31 de dezembro de 2006

Rostos da Rádio Bakhita

John Aurelio, Cecília Sierra (directora da Rádio Bakhita), Alex e Alberto (administrador e director técnico)

Elena Balatti (directora-geral da rede), Martin, Emmanuel e Betty

Patrick e Julie

José Vieira (director de informação), William e Ir. Paola Moggi (directora-geral indigitada da rede)

As emissões experimentais da Rádio Bakhita continuam com alguns sobressaltos. No dia 29 o sinal apagou-se a meio da transmissão. O transformador do receptor do sistema de ligação entre o estúdio e a antena queimou-se.
O transformador é uma peça pequena e barata que em Portugal se encontra em qualquer loja de material eléctrico. Aqui é muito difícil de encontrar. O técnico que montou o sistema, encontrou uma solução provisória, a partir de Itália via Internet, até mandar um transformador novo. Rádio Bakhita está de novo no ar. Hoje transmitiu em directo da Catedral a missa em árabe, seguida de música ligeira. À tarde a emissão prosseguiu normalmente.
Neste momento decorre a fase de preparação intensiva dos funcionários da estação depois da introdução da equipa comboniana aos programas de software e às rotinas de produção da rádio.
Se tudo correr bem e não houver «acidentes» graves pelo meio, a Rádio Bakhita inaugura as emissões regulares a 8 de Fevereiro, dia em que a Igreja celebra a memória da santa sudanesa.
A estação terá duas emissões diárias, a partir das sete da manhã e das sete da tarde. Além da música, vai ter dois blocos de notícias e programas informativos, religiosos e de serviço público.


30 de dezembro de 2006

Mil palavras

Mãe Madi © J. Vieira

É Natal!

Recentemente estive em Nampula. Pela manhã fui comprar o pão para o pequeno-almoço na padaria da rotunda do hospital. Um miúdo ofereceu-se para me guardar o carro. Disse-lhe que não era preciso, que só demorava um minuto. Ao sair, porém dei-lhe um pão. Era isso que ele desejava. Vieram logo outros. Disse-lhes que não dava mais. Entrei no carro e vi o pão que ofereci a ser fragmentado pelo rapaz para dar a todos os colegas. Todos meninos de rua que vivem aos bandos na cidade de Nampula. Não resisti ao testemunho. Desci de novo do carro, comprei mais pão e dei um a cada um, e, em primeiro lugar, ao que soube repartir o pão que tinha recebido antes: e é Natal!!!

P. Alberto Vieira, missionário comboniano em Iapala, arquidiocese de Nampula, no Norte de Moçambique

29 de dezembro de 2006

O Menino Jesus

Nesse tempo os Reis Magos ainda não existiam (ou sou eu que não me lembro deles) nem havia o costume de armar presépios com a vaca, o burro e o resto da companhia. Pelo menos na nossa casa. Deixava-se à noite o sapato («o sapatinho») na chaminé, ao lado dos fogareiros de petróleo, e na manhã seguinte ia-se ver o que o Menino Jesus lá teria deixado. Sim, naquele tempo era o Menino Jesus quem descia pela chaminé, não ficava deitado nas palhinhas, de umbigo ao léu, à espera de que os pastores lhe levassem o leite e o queijo, porque disto, sim, iria precisar para viver, não de ouro-incenso-e-mirra dos magos, que, como se sabe, só lhe trouxeram amargos de boca. O Menino Jesus daquela época ainda era um Menino Jesus que trabalhava, que se esforçava por ser útil à sociedade, enfim, um proletário como tantos outros. Em todo o caso, os mais pequenos da casa tínhamos as nossas dúvidas: custava a acreditar que o Menino Jesus estivesse disposto a emporcalhar a brancura da sua veste descendo e subindo toda a noite por paredes cobertas daquela fuligem negra e pegajosa que revestia o interior das chaminés.
José Saramago em «As Pequenas Memórias»

Caty

Olá! Chamo-me Caterina, Caty para os amigos! Sou a gata dos missionários combonianos de Juba. Gosto muito de colinho, sobretudo do do Hans e do Zé. E de apanhar ratos – que aqui são aos montes. E de distrair o pessoal durante a oração da amanhã e da tarde, debaixo da buganvília e da palmeira, no adro da pequena capela. Corro, roço-me nas pernas, brinco com o meu rabo ou com as ervas… Então com o gato-bebé das missionárias era uma festa. Mas o enfezado morreu. A irmã Doménica ficou muito triste, porque lhe dava todos os dias leitinho com uma seringa. Diz que morreu de hipotermia: a noite de Natal esteve fresca e o bichanito nunca recuperou. Pena. Mas tenho dois pretendentes: um gato preto e um branco-sujo, grandalhão. O Hans quer que eu engravide depressa para com os filhotes dar cabo das ratazanas que andam por aqui. Mas ainda sou novinha. Dizem que tenho quatro meses!

28 de dezembro de 2006

Refracções

SE ME PUDERES OUVIR

O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui

à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos

mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo

José Tolentino Mendonça, em «Baldios».
Obrigado, Marujo!

O presente


Salva Kiir, o presidente do Sul do Sudão e primeiro vice-presidente da República do Sudão, é um católico praticante. Nos domingos em que está em Juba, costuma ir à catedral, no bairro de Kator, à missa das 11h00, em inglês, acompanhado pelo respectivo séquito.
Talvez por isso o Governo do Sul do Sudão (GoSS) decidiu oferecer à cinquentenária sé arcebispal de Juba um sistema de ar condicionado com o respectivo gerador industrial. Dá jeito num clima tropical como este com temperaturas acima dos 30ºC.
O que chama à atenção é que, juntamente com o ar condicionado, vieram também sete sofás para o bem-estar das altas individualidades. Até são confortáveis! Um senão: esqueceram-se de colocar uma máquina de café e outras bebidas para amenizar alguma homilia mais «secante». Porque as mesinhas já lá estão à frente dos sofás!

25 de dezembro de 2006

Natal em Juba

Presépio da Catedral de Juba © J. Vieira
O Natal em Juba tem uma marca jovem forte. Os mais novos estavam em maioria na assembleia que encheu a Catedral de Santa Teresinha, no bairro de Kator, para celebrar a Missa do Galo. E também eram sobretudo adolescentes e jovens e vestidas a preceito as largas centenas de fiéis que saíam da igreja paroquial de São José, quando regressávamos a casa depois das 2h30 da manhã.
Dom Paulino Lukudu, arcebispo de Juba, presidiu à Eucaristia da catedral em inglês e árabe. Um coro jovem deu brilho e movimento à celebração através dos cânticos em polifonia, tambores e palmas e do oscilar ritmado dos corpos.
A assembleia entrecortou com palmas, gritos e assobios a homilia do arcebispo, proferida em árabe.
A Missa de Natal demorou cerca de duas horas e foi transmitida em directo pela Rádio Bakhita. O arcebispo saudou com entusiasmo o início das emissões experimentais da emissora-mãe da Cadeia Católica de Rádio do Sudão e agradeceu aos institutos combonianos, representados pelos respectivos superiores provinciais e pelo vigário-geral do ramo masculino, este presente de Natal.
Na noite de Natal, as autoridades levantaram o recolher obrigatório em vigor das 22h00 às 5h00. As ruas de Juba estavam em festa com inúmeras motos e viaturas ligeiras a circular.
Rádio Bakhita 91 FM fez a primeira emissão contínua programada no sábado, 23 de Dezembro, com música e depoimentos recolhidos por repórteres nas ruas da cidade. No domingo voltou ao ar por volta das 22h30 com música de Natal e mensagens de dignitários católicos e do bispo anglicano de Juba. Hoje voltou a estar em directo da catedral com a missa em inglês depois de meia hora com canções alusivas à quadra natalícia.
As emissões experimentais têm corrido bem e servem sobretudo para a equipa técnica se familiarizar com as rotinas do estúdio e com o software. O sinal pode ser captado em boas condições num raio de mais de 30 quilómetros por um auditório de cerca de 500 mil ouvintes.

Natal seguro

Da ACA-M, Associação de Cidadãos Auto-Motorizados

24 de dezembro de 2006

Carta ao Menino Jesus

Meu querido Menino Jesus,
Quando era puto, ensinaram-me que és tu que trazes os presentes na noite de Natal. Depois apareceu esse velhote de barbas brancas vestido à Benfica – que mau gosto! – a distribuir as prendas. Não tenho nada contra ele, mas o pai-natal é cada um de nós, porque «é Natal quando cada um quiser».
O Natal é o teu dia de anos! Às vezes esquecemo-nos disso… Tem piada: fazes anos e dás os presentes. És bué fixe. Por isso é que resolvi escrever-te alguns pedidos.
Antes de mais, quero que abençoes a pessoa que está a ler esta carta. Sabes? Gosto muito dela. Enche-a da tua paz e deixa-lhe um 2007 cheio de bondade!
Depois, peço a tua bênção para as crianças do Mundo. O Evangelho conta que nasceste fora da cidade, entre os excluídos, e que foste refugiado no Egipto para escapar à violência invejosa de Herodes. Há milhões de menores traficados, escravizados, forçados a pegar em armas ou a entrar na prostituição. Nunca vão ser meninos! Cuida deles de uma forma especial. Sobretudo das crianças do Darfur, da Palestina, do Iraque que (sobre)vivem e crescem no meio da violência e da morte.
Recorda-te também das pessoas do Sul do Sudão. Andam ocupadas a reconstruir as vidas depois de 20 anos de guerra. Muitas sentem-se frustradas. Que ultrapassem o ódio e os desejos de vingança! E que os dirigentes usem os recursos humanos, económicos, naturais, sociais e culturais para o bem comum. Sabes? Aqui dizem que a sigla GoSS – Governo do Sul do Sudão em inglês – também quer dizer Government of Serf Service, Governo de Auto Abastecimento!
Abençoa a equipa que está a iniciar a Rede Católica de Rádio do Sudão. Ser boa notícia neste contexto é um desafio enorme. Dá-nos audácia e coragem. E um forte sentido de equipa.
Com a tua ajuda, que os vizinhos descubram que os amas através das missionárias e dos missionários que vivem no espaço chamado Comboni House.
Para mim, já me deste tanto que até tenho vergonha de te pedir mais. Deste-me esta vida linda, a minha família, os amigos, a família comboniana… Faz que me sinta feliz no calor e no pó desta cidade em ebulição. É pedir muito?
Ah! Não te preocupes. A minha casa não tem chaminé e eu não uso sapatos. Só sandálias! Por isso, deixa os presentes no corredor à porta do meu quarto!
Um xi-coração do teu mano Zé

23 de dezembro de 2006

Tira a mãozinha

Estavam um inglês, um alemão e um português num café quando o inglês diz aos outros:
- Esse que aí entrou é igualzinho ao Jesus Cristo.
- Pois, pois! - dizem os outros.
- Estou-vos a dizer. A barba, a túnica....
O inglês levanta-se, dirige-se ao homem e pergunta:
- Tu és Jesus Cristo, não é verdade?
- Eu? Que ideia!
- Eu acho que sim. Tu és Jesus Cristo.
- Já disse que não. Mas fala mais baixo.
- Eu sei que tu és Jesus Cristo
Tanto insiste que o homem lhe diz baixinho:
- Sou efectivamente Jesus Cristo mas fala baixo e não digas a senão isto fica aqui um pandemónio.
- Fiz uma lesão no joelho em pequeno. Cura-me.
- Milagres não. Tu vais contar aos teus amigos e eu passo a tarde a fazer milagres.
O inglês tanto insiste que Jesus Cristo põe-lhe a mão sobre o joelho e cura-o.
- Obrigado. Ficarei eternamente grato - agradece, emocionado, o inglês.
- Sim, sim. Não grites e vai-te embora. Não contes a ninguém.
O inglês, mal chegou à mesa, contou aos amigos. O alemão levantou-se logo e dirigiu-se a ele.
- O meu amigo disse-me que eras Jesus Cristo e que o curaste. Tenho um olho de vidro. Cura-me.
- Não sou nada Jesus Cristo. Fala baixo.
O alemão tanto insistiu que Jesus Cristo passou-lhe a mão pelos olhos e curou- o.
- Vai-te agora embora e não contes a ninguém.
Mas Jesus Cristo bem o viu a contar a história aos amigos e ficou à espera de ver o português ir ter com ele. O tempo foi passando e nada.
Mordido pela curiosidade dirigiu-se à mesa dos três amigos e, pondo a mão sobre o ombro do português, começou a perguntar:
- E tu, não queres que.....
O português levanta-se de um salto, afastando-se dele:
- Eh, tira as mãozinhas que eu estou de baixa!!!

Obrigado, Aniceto!

22 de dezembro de 2006

Darfur

O PRESÉPIO DE UTACH

Dezembro chegou. O dia 25 aproxima-se e a preparação do Natal não deixa ninguém desocupado. Mas não haverá luzinhas ou outro tipo de enfeites ou decorações. Vai ser uma coisa muito discreta. O «Natal das Luzes», certamente, não será tentação para nós, cristãos de Nyala. Simplesmente pelo facto de que a Igreja, neste canto do mundo, não tem o direito de existir, oficialmente. Mas vamos dando graças a Deus e optando por não dar nas vistas de quem tem a faca e o queijo na mão. A luzinha que brilha dentro de cada um de nós, essa ninguém a poderá apagar e não precisa de documentos dos soberanos deste mundo. Esta situação convida-nos a voltar a Belém da Judeia, onde há mais de dois mil nos atrás, aconteceu o verdadeiro presépio. «Natal sem Luzes». Sem luzes, mas não sem o esplendor e brilho daquele que é a Luz do mundo
Ai, acabou-se o alcatrão! Que remédio senão abrandar! É que o selim não é de estofo! Mais umas quantas pedaladas e já estou no «suq», o mercado. Hoje o desvio é obrigatório. A estrada principal é para as Forças Armadas que vão chegar. «Vêm trazer a paz ao Darfur» – anunciou a emissora nacional. Oxalá fosse verdade! Mas como podem trazer a paz, se nas mãos têm instrumentos de guerra?
Desço da bicicleta e sou mais um no meio da multidão que se move, acotovelando-se, à procura de viver. Lentamente, vou fazendo caminho por entre a densa massa humana. Aparelhos de rádio ecoam no ar com discursos a cruzarem-se com músicas variadas. Vendedores gritam o melhor e mais barato produto do mundo. Cestas e potes com sementes e especiarias embebedam a atmosfera com os seus cheiros misturados. De repente, a bicicleta empancou. É o brincalhão do Yohana, um dos membros do conselho paroquial. Agarrando a roda dianteira com a sua mãozona, sai-se com mais uma das suas gracinhas de costume: «Abuna - padre, e que tal se fizéssemos aqui a celebração da missa de Natal, no meio desta multidão?» Outras pessoas, que não conheço, cumprimentam-me e convidam a comprar na sua barraca. Sim, quase todos de religião muçulmana, pertencentes às muitas e variadas tribos darfurianas. Mas todos filhos de Deus que buscam a sua Luz.
Finalmente, livre do «suq», estou na direcção de Utach – o campo de refugiados mais próximo, mesmo à saída da cidade. Estendo o olhar ao longe: um mar de tendas brancas e azuis. À mediada que me aproximo e entro nas ruas desta «imensa aldeia» improvisada forçadamente pela guerra do Darfur, sinto, dentro de mim, que estou a pisar terra sagrada. «Natal sem Luzes». De bicicleta à mão, vou-me perdendo e encontrando em vielas todas tão iguais. Bandos de meninos vestidos de poeira, rodeados de moscas que procuram amizades. São crianças iguais às de todo o mundo. Brincam e correm, contentes, não sabendo como e porquê vieram aqui parar. Ao passar no meio delas, repetem-me o já conhecido refrão: «Khauaja (estrangeiro), okay, Khauaja, okay». Palavras que aprenderam e repetem quando vêem algum branco funcionário das organizações de ajuda humanitária.
De repente, vejo que tenho um traquina – o mais crescido entre eles – sentado no suporte da bicicleta. Deve saber quem eu sou, pois é a segunda vez que venho a este lugar. Mas, antes que eu interviesse, ele antecipou-se e disse: «É ali mais à frente».
Deixo-me guiar pelo meu novo amigo que fala num sotaque darfuriano muito carregado. O pequeno continua a dizer coisas que não entendo por completo, até que, finalmente, ouço que diz: «O meu nome é Khamis e tu és o abuna».
A notícia deve ter passado de tenda em tenda. Muita gente aproxima-se para ver o espectáculo do Khamis que conquistou o selim e o abuna que empurra a bicicleta… Mas logo dou conta que o verdadeiro espectáculo é outro: pensam que vim distribuir alimentos. E ao verem-me de mãos vazias, a desilusão aparece marcada nos seus rostos. A minha dor aumenta porque não lhes posso valer.
Mais uma rua. E outra. Num salto, o Khamis, pôs-se no chão e convidou-me a entrar: «A casa de Deus é aqui.»
Era uma tenda maior que as outras onde estavam mais de meia centena de pessoas de todas as idades. Cantavam e rezavam guiados pelo catequista Joseph que dirigia o encontro de oração. Ouvi o meu amigo Khamis chamar mãe a uma senhora ainda jovem. Dei-lhe os parabéns por ter um filho tão esperto. E ela, entre soluços, contou a história daquela que foi a mãe do Khamis. Maria era o seu nome. Fora morta a tiro pelos «Janjaweed», as milícias árabes apoiadas pelo Governo, quando fugia da sua casa em chamas que esses mesmos homens sanguinários tinham incendiado. Levanto os olhos e vejo braços que se vão erguendo. Percebi então que muitos dos presentes eram dessa mesma aldeia. Ao meu lado, um jovem acrescentou, tristemente: «Famílias inteiras foram mortas nessa mesma hora, ali, com a Maria; os seus corpos ficaram espalhados no chão». E, a custo, concluiu: «Fugimos sem os ter podido sepultar; que Deus nos perdoe.»
O encontro está para acabar. Alguém lembra que se faça um presépio. Chovem ideias. Será um presépio vivo. Aquela tenda-casa de Deus representará o acampamento de Utach, abraçando todo o Darfur e o mundo inteiro. Não vão trazer bonequinhos nem figuras de fora. «No dia 25 nós estaremos aqui» – disseram com determinação. Sim, acredito e estou certo de que eles farão uma linda representação. Eles mesmos vão ser o presépio. «Natal sem Luzes» onde abunda a simplicidade e o brilho da fé que ilumina e conduz à salvação.
À tardinha, de regresso a casa, as duas rodas pediam mais velocidade, mas os pedais não tinham culpa. Parte de mim estava ainda no acampamento que há pouco tinha deixado. Aquele presépio não vai morrer. Não haverá «janjaweed» que o mate. Estará sempre vivo. O Filho de Deus veio montar a sua tenda no meio do seu povo. Deus connosco. Emanuel. A sua Luz brilhará para sempre! Gloria a Deus no Céu e paz na terra…
Feliz da Costa Martins
Missionário Comboniano

Natal Madi




A comunidade Madi celebrou o Natal com uma festa, ontem à tarde. O evento decorreu junto à igreja que o grupo usa, atrás da Praça da Paz.
Os participantes entretiveram-se com uma mistura de feijão-frade com sésamo enquanto esperavam. A festa estava marcada para as 15h00, mas começou às 17h30.
A comemoração principiou com uma celebração da palavra, presidida pelo vigário-geral de Juba, padre Thomas Iga. O grupo de jovens executou algumas canções, acompanhadas por instrumentos tradicionais de cordas.
Depois vieram as saudações e discursos em árabe de Juba. As duas representantes dos Madis no parlamento do Sul do Sudão, em Juba, e do Sudão, em Cartum, também falaram à assembleia. Mulheres Madi executaram algumas danças típicas. No fim, houve comida para todos: primeiro para as crianças, depois para os adultos e, por fim, para os jovens: pão, manteiga de amendoim, carne, peixe fumado, batata-doce e inhame, regada com água engarrafada, importada do Uganda.
Os Madis vivem entre o Sudão e o Uganda. Cerca de 20 mil refugiaram-se em Juba durante a guerra civil sudanesa ou para escapar aos ataques do LRA (Exército de Resistência do Senhor), que opera no Norte do Uganda a partir de bases no Sudão e na RD Congo.

18 de dezembro de 2006

Estúdio 1 está pronto

Estúdios da Rádio Bakhita e antena de ligação ao transmissor © J. Vieira


O técnico e o irmão Alberto dão por terminado o trabalho de montagem do Estúdio 1 © J. Vieira

Prova de som © J. Vieira



17 de dezembro de 2006

Rádio Bakhita no ar

A irmã Paola, futura directora-geral do projecto, e Marco, o técnico italiano, testam a ligação entre o estúdio e o transmissor © J. Vieira


O transmissor e a antena ficam instalados na torre da catedral de Juba © J. Vieira

A Rádio Bakhita, a Voz da Igreja Católica em Juba, esteve ontem, 16 de Dezembro, cerca de 10 minutos no ar para testar a antena, o transmissor e a ligação entre o estúdio e o transmissor. A experiência correu bem. O som estéreo é de excelente qualidade.
Dois técnicos italianos estão a ultimar a parte electrónica do projecto. As transmissões experimentais começam no dia de Natal.
A Rádio Bakhita transmite na frequência de 91.00 Khz.
A irmã Josefina Bakhita é a primeira santa sudanesa.

Alta tensão

Na sexta-feira, 15 de Dezembro, por volta das 10h00, um grupo de soldados do SPLA (Exército de Libertação do Povo do Sudão na sigla em inglês), vindo de fora da cidade, começou a disparar para o ar no Mercado de Customs, na cidade de Juba. Os soldados protestavam contra a falta de pagamento dos ordenados. Pelo menos um civil foi morto durante o levantamento.
O tiroteio colocou a capital do Sul do Sudão em estado de pânico: os habitantes corriam de um lado para o outro sem saber bem o que se passava, os alunos fugiam das escolas, o comércio fechou, os transportes públicos desapareceram de circulação, as quatro estações de rádio que transmitem em FM na cidade foram silenciadas durante mais de 24 horas.
Quando perguntei a um jovem o que se passava, respondeu: «Este lugar está em perigo». Mas não sabia de que tipo de perigo se tratava.
As autoridades impuseram o recolher obrigatório a partir das 19h00. Tropas fortemente armadas patrulhavam as ruas. Havia soldados em posição de combate junto ao aeroporto, aos quartéis mais importantes e à sede do Governo do Sul do Sudão. Mesmo assim, a noite de sexta para sábado foi marcada por tiroteio cerrado sobretudo na zona do Mercado de Customs, o espaço comercial aberto mais frequentado da cidade.
A tranquilidade regressou ontem à tarde e a cidade voltou à azáfama habitual embora o recolher obrigatório ainda vigore.
Vinte anos de guerra civil – Juba foi sujeita a ataques constantes do SPLA, mas manteve-se sempre nas mãos do Governo – deixaram as pessoas muito traumatizadas. O som da guerra faz reviver velhos traumas e medos recalcados.

16 de dezembro de 2006

Olá, Juba!

O pequeno bimotor a hélice de 19 lugares levantou voo do aeroporto Wilson, em Nairobi, às 8h30 de 8 de Dezembro. Nunca tinha viajado num avião tão pequeno e tão baixo. A princípio senti algum desconforto e claustrofobia. Mas a viagem acabou por correr bem.
O verde luxuriante da planície queniana foi dando lugar ao castanho semi-desértico e mais acidentado à medida que o voo de cerca de duas horas se aproximava do seu termo.
O Nilo Branco saudou-nos, espreguiçado e majestoso, vindo do Uganda a caminho de Cartum onde se junta com o seu irmão etíope, o Nilo Azul.
O Aeroporto Internacional de Juba é uma aerogare modesta e acanhada onde tudo é manual. Mas funciona. Os polícias da alfândega são zelosos e abrem toda a bagagem.
Juba, a capital do Sul do Sudão, parece uma aldeia enorme que cresceu desmesuradamente e rebenta pelas costuras. As casas são baixas. As ruas, quase todas de terra, estão cheias de viaturas oficiais do Governo e da ONU, de organizações não governamentais e de particulares. E de muitos motociclos, a última moda.
Há pó por todo o lado. Os nim, as árvores do deserto, dão um toque de verdura e de sombra na paisagem ressequida.
A cidade tem diversos mercados e muitas lojas cheias de produtos essenciais. Os negociantes árabes abastecem-se sobretudo em Cartum. Os outros importam do Uganda, do Quénia, da China. Os preços são sujeitos a negociações.
A vida é bastante cara devido à presença maciça de organizações estrangeiras. Uma refeição simples (dois panados, um punhado de arroz, umas rodelas de tomate e uma cerveja) custa mais de cinco euros num restaurante barato.
Brevemente a cidade terá luz eléctrica pública. Os técnicos andam a montar as linhas. Os cartões SIM para telemóveis são difíceis de encontrar. O Sul do Sudão não tem serviço postal.
Duas comunidades combonianas partilham o mesmo espaço perto do aeroporto. Os edifícios estão a ser recuperados. Em 1992, os missionários estrangeiros foram obrigados a deixar Juba «por questões de segurança». As instalações foram ocupadas até há cerca de um ano por duas congregações locais.
A comunidade masculina é formada por dois irmãos (um alemão e um espanhol) e dois padres (um mexicano e eu) mais a Cathy, a gatita brincalhona e mimada. A comunidade feminina tem cinco irmãs: duas italianas, uma mexicana, uma eritreia – que conheci na Etiópia – e uma sudanesa.
O dia começa cedo! Levanto-me às 6h00. Às 6h40 rezamos as laudes sentados no adro da capela. Os pássaros participam na oração com o chilrear alegre. Segue-se a missa, o pequeno-almoço e o trabalho. O almoço, às 12h15, é preparado por uma cozinheira sudanesa. Às 18h40 voltamos a juntar-nos para a oração da tarde. Depois jantamos o que cozinharmos ou os restos do almoço.
Como não há televisão, ficamos a conversar até às 21h00. Depois vamos para a cama.
A equipa instaladora da Cadeia Católica de Rádio do Sudão é formada por duas combonianas (a directora-geral do projecto e a directora da estação de Juba) e dois combonianos (o administrador e eu, director de informação). Esta semana chegam dois técnicos da Itália para colocar a estação de Juba a funcionar. Outra irmã, que ensina comunicação social em Nairobi, juntar-se-á ao grupo em Março.A estação de Juba já tem nome. Chama-se Rádio Bakhita, a voz da Igreja Católica. A irmã Josefina Bakhita é a primeira santa sudanesa. Por enquanto vai operar a partir de instalações provisórias. Dentro de um ano deverá ter estúdios próprios e um centro de formação para preparar radialistas, jornalistas e administradores para toda a cadeia: a estação-mãe, em Juba, e as rádios locais das outras sete dioceses do Sul. Vão emitir em inglês, árabe e em algumas línguas locais. Parte da emissão será feita a partir de Juba. A Rádio Bakhita inicia as emissões experimentais no Natal. Dois técnicos italianos estão a inspeccionar os estúdios e a montar o transmissor e a antena.

7 de dezembro de 2006

Nairobi

Nairobi acorda cedo. Às seis da manhã as ruas da capital queniana estão engarrafadas de tráfico e os passeios cheios de gente apressada. Vão para mais um dia de trabalho ou à procura dele.
A cidade tem quase de cinco milhões de habitantes. Três e meio vivem nos bairros de lata que a abraçam. Só o de Kibera tem um milhão de moradores. Um cubículo minúsculo sem água nem electricidade custa quatro euros de renda por mês.
Trinta por cento dos habitantes da capital estão desempregados. A maioria ganha cerca de oitenta cêntimos por dia. Sem quaisquer direitos.
Nairobi vem da palavra massai nailobi e significa água fresca e limpa. Antes de os Ingleses chegarem era o lugar onde os massais, o povo da região, davam de beber ao gado.
O centro da cidade é muito cosmopolita. Tem alguns arranha-céus de arquitectura arrojada. As avenidas são largas e tem uma extensa área verde. Cafés e centros comerciais modernos e agradáveis. E as jacarandás continuam em flor!
Hoje fui-me registar na Embaixada. Além de tratar dos papéis, tive oportunidade de cumprimentar o embaixador. Simpático e interessado.
Amanhã de manhã apanho o avião para Juba. O aparelho é pequeno e cada passageiro só pode levar 20 quilos de bagagem. O que não é fundamental fica em Nairobi à espera de uma boleia futura. Como as duas garrafas de vinho do porto.O FCP está de parabéns por se qualificar para a fase seguinte da Liga dos Campeões. Foi pena que o SLB não tivesse segurado o golão do Nelson!

6 de dezembro de 2006

Kivuli

Kizito Sezana com Joseph, o utente mais recente de Kivuli © J. Vieira


UMA SOMBRA ACOLHEDORA
Ontem visitei o Centro Kivuli para fazer uma reportagem fotográfica que me encomendaram. Confesso que fiquei emocionado com o que encontrei.
Kivuli é um oásis a rebentar de vida no seio do imenso e difícil bairro-de-lata de Raruta. Fica nos arrabaldes de Nairobi e acolhe cerca de 60 meninos da rua, dos três-quatro aos 18 anos. A instituição além do alojamento, também dá educação e uma profissão aos internos.
Além disso, cerca de 500 utentes usam diariamente diversas valências do centro: posto médico, farmácia, escola de computadores, carpintaria, serralharia, escultura, artesanato, corte e costura, dança, ginásio, campo de jogos, sala de estudo. O centro distribui comida e água e tem acompanhamento de VIH positivos.
O Kivuli – e mais três centros gémeos noutros tantos bairros problemáticos à volta de Nairobi – saiu do coração do padre Kizito Sesana como resposta ao número crescente de meninos da rua dos bairros à volta da capital.
O padre Kizito é um missionário comboniano italiano. Veio para a capital do Quénia há cerca de 20 anos para fundar a revista New People. Também está por detrás da Waumini, a rádio da Conferência Episcopal queniana. A estação emite 24 horas por dia em inglês e swahilli, a língua franca do Quénia. O
padre Kizito assina a coluna mensal «Ventos do Sul» na revista Além-Mar e escreveu alguns livros. Fundou o movimento leigo Koinonia e dirige a Shalom House também em Nairobi, além de outras actividades pastorais e sociais. Um verdadeiro leão de bem-fazer. Kivuli significa sombra em swahilli.

5 de dezembro de 2006

Darfur

"Daily Nation", Nairobi

Retrato

VELENTINO VALENTÃO

Valentino Fabris tem 85 anos, mas aparenta pouco mais de 70 e poucos. Nasceu no Norte de Itália. É irmão missionário comboniano desde 1942 e chegou ao Sudão sete anos depois. E por cá tem permanecido excepto durante meia dúzia de anos em que esteve na Itália e nos Estados Unidos.
Em meio século de estada no Sudão, ensinou em várias escolas técnicas tanto em Cartum como no Sul do país e dedicou-se à construção de igrejas, escolas, residências para missionários e outras estruturas.
Apesar da idade, mantém-se activo na casa de acolhimento em Nairobi. E para a semana volta ao sul do Sudão para supervisionar a construção de mais uma igreja.
Arguto, franco e atento, diz que a vida missionária só faz sentido se os missionários amarem as pessoas. E que, mais do que ensinar devoções, os missionários devem formar homens, cristãos honestos com um papel activo na reconstrução do país.
Um valentão este Valentino.

4 de dezembro de 2006

Primeiro encontro

Ontem encontrei-me pela primeira vez com a minha nova família. Os Sudaneses do Sul, refugiados em Nairobi, celebram juntos a missa uma vez por mês. Uma maneira de se manterem unidos e conviverem. Gostei da música: bastante tranquila e polifónica. E da homilia: o padre fez uma ligação muito forte entre as leituras da Bíblia e a experiência de exílio dos sudaneses.
No final da celebração, o represente do Governo Regional do Sul do Sudão em Cartum despiu o fato da oficialidade e falou dos confrontos de Malakal. O SPLA está a tentar ultrapassar rapidamente o que é entendido como uma provocação do Governo sudanês. O líder do ataque às forças do SPLA escapou de avião para Cartum.
Outro assunto abordado foi o do recenseamento urgente da população do Sul do Sudão em preparação para o referendo de 2011, altura em que os sulistas vão optar pela auto-determinação ou se mantêm parte do Sudão. Os sulistas precisam de um documento de identificação para participarem na consulta.
De tarde, estive numa festa de anos. Os sudaneses são gente alegre, alta, bastante negra e muito expressiva. Um colega moçambicano diz que parecem galinhas quando estão a conversar tal é a algazarra que fazem. Cada interveniente repete a última frase do seu interlocutor. «Consequência da oralidade da cultura», explicou o colega. E gostam muito de cerveja.
A aldeia global tem destas coisas: no sábado, pude seguir em directo ao derby tripeiro e assistir à vitória do FC Porto sobre o Boavista. Milagre da sociedade da comunicação. Com um pequeno senão: Nairobi está três fusos horários à frente de Lisboa e a partida terminou à 1h15 da manhã. Mas valeu a pena!

2 de dezembro de 2006

África minha

JAMBO!

É sempre uma festa voltar ao regaço primordial da humanidade, a Mãe África. Esta luminosidade, o horizonte profundo, o cheiro da terra molhada, o fervilhar da vida estão inscritos na memória genética colectiva e fazem-me sentir em casa cada vez que regresso ao continente que nos serviu de berço.
A viagem foi longa (11 horas ao todo), mas agradável. A Kenya Airways ainda mantém um bom serviço a bordo desde a comida (boa) aos filmes (alguns estão a ser exibidos nos cinemas em Portugal) e à simpatia da equipagem.
Fico uma semana em Nairobi para tratar dos documentos necessários para me legalizar no Quénia, junto do Governo Regional do Sul do Sudão e na embaixada portuguesa. E para me ambientar.
Sinto-me bem nesta comunidade de acolhimento para os missionários combonianos que trabalham no Sul do Sudão. Encontrei seis colegas: três sudaneses e três europeus. E uma gata chamada Pussy. As conversas à mesa são muito interessantes e os colegas pessoas alegres e grandes contadores de estórias. Ajudam-me a (con)viver com as saudades que trago no meu coração. E são tantas!...
Em princípio, dia 8 devo voar para Juba. E acompanhar o vigário-geral (que vem de Roma) e o superior provincial numa visita a algumas das comunidades. Vamos viajar por ar (com o avião da ONU), por água e por terra. Uma introdução interessante em perspectiva!
Nairobi é uma cidade verde e muito britânica. As jacarandás estão em flor. Um espectáculo! Como Lisboa em Maio. E chove muito… As ruas, com alguns buracos, estão apinhadas de gente. Muitos vivem em bairros de lata à volta da cidade. Há bastante desemprego e, consequentemente, alguma violência e insegurança. Por isso, algumas ruas foram transformadas em condomínios fechados como medida de segurança.
A Internet funciona, mas é tão lenta que se torna desesperante. De vez em quando há cortes de electricidade.
No Sul do Sudão, aparentemente o serviço postal ainda não está organizado. Por enquanto, fui aconselhado a usar a caixa postal da casa de acolhimento, em Nairobi. Em Juba, as Nações Unidas facilitam o acesso à Internet e o telefone também funciona às vezes.
Os acordos de paz entre o SPLA/M (Movimento/Exército de Libertação do Povo do Sudão na sigla em inglês) e o Governo de Cartum foram testados nestes dias em Malakal. Milícias - consideradas próximas do Governo - atacaram forças do SPLA e depois refugiaram-se num quartel do exército sudanês. Os recontros fizeram mais de 300 mortos.

30 de novembro de 2006

Blogosfera

© J. Vieira
A RITA É UM AMOR
A Rita tem um blogue que se chama Rita-Jaalala, Rita-Amor. Agora percebo porque queria saber como se dizia amor em Guji, a língua do Sul da Etiópia que falo. E é do amor que escreve e partilha. E dos desamores. Porque tudo é parte da vida e a sabedoria está no integrar tudo para não haver fios soltos, nós desatados. Parabéns, sobrinha. Adoro ler os teus textos e também te amo muito mesmo. Continaumos à distância de um endereço electrónico, tá?

Partir

Desfazer ordens antigas de cinco anos. O quarto parece um poço sem fundo: onde meti tanta coisa?
Fazer malas. Atender mensagens de ternura e amizade.
Uma confusão de coisas para deitar fora, de sentimentos contraditórios: alegria e lágrimas.
Cada vez que parto morro um bocadinho. Mas a morte gera vida e a chegada, amanhã, às 7h15 a Nairobi, é o início de um (re)nascimento, um novo começo cheio de promessa e de ilusão.
É essa a minha oração no momento que digo obrigado e até já.
Sei que Deus está comigo e que os meus familiares e amigos também. O vosso carinho é a minha força.
Obrigado e até já, então! E façam-me o favor de serem felizes. Eu vou tentar fazer o mesmo em Juba, no Sul do Sudão.

29 de novembro de 2006

Retrato

Joasia © J. Vieira

COISAS TUAS

Levo coisas tuas
Para poder estar contigo
Na distância.
Para nunca te perder a companhia,
Mesmo não estando.
Levo gravado o teu gesto,
O pranto, o riso, e
(Ora inocente, ora picante)
O teu sorriso,
Que é a tua expressão,
O teu maior encanto.
E levo um objecto,
Teu pertence,
Como se o espaço tivesse autoridade
E o tempo nos afastasse…

Como se fosse preciso…

Margarida Faro em «Tantas mãos, a mesma Primavera»
(Oficina do Livro, 2005)
Este poema é dedicado a todas as pessoas que têm um lugar especial no meu coração e que levo comigo para o Sudão. Porque estamos todos à distância de um afecto. E no coração cabe o mundo todo.

Sabedorias

A MULHER E OS TRÊS HOMENS

Uma mulher saiu de sua casa e viu três homens com longas barbas brancas sentados em frente do seu quintal. Não os reconheceu.
Disse: «Acho que não os conheço, mas devem estar com fome. Por favor entrem e comam alguma coisa.»
«O homem da casa está?», perguntaram.
«Não, está fora.»
«Então não podemos entrar», responderam.
À noite, quando o marido chegou, contou-lhe o que aconteceu.
«Vai, diz que já estou em casa e convida-os a entrar.»
A mulher saiu e convidou-os.
«Não podemos entrar juntos», responderam.
«Porquê?»
Um dos velhos tomou a palavra: «O seu nome é Fartura». E apontou um dos seus amigos. Depois, indicando o outro, continuou: «Ele é o Sucesso. E eu sou o Amor». E completou: «Agora vá e decida com o seu marido qual de nós querem em vossa casa.»
A mulher entrou e contou ao marido o que fora dito. Ele ficou entusiasmado e disse: «Que bom! Neste caso, vamos convidar Fartura. Deixa-o vir e encher nossa casa de fartura.»
A esposa discordou: «Querido, por quê não convidamos Sucesso?»
A cunhada ouviu do outro canto da casa. E apresentou a sua sugestão: «Não seria melhor convidar Amor? A nossa casa então estaria cheia de amor.»
«Vamos pelo conselho da nossa cunhada!», disse o marido à esposa. «Vai lá fora e chama o Amor para ser nosso convidado.»
A mulher saiu e perguntou: «Qual de vocês é Amor? Por favor, entre e seja nosso convidado.»
O Amor levantou-se e entrou em casa. Fartura e Sucesso seguiram-no.
Surpreendida, a mulher perguntou-lhes: «Apenas convidei o Amor! Por quê entraram também vocês?»
Os velhos responderam: «Se convidasse Fartura ou Sucesso, os outros dois esperariam aqui fora, mas como convidou o Amor, onde ele for, nós iremos com ele. Porque, onde há Amor, há também Fartura e Sucesso!»
Obrigado, Fernando

28 de novembro de 2006

Aldeia global

Se a população da Terra fosse reduzida à dimensão de uma pequena cidade de 100 pessoas, poderia observar-se a seguinte distribuição:
57 Asiáticos
21 Europeus
14 Americanos (norte e sul)
8 Africanos
52 mulheres
48 homens
70 pessoas de côr
30 caucasianos
89 heterossexuais
11 homossexuais
6 pessoas seriam donas de 59% de toda a riqueza e todos eles seriam dos Estados Unidos da América
80 pessoas viveriam em más condições
70 não teriam recebido qualquer instrução escolar
50 passariam fome
1 morreria
2 nasceriam
1 teria um computador
1 (apenas um) teria instrução escolar superior.

Quando olhas para o mundo nesta perspectiva, consegues perceber a realnecessidade de solidariedade, compreensão e educação?

Retratos

Mulher guineense © J. Vieira


Ancião etíope © J. Vieira

Símbolos


Parece uma águia, mas não é. O símbolo dos Estados Unidos é, de facto, um pigargo. Trata-se de uma ave de rapina, parente distante do abutre africano. Não caça, mas saqueia as presas de outras aves. É famoso por roubar a «pesca» da águia pesqueira. Thomas Jefferson preferia ver o peru nas insígnias da jovem América. Para ele, o pigargo era um «cobarde lamentável, que tem por hábito fugir de pássaros do tamanho de um pardal». Ironias da história: o símbolo adequa-se mais à realidade de hoje que à de ontem.

27 de novembro de 2006

Retratos

Matilde © J. Vieira

Despedidas

O director espiritual disse-me, na Etiópia, há meia dúzia de anos, que, para dizer olá, primeiro é preciso dizer adeus.
Tenho-me dedicado a ritualizar as despedidas desde o princípio de Outubro. Adoro curtir a presença dos familiares e amigos – e são tantos. E as despedidas têm de ser saboreadas com calma e parcimónia! Porque cada pessoa é única e merece uma atenção especial.
Cada partida é uma pequena morte e cada chegada um renascimento.
Nos adeuses há saudades e lágrimas. Há rostos que muito dificilmente voltarei a ver. Pela idade ou pelos novos rumos de vida. Mas também abraços quentes e muita troca de energia: sinto as pilhas recarregadas e estou pronto para dizer olá à vida em Juba. Pronto para partir. E tranquilo. Porque sinto uma solidariedade de afectos enorme. Que agradeço e retribuo.

Deus

José Luis Cortés, em «Um Deus chamado Abba» (Estrela Polar, 2006)

Sabedorias


A ÁRVORE INÚTIL

HuiTzu disse a Chuang:
Tenho uma grande árvore,
Que se chama «Malcheirosa».
Seu tronco é tão torto
É tão cheio de nós
Que ninguém pode tirar dela uma só tábua.
Os galhos são tão retorcidos
Que você não consegue cortá-los
De modo a que seja úteis.

Lá está ela à beira da estrada.
Carpinteiro nenhum a olhará.
Eis o seu ensinamento –
Grande e inútil.

Respondeu-lhe Chuang Tzu:
Já viu o gato do mato
Agachado, espreitando a sua presa -,
Pula assim, e assim,
Para cima e para baixo, e por fim
Cai na armadilha.

Mas o iaque, já viu?
Poderoso qual trovão
Mantém-se com sua força.
Grande? Claro que sim,
Mas não sabe pegar ratos!

Assim, a sua árvore inútil. Inútil?
Plante-a então em terreno baldio
Sozinha
E caminhe a esmo, em torno dela,
Descanse à sua sombra;
Nenhum machado ou decreto proclamará o seu fim.
Ninguém jamais a abaterá.
Inútil? Que me importa!


Thomas Merton, em «A Via de Chuang Tzu»

26 de novembro de 2006

I Only Ask Of God



I only ask of God
He won't let me be indifferent to the suffering
That the very dried up death doesn't find me
Empty and without having given my everything
I only ask of God
He won't let me be indifferent to the wars
It is a big mon
I only ask of God
He won't let me be indifferent to the suffering
That the very dried up death doesn't find me
Empty and without having given my everything
I only ask of God
He won't let me be indifferent to the wars
It is a big monster which treads hard
On the poor innocence of people
It is a big monster which treads hard
On the poor innocence of people
People... people... people
I only ask of God
He won't let me be indifferent to the injustice
That they do not slap my other cheek
After a claw has scratched my whole body
I only ask of God
He won't let me be indifferent to the wars
It is a big monster which treads hard
On the poor innocence of people
It is a big monster which treads hard
On the poor innocence of people
People... people... people
Solo le pido a Dios
Que la guerra no me sea indiferente
Es un monstro grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
Es un monstro grande y pisa fuerte
Toda la pobre inocencia de la gente
People... people... people

25 de novembro de 2006

Retratos

Cristina Isabel © J. Vieira

Abrir aspas

© J. Vieira
ANSIEDADE

Os medos de épocas remotas, as repressões morais e religiosas, as idealizações e as paixões impossíveis do romantismo, o vazio e a náusea existencialista, a cultura do eu, do consumismo e da solidão modernos deram, a pouco e pouco, lugar ao stress e à ansiedade das sociedades contemporâneas. Este facto prende-se, sobretudo, com o novo tipo de pressões a que somos sujeitos, com as novas concepções de vida e com a rápida evolução dos conceitos, que se tornaram cada vez mais flexíveis.
O espectro das perspectivas com que encaramos os objectivos de vida, o mundo e as relações, alargou-se consideravelmente. Tudo pode ser observado e analisado por inúmeros lados, descobrimos novas ligações entre as coisas, as nossas memórias e os laços afectivos são cada vez mais aprofundados. O sentido da vida perde-se no meio de tantas batalhas, os medos multiplicam-se, cresce a sensação de que não vamos conseguir sobreviver com tantas imposições. Falta-nos o tempo, a energia, o ânimo, a despreocupação, a satisfação e a segurança. Tudo isto nos tira a paz e o sossego, o sono, a saúde e o bom-senso para agir com lucidez.
Ana Vieira de Castro, em XIS

24 de novembro de 2006

Alqueva

Refracções

© J. Vieira

PARA DUAS FOTOGRAFIAS
DE NENNI GLOCK
COM O TEJO AO FUNDO

1.
- Antes de haver pontes
o rio era de ouro, e prata e âmbar, e desse ouro
contaram-me
se fez um ceptro de um rei.
E dos canaviais
contaram-me
se faziam as melhores penas que em Roma se escrevia

- Antes de haver pontes
o rio era das sereias, dos tritões e dos heróis, e por aqui
contaram-me
se escondeu Aquiles, fugido de Tróia, e aqui
o encontrou Ulisses no meio de cavalos voadores e éguas velozes
que só o sopro dos ventos emprenhava

- A mim contaram-me apenas que o barco acostou ao anoitecer
e eu pedi à minha mãe que ela me levasse mas ela não levou.
Para quê
explicou mais tarde
o caixão já tinha fechado e eu não ia poder ver
o rosto do meu pai

2.
Chegaram os monstros sem avisar
e já nem se vestem de preto
Assim seria fácil reconhecê-los
tentar fugir a tempo
avisar os incautos

Os monstros têm cores suaves
e bocas enormes
avançam sem ruídos
ferida aberta na paisagem das águas

As bocas dos monstros engolem o rio
as pontes
as margens
o mundo

Os monstros não deixam
rasto

Depois de os monstros passarem até há quem não acredite
que um dia eles existiram
.


Alice Vieira

Tranquilidade

23 de novembro de 2006

O rato e o gato

O ratinho estava na toca, encurralado pelo gato, que, do lado de fora, miava:
- MIAU, MIAU, MIAU.
O tempo passava e o gato miava.
Depois de várias horas, e já com muita fome, ouviu:
- AU! AU! AU!
Então deduziu: se há cão lá fora, o gato foi-se embora. Correu, disparado, em busca de comida. Nem saiu bem da toca e o gato: «NHAQUE!»
Inconformado, já na boca do gato, perguntou:
- Fogo, gato! Que é isto?
- Meu filho, neste mundo globalizado, quem não fala pelo menos dois idiomas morre à fome! – respondeu o felino.
Obrigado, Ju!

A minha cidade


Juba vai ser a minha cidade a partir de Dezembro e, muito provavelmente, pelos próximos dois anos.
A capital regional do Sul do Sudão fica na margem ao Nilo Branco e tem mais de 150 mil habitantes.
Encontra-se em plena reconstrução depois de 20 anos de guerra civil entre o SPLA (Exército de Libertação do Povo do Sudão na sigla em inglês – que agora é Movimento) e as tropas de Cartum. Mais de dois milhões de civis morreram e quatro milhões foram deslocados pelos combates.
O tratado de paz de Naivasha, assinado em 1 de Janeiro de 2005 entre o SPLA e o Governo sudanês, inaugurou uma nova forma de relacionamento entre Cartum e Juba através da partilha de poderes. O Governo Regional tem autonomia e os sulistas podem, em 2011, optar pela auto-determinação através de um referendo.
O Sul do Sudão é rico em petróleo.
Juba fica a 1700 quilómetros de Cartum, junto à fronteira com o Quénia, Uganda e RD Congo. A Ethiopian voa três vezes por semana de Adis-Abeba para Juba.

22 de novembro de 2006

Amizades

Pai-nosso

Será inútil dizer «Pai nosso»
se na minha vida não tomo atitudes como filho de Deus, fechando o meu coração ao amor.
Será inútil dizer «Que estais no céu»
se os meus valores são representados pelos bens da terra.
Será inútil dizer «Santificado seja o vosso nome»
se penso apenas em ser cristão por medo, superstição e comodismo.
Será inútil dizer «Venha a nós o vosso reino»
se acho tão sedutora a vida aqui, cheia de supérfluos e futilidades.
Será inútil dizer «Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu»
se, no fundo, desejo mesmo é que todos os meus desejos se realizem.
Será inútil dizer «O pão nosso de cada dia nos dai hoje»
se prefiro acumular riquezas, desprezando os meus irmãos que passam fome.
Será inútil dizer «Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido»
se não me importo em ferir, injustiçar, oprimir e magoar aos que atravessam o meu caminho.
Será inútil dizer «E não nos deixeis cair em tentação»
se escolho sempre o caminho mais fácil, que nem sempre é o caminho de Deus.
Será inútil dizer «Livrai-nos do mal»
se por minha própria vontade procuro os prazeres materiais, e se tudo o que é proibido me seduz.
Será inútil dizer «Ámen»
porque, sabendo que sou assim, continuo a omitir-me e nada faço para me modificar.

Edmilson Duarte Rocha

20 de novembro de 2006

Sudoku

Para ocupar o tempo...

17 de novembro de 2006

Conversa de cegonhas

Três cegonhas estão à conversa:
- Para onde é que vais?
- Vou à casa de um casal que espera o primeiro filho.
- E tu?
- Eu vou à casa de uma senhora que espera um filho há anos.
- E tu, amiga?
- Eu vou ao convento! Nunca levo nada, mas prego-lhes cá cada susto!!!

Outono em Cinfães


© J. Vieira

16 de novembro de 2006

Darfur

EM PRIMEIRA PESSOA

Depois de ter esperado um mês e dez dias em Cartum para obter o visto de residência no Sudão, pude, finalmente, viajar para a «terra prometida» no Sul de Darfur.
Aqui combate-se forte e feio. Somos frequentemente sobrevoados por aviões de todos os tamanhos e helicópteros que transportam armamento e feridos. Uma confusão de tropas e movimentos armados, sendo por vezes difícil saber quem é contra quem.
Desde que esta guerra rebentou no Darfur - já passa de três anos - não podemos ultrapassar os arredores da cidade. É muito arriscado e é-nos mesmo proibido. Fazemos o nosso trabalho por perto, com muito cuidado e atenção, informando-nos antes sobre os movimentos dos «janjauid», as milícias árabes.
No ano passado, os soldados roubaram um carro da missão: contributo obrigatório que exigiram para combater os inimigos do nosso país – diziam. Um carro novo em folha, pilhado na estrada. Mas este que uso não mo roubarão, porque está a cair aos bocados.
No pequeno raio em que nos podemos mover, já vi alguns «janjauid», montados em camelos ou a cavalos. Vão sempre bem armados. Com eles é melhor guardar as distâncias. Matam sem dó nem piedade, porque têm todas as licenças do Governo.
Misturam-se com a gente no mercado e nas várias aldeias que, quando se dão conta, desapareceram do mapa, literalmente. No lugar da aldeia fica só a morte, semeada pelo chão cheio de cadáveres.
Em todo o Darfur já foram mortas mais de 200 mil pessoas. As que escapam tentam chegar aos campos dos refugiados das ONG.
Nós também procuramos lá chegar e ajudar no que é possível. Mas, geralmente, as organizações de socorro estrangeiras cobrem as necessidades materiais. Deste modo, podemos dedicar-nos mais a uma presença espiritual, continuando a evangelização iniciada nas suas aldeias de origem. Tive oportunidade de estar em dois campos de refugiados ou deslocados: um panorama que não tem descrição possível. Estes e outros campos foram-se enchendo – ao longo de três anos – de seres humanos que lutam para estar de pé. Já chegou aos 300 mil.
MCF

José Saramago

LIVRO DAS RECORDAÇÕES

José Saramago marca hoje os 84 anos que completa com o lançamento do livro das recordações da sua infância. Fá-lo na aldeia natal de Azinhaga, Golegã. «Deixa-te levar pela criança que foste», cita.
«As Pequenas Memórias» (Editorial Caminho, 2006) é uma recolecção de episódios, estórias, pessoas e lugares. Uma incursão pelas raízes e pelas linhas com que urdiu a sua vida dos quatro aos 15 anos até às inspirações para algumas das suas obras de referência.
O autor, um exímio contador de histórias (ou inventor de mentiras? - ele confessa-se um «mentiroso compulsivo»), apresenta um quadro vivo da vida nos anos 20 e 30 no Ribatejo e em Lisboa. Um livro ameno, um solilóquio cúmplice com o leitor sobre 11 anos de vivências entre as margens do Tejo e do Almonda e na capital.

15 de novembro de 2006

S. Cristóvão de Nogueira


© J. Vieira

A Igreja Paroquial de S. Cristóvão de Nogueira foi erigida no século XIII, em estilo românico e, apesar dos restauros efectuados, ainda se conseguem encontrar vestígios da arquitectura original. Restaurada no século XVIII, todo o interior foi executado em estilo barroco. Corpo de uma só nave. Altar-mor com tribuna de talha dourada, com duas imagens. No seu interior, o arco de Triunfo é revestido a talha e em cada sopé existe o altar. A torre sineira foi construída no século XVIII.

Abrir aspas

O PRIMEIRO BALÃO

Junto a uma das portas dos Armazéns Grandella havia um homem a vender balões, e, fosse por tê-lo eu pedido (do que duvido muito, porque só quem espera que se lhe dê é que se arrisca a pedir), fosse porque minha mãe tivesse querido, excepcionalmente, fazer-me um carinho público, um daqueles balões passou às minhas mãos. Não me lembro se ele era verde ou vermelho, amarelo ou azul, ou branco simplesmente. O que depois se passou iria apagar para sempre da minha memória a cor que devia ter-me ficado pegada aos olhos para sempre, uma vez que aquele era nada mais nada menos que o meu primeiro balão em todos os seis ou sete anos que levava de vida. Íamos nós no Rossio, já de regresso a casa, eu impante como se conduzisse pelos ares, atado a um cordel, o mundo inteiro, quando, de repente, ouvi que alguém se ria nas minhas costas. Olhei e vi. O balão esvaziara-se, tinha vindo a arrastá-lo pelo chão sem me dar conta, era uma coisa suja, enrugada, informe, e dois homens que vinham atrás riam-se e apontavam-me com o dedo, a mim, naquela ocasião o mais ridículo dos espécimes humanos. Nem sequer chorei. Deixei cair o cordel, agarrei-me ao braço da minha mãe como se fosse uma tábua de salvação e continuei a andar. Aquela coisa suja, enrugada e informe era realmente o mundo.

José Saramago, em «As Pequenas Memórias»

14 de novembro de 2006

13 de novembro de 2006

Estórias

A FORMIGA (in)FELIZ

Todos os dias, a formiga chegava cedinho à oficina e desatava a trabalhar. Produzia e era feliz.
O gerente, o leão, estranhou que a formiga trabalhasse sem supervisão. Se ela produzia tanto sem supervisão, melhor seria supervisionada. E contratou uma barata, que tinha muita experiência como supervisora e fazia belíssimos relatórios.
A primeira preocupação da barata foi a de estabelecer um horário para entrada e saída da formiga.
De seguida, a barata precisou de uma secretária para a ajudar a preparar os relatórios e contratou uma aranha que, além do mais, organizava os arquivos e controlava as ligações telefónicas.
O leão ficou encantado com os relatórios da barata e pediu também gráficos com índices de produção e análise de tendências, que eram mostrados em reuniões específicas para o efeito.
Foi então que a barata comprou um computador e uma impressora laser e admitiu a mosca para gerir o departamento de informática.
A formiga de produtiva e feliz, passou a lamentar-se com todo aquele universo de papéis e reuniões que lhe consumiam o tempo!
O leão concluiu que era o momento de criar a função de gestor para a área onde a formiga operária, trabalhava. O cargo foi dado a uma cigarra, cuja primeira medida foi comprar uma carpete e uma cadeira ortopédica para o seu gabinete.
A nova gestora, a cigarra, precisou ainda de computador e de uma assistente - que trouxe do seu anterior emprego - para ajudá-la na preparação de um plano estratégico de optimização do trabalho e no controlo do orçamento para a área onde trabalhava a formiga, que já não cantarolava mais e cada dia se mostrava mais enfadada.
Foi nessa altura que a cigarra, convenceu o gerente, o leão, da necessidade de fazer um estudo climático do ambiente.
Ao considerar as disponibilidades, o leão deu-se conta de que a Unidade em que a formiga trabalhava já não rendia como antes; e contratou a coruja, uma prestigiada consultora, muito famosa, para que fizesse um diagnóstico e sugerisse soluções.
A coruja permaneceu três meses nos escritórios e fez um extenso relatório, austero, em vários volumes, que concluía: «Há muita gente nesta empresa!» Adivinhem quem o leão começou por despedir? A formiga, claro, porque «andava muito desmotivada e aborrecida».

Qualquer semelhança com a realidade, é pura coincidência.
Obrigado, Albino

Entre-os-Rios




© J. Vieira

Antes era a centenária Hintze Ribeiro: uma ponte gasta, estreita, a pedir obras urgentes. Mas não havia verba! Até que um dia caiu e arrastou consigo 59 vidas para as águas turbolentas do Douro. Num passo de magia, apareceu dinheiro não para uma mas para duas travessias novas mais um memorial. A culpa, essa morreu solteira. Como de costume.

12 de novembro de 2006

Bossa do Camelo

UM VERDADEIRO INVESTIMENTO

A «Bossa do Camelo» é o nome popular de uma curva apertada na A25 junto ao Caçador, na zona de Viseu, perto da saída do Sátão.
Aparentemente, a curva não fazia parte do traçado inicial da auto-estrada, mas não se sabe bem por que arte, lá está, redondinha, para testar a atenção e a perícia dos automobilistas. Um contra-senso num lanço da A25 aberto há pouco tempo!!!
Para contornar a sua perigosidade, foi imposto um limite de velocidade de 80 quilómetros por hora. Segundo o Jornal de Notícias de hoje, de 30 de Setembro a 30 de Outubro, 47 mil condutores foram «fotografados» pelos radares por seguirem acima do limite de velocidade.
Se cada multado pagar a coima mínima de 60 euros, o Estado arrecada neste mês cerca de 2,8 milhões de euros só com as multas da «Bossa do Camelo». Outro contra-senso: o Estado faz dinheiro - e muito dinheiro - com o «erro» do projecto.
Para a Brigada de Trânsito da GNR – e segundo a mesma fonte – o importante é que ainda não se registaram acidentes sérios nesse «ponto perigoso» da A25.

11 de novembro de 2006

Refracções

DERIVA

Vi as águas os cabos vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som das suas falas
Que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais


As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri


Sophia de Mello Breyner Andersen

S. Pedro do Campo

Serra do Montemuro: São Pedro do Campo (Cinfães) © J. Vieira

10 de novembro de 2006

Fábula chinesa

AS MEDIDAS

No reino de Cheng, um homem decidiu comprar um par de sapatos. Mediu com cuidado os pés. Infelizmente, com a pressa esqueceu-se, como amiúde acontece, das medidas na mesa da cozinha.
Quando chegou ao mercado e parou diante da banca do vendedor de sapartos, deu-se conta que esquecera em casa o papel com as medidas.
- Ai de mim! Esqueci-me de trazer as medidas! - e corrreu para casa para as ir buscar.
Quando regressou ao mercado, este já tinha fechado, e assim não pôde comprar os sapatos. Um amigo, com um sorriso escarninho, disse-lhe:
- Podias ao menos ter experimentado alguns sapatos!
- Eu tenho mais confiança nas minhas medidas! - respondeu.
Autor desconhecido

9 de novembro de 2006

Abrir aspas

VIDA E MORTE

«Às vezes penso que a vida não tem valor, é uma coisa insignificante. Eu vou morrer e a humanidade não sentirá a minha falta. A humanidade vai morrer e o universo não sentirá a sua falta. O universo vai morrer e a eternidade não sentirá a sua falta. Não passamos de uma irrelevância, simples poeira que se perde no tempo.» Inclinou a cabeça. «Mas, outras vezes, penso que, afinal, todos nascemos com uma missão, todos desempenhamos um papel, todos fazemos parte de um grande esquema. Pode ser um papel minúsculo, pode parecer uma missão irrisória, talvez até a consideremos uma vida perdida, mas, feitas as contas, quem sabe se coisa tão minúscula se poderá revelar uma migalha crucial para a concepção do grande bolo cósmico.» Arfou, cansado. «Somos minúsculas borboletas cujo frágil bater de asas tem talvez o estranho poder de gerar longínquas tempestades no universo.»

José Rodrigues dos Santos em «A Fórmula de Deus»

7 de novembro de 2006

Moçambique

DOIS MISSIONÁRIOS ASSASSINADOS

O padre Waldyr dos Santos, 69 anos, jesuíta brasileiro, e Idalina Neto Gomes, 30 anos, portuguesa, missionária dos «Leigos para o Desenvolvimento», foram assassinados na segunda-feira, 6 de Novembro, na missão de Fonte Boa, província de Tete, em Moçambique, durante um assalto à mão armada pela 1h30 da manhã.
O padre Waldyr dos Santos foi morto a tiro e Idalina estrangulada. Outros dois missionários foram feridos durante o assalto, um aparente ajuste de contas, segundo a agência Lusa.
«Há poucos meses, numa tentativa de furto de um veículo na Missão, um dos assaltantes foi morto e acreditamos que este assalto tenha sido uma retaliação», referiu uma fonte da Polícia de Investigação Criminal (PIC) da província de Tete.
Os assaltantes usaram uma viatura com matrícula do Malawi.
Idalina Gomes era natural de Aguiar da Beira. Estava em Moçambique há um ano e depois de um período de férias em Portugal, planeava regressar à missão de Fonte Boa. Estava envolvida em projectos da área agrícola, pecuária e construção de lar para órfãos de Sida.

Rostos

O MENINO QUE QUERIA VER DEUS

Havia um pequeno menino que se queria encontrar com Deus. Ele sabia que tinha um longo caminho pela frente. Um dia encheu a mochila com pastéis e refrigerante e saiu para brincar para o parque.
Depois de percorrer uns três quarteirões, encontrou um velhinho sentado num banco da praça a olhar os pássaros.
O menino sentou-se junto dele, abriu a mochila e ia tomar um gole de refrigerante, quando olhou o velhinho e viu que ele estava com fome; então ofereceu-lhe um pastel.
O velhinho, muito agradecido, aceitou e sorriu ao menino. O seu sorriso era tão incrível que o menino quis ver de novo; então ele ofereceu-lhe refrigerante.
Mais uma vez o velhinho sorriu ao menino. O menino estava tão feliz!
Ficaram sentados ali sorrindo, comendo pastéis e bebendo sumo pelo resto da tarde sem falarem um ao outro. Quando começou a escurecer o menino estava cansado e resolveu voltar para casa mas, antes de sair, deu um grande abraço no velhinho.
Aí, o velhinho deu-lhe o maior sorriso que o menino já havia recebido.
Quando o menino entrou em casa, a mãe, surpreendida, perguntou ao ver a felicidade estampada em sua face:
- O que fizeste hoje que te deixou assim tão feliz?
Ele respondeu:
- Passei a tarde com Deus. Sabes? Ele tem o mais lindo sorriso que jamais vi!
Enquanto isso, o velhinho chegou em casa com o mais radiante sorriso na face e o seu filho perguntou:
- Por onde esteve você que está tão feliz?
E o velhinho respondeu:
- Comi pastéis e bebi sumos no parque com Deus. Sabes? Ele é bem mais jovem do que eu pensava!

A face de Deus está em todas as pessoas e coisas que são vistas com os olhos do amor e do coração!
Autor desconhecido

6 de novembro de 2006

Sabedorias

A ÁGUIA E AS GALINHAS

Um camponês foi à floresta apanhar um pássaro, para o ter como animal de estimação. Capturou um filhote de águia. Em casa, colocou-o no galinheiro junto das galinhas.
Passados cinco anos, o camponês recebeu a visita de um biólogo. Enquanto passeavam pelo jardim, disse-lhe este:
– Esse pássaro não é uma galinha. É uma águia.
– De facto – disse o homem –, é uma águia. Mas criei-o como galinha. Já não é águia. É uma galinha como as outras.
– Não! – replicou o biólogo. – É e será sempre uma águia. Nasceu para voar nas alturas.
– Discordo! – insistiu o camponês. – Ela agora é uma galinha e jamais voará como águia.
Decidiram provar o que diziam. O biólogo agarrou a águia, ergueu-a e, desafiando-a, disse:
– Uma vez que és uma águia, porque pertences ao céu e não à terra, abre as asas e voa!
Mas a águia ficou pousada no braço do biólogo. Viu as galinhas no chão, bicando o milho e desceu para junto delas.
O camponês comentou:
– Eu bem lhe disse. Ela agora é uma galinha!
– Não – tornou a retorquir o biólogo. – É uma águia. Será sempre uma águia. Amanhã faremos uma nova experiência.
No dia seguinte, o biólogo subiu com a águia ao tecto da casa. Sussurrou-lhe:
– És uma águia. Abre as asas e voa!
Mas, quando a águia viu as galinhas no chão, pulou e juntou-se a elas.
O camponês sorriu:
– Não preciso repetir o que já lhe disse. Ela tornou-se uma galinha!
– Não! – disse convincente o biólogo. – Ela é uma águia e possui um cérebro e um coração de águia. Amanhã voará, garanto-lhe.
No dia seguinte, o biólogo e o camponês madrugaram. Levaram a águia até ao pico da montanha. Ao nascer do Sol, o biólogo ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
– Águia, pertences ao céu e não à terra. Abre as asas e voa!
A águia olhou em redor. Tremeu e não voou.
Então, o biólogo segurou-a com firmeza, colocou-a na direcção do Sol, de maneira que perscrutasse o vasto horizonte e sentisse a luminosidade do céu.
E ela abriu as asas potentes e robustas. Ergueu-se, soberana. Começou a voar, a voar cada vez mais alto. Voou. E nunca mais ali voltou.
James Aggrey