cidades para lá acorreram a pé e chegaram antes deles. Ao sair, viu uma numerosa multidão e compadeceu-se profundamente deles, porque eram como ovelhas sem pastor, e começou a ensinar-lhes muitas coisas — conta o evangelista Marcos.

Esta porção do evangelho tem uma atualidade extraordinária.

Em plena estação de férias Jesus diz-nos o que disse aos apóstolos: «Vinde a sós para um lugar deserto e descansai um pouco».

Habituamo-nos a contabilizar o tempo em termos económicos — os ingleses dizem que tempo é dinheiro — e os nossos dias transformaram-se numa exaustiva etapa de contra-relógio.

Por outro lado, o próprio descanso tornou-se numa indústria que gera milhões.

Urge redescobrir e reencontrar o sentido do descanso, do ócio, do doce fazer nada — como dizem os italianos.

Aliás, o Salmo 95 apresenta a vida eterna, a salvação como participação no repouso de Deus.

Repousar não é entrar numas férias frenéticas onde tentamos enfiar todas as experiências possíveis.

Repousar é parar, criar um espaço ermo no coração para contemplar a natureza, ouvir a vida, sentir Deus que passa no sussurro ligeiro da brisa da tarde.

Voltamos ao texto evangélico: as pessoas conheciam bem as rotinas de Jesus e anteciparam-se na chegada. Jesus quando viu a multidão numerosa «compadeceu-se profundamente deles» porque eram como ovelhas sem pastor.

Os evangelhos usam uma dezena de vezes o verbo compadecer-se para sublinhar os sentimentos de Jesus.

A compaixão é a capacidade de sofrer com. Jesus comovia-se até às entranhas com a realidade das multidões. O biblista António Couto propõe traduzir o verbo compadecer-se por tripar. Um sentimento avassalador.

Os meios de comunicação social mediatizaram e banalizaram o sofrimento e a morte transformando-os em espetáculo e cada espectador num mirone a banquetear-se com os problemas de terceiros.

Urge recuperar o sentimento de compaixão, a solidariedade na dor e na alegria.

A Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II sobre a Igreja no Mundo atual abre com estas palavras desafiadoras: «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo e não há realidade alguma verdadeiramente humanasse não encontre eco no seu coração».

Todos somos pastores, temos uma relação de liderança e de cuidado com terceiros. A compaixão afigura-se como método para guiar os outros. Não dispersar nem dividir para reinar mas unir, juntar, cuidar!

14 de julho de 2021

A ESTRELA QUE NÃO SE APAGA


Na madrugada do Sábado Santo, correu a voz de que a gasolina tinha chegado. Finalmente! Não posso perder a ocasião, vou tentar mais uma vez, pensei decididamente. Morto de sede, o todo-o-terreno da missão comboniana estava imobilizado há cerca de dois meses. 

Ao nascer do sol eu já estava a chegar ao local anunciado para a distribuição. Outros dias como este vêm-me à mente: oxalá que hoje corra melhor do que aquele dia em que tive que passar a noite no carro, só tendo sido atendido ao meio-dia do dia seguinte.

De todos os modos, há que ser otimista e arriscar. Junto com o breviário e algum material de leitura, tenho comigo pão, tâmaras e água que me asseguram o essencial para o dia inteiro. 

À minha frente, vejo uma fila de carros que se estende por mais de um quilómetro. Aqui e ali, debaixo da jalabia, a longa túnica de alguns homens, entrevejo um facalhão atado ao braço, coisa tradicional entre muitos sudaneses. 

Chegam vozes de que há muito rebuliço e até mesmo bulha ao pé da bomba da gasolina a ponto de esta quase ter de parar de funcionar. Isso não seria grande novidade, pois tem acontecido noutras ocasiões. Mas desta o exército chegou bem a tempo de evitar o pior. 

Por volta das dez e meia da manhã, um dos motoristas aparece à janela do meu carro, na mão uma caçarola de ful, um prato tradicional de favas acabado de sair da cozinha improvisada aí ao lado, à sombra da frondosa nima, uma árvore muito comum neste país. Com um aceno de cabeça, apontou para o carro da frente e, antes de colocar o tacho em cima do capô, disse: «Itfaddal maana, ia khauaja», «Estrangeiro, faça favor de se juntar a nós».

Também não faltou o chá de hortelã que a mesma cozinheira trouxe para nós os quatro comensais. Apreciei o esforço encorajador e reconfortante de um deles: «Que Deus continue a dar-nos paciência para estar na fila». Engoliu o último trago e concluiu: «In shá Allah, se Deus quiser, amanhã antes do meio-dia já teremos sido despachados».

«Amanhã?! E a Vigília Pascal? E o domingo de Páscoa? De maneira nenhuma! Absolutamente… A gasolina é muito necessária, mas a Páscoa é a Páscoa». Depois de explicar aos meus amigos motoristas o sério motivo do meu gesto inesperado, abandonei a fila dos carros.

Ao entrar em casa, acolheu-me um ambiente de quietude e silêncio. O irmão Agostino, meu colega de missão, na capela improvisada para aquele dia, estava sentado no tapete, em adoração. Quase não deu por mim quando entrei naquele pequeno espaço sagrado.

A um dado momento, mostrou-me o livro da liturgia que tinha na mão, apontando-me a frase do Pregão Pascal em que meditava: «El kaukab elladhi la iaghib», «A estrela que não se apaga». Para nós, cristãos, a mensagem desta frase é uma verdade profunda e extraordinária: Jesus Cristo Ressuscitado é, na verdade, esse astro incomparável, único e insubstituível.

A noite está a chegar. A noite sagrada à qual a nossa liturgia árabe dá o belo nome de Sabt en Nour, Sábado da Luz. Talvez, quem sabe, hoje não vai haver electricidade. Uma noite escura. Nada de estranho, imaginei, pois já vem acontecendo também em noites anteriores. No entanto, também pode ser uma oportunidade que nos ajudará a entrar profundamente na Vigília Pascal, a mãe de todas as vigílias, como a chamou Santo Agostinho.

O céu estrelado é mais visível no deserto livre, sem ser estorvado pelas luzes artificiais da cidade, disse-me de forma convincente o colega Irmão missionário. Para ele, falar de astros não é uma conversa banal. Encontra um grande prazer em dormir ao ar livre, mesmo nas noites frias de inverno. Contempla a abóbada do céu salpicada de pontos de luz e adormece falando com as estrelas (o inverno no Sudão é frio mas seco, sem chuva). O Agostino conhece cada uma das constelações pelo nome. Eu não estava acostumado a olhar para o céu dessa forma, mas fico feliz por ele ter despertado em mim esse mesmo prazer.

Pensamentos luminosos habitaram-me durante o resto daquele dia. A minha mente continuava absorvida de astros e constelações das mais variadas formas e tamanhos. Tenho-as como distracções de que beneficiei como fonte e motivo de adoração naquele dia de Sábado da Luz.

Mas eu sei que não estava sozinho nesta forma de meditação. Prova disso era a voz do Agostino, que não se cansava de lançar para o ar o que não conseguia conter dentro de si. Porque é eterno. O refrão pascal saía de seus lábios em graciosas melodias e tons.

Chegou o momento em que a multidão de fiéis se reunia à volta da fogueira para o início da celebração da grande vigília.

O Círio Pascal, aceso no lume recém-benzido, ocupou o seu lugar diante dos fiéis que, por sua vez, começaram a cantar a luz de Cristo. Momentos depois, o mesmo Círio pousava no seu posto de honra ao lado do ambão, de onde o Padre Faustin cantou brilhante e solenemente o Pregão Pascal. E a grandiosa frase do Sábado da Luz soou com todo o seu elevado e profundo significado: «El kaukab elladhi la iaghib», «A estrela que não desvanece». Instantaneamente, os meus olhos procuraram o Agostino, que prontamente me respondeu com um sorriso afirmativo.

Depois da celebração da Vigília Pascal, enquanto saboreávamos em casa os khabáiz (doces típicos da festa) saímos para o pátio. Como tantas outras vezes, contemplámos a maravilha do céu estrelado. A sério ou a brincar, sentia-me suficientemente à vontade para provocar o meu colega missionário: a estrela do Pregão Pascal que tão bem acabámos de ouvir cantar, essa não a vês tu nas tuas noites estreladas, gracejei.

Ao que ele respondeu imediatamente e sem hesitar: «Pelo contrário, vejo-a sempre. Não é apenas o luzeiro mais brilhante, mas também a rainha de todas as estrelas. E a maravilha é que não é preciso esperar a noite para a contemplar. É sempre visível e oferece-nos a alegria da sua presença. Ela não depende do tempo e do espaço. Está em todo lugar. A qualquer momento. ‘El kaukab elladhi la iaghib’. A estrela que não se apaga. O astro que nunca desaparece».

Feliz C Martins 
El Obeid, Sudão, 2021