Adola, seis da manhã de cinco de fevereiro.
Acordo, estremunhado, com o cantar sério e solene de um clérigo ortodoxo através do altifalante da igreja vizinha. A luz que entra pela janela ainda é pálida. O sol, preguiçoso, anda a levantar-se mais tarde.
Depois da eucaristia com as Missionárias da Caridade e do pequeno-almoço volto para o quarto dos hóspedes para preparar a homilia de domingo — como faço todos os sábados de manhã.
Pego no livro das leituras em inglês e guji, na folha onde desenho um pequeno esquema da homilia em inglês e no caderno onde a escrevo em guji. E o dicionário inglês-guji? Esqueci-o em Qillenso! Entro em pânico: como vou escrever a homilia sem o dicionário?
Qillenso fica a 35 quilómetros que Adola e está quase 500 metros mais alto. Vou ter que escrever a homilia sem dicionário. As palavras que não sei escrevo-as em inglês e depois à tarde — tenho de ir a Qillenso — procuro no dicionário.
A rotina da preparação da homilia é simples: rezo as leituras em inglês. Depois faço um pequeno esquema daquilo que a Palavra de Deus me inspira. Por fim, escrevo a reflexão diretamente em guji.
Interessante: só escrevi quatro palavras em inglês! O meu vocabulário está a reconstruir-se aos poucos apesar de a memória já não ser o que era!
Depois do almoço passei por Qillenso para pegar o dicionário e levar pratos e copos para a capela de Urdata, cinco quilómetros mais acima. Amanhã celebram o padroeiro — São Paulo — e prometi ir buscar água com o todo-o-terreno para o almoço da festa. Sim, porque a celebração do tabot — como aqui se chama à festa do padroeiro — termina sempre com uma refeição partilhada!
Na capela, às 15h00, esperavam-me o catequista e um grupo de jovens. Carregamos dois bidões e outro vasilhame de plástico no carro e fomos para a fonte.
Gostei do caminho: a nascente protegida está a uns 20 minutos da capela numa zona verde com alguma floresta e alguns campos agrícolas. Vistas lindas.
Os jovens começaram a encher as vasilhas. O catequista perguntou se conseguia caminhar uns 20 minutos para visitar uma católica que está doente. Sabem da cirurgia que fiz à anca e preocupam-se com os meus limites!
A caminhada foi curta e agradável. Entrámos na casa da doente: uma edificação recente, quadrada, com telhado de zinco e algumas divisórias. Muito diferente das tradicionais cabanas circulares divididas em duas partes.
A senhora estava deitada num colchão. Levantou-se, pôs umas sandálias bonitas em vez dos chinelos que lhe passaram e sentou-se num cadeirão entre o catequista e eu.
Pelo que entendi, sofre de anemia crónica devido aos muitos partos que teve: treze. Foi aos médicos a Adola e a Hawassa, mas não melhora.
Conversamos. Disse-lhe que o fígado mal cozido e a injera — o pão típico de muitos etíopes — são ricos em ferro e podem ajudá-la.
Depois rezamos, impus-lhe as mãos, desejamos-lhe as melhoras e voltamos para a fonte.
Estamos na bona — a estação seca — e das quatro bicas da fonte protegida por uma tanque de cimento coberto só a mais baixa deita água. O enchimento das vasilhas estava a demorar muito mais do que o previsto.
Telefonei às Missionárias da Caridade a dizer que ia chegar atrasado para a missa das 18h00 com os pacientes do centro de acolhimento em Adola.
Um grupito de crianças, curiosas com a presença do farenji — estrangeiro — acercaram-se. Comecei a brincar com elas e tirei algumas fotos. As mais afoitas, chegaram-se ao pé de mim e começaram a tocar nos pêlos dos meus braços. Para a pequenada os cabelos nos braços são uma grande novidade.
«Ani jaldessa fakkata» — «Pareço um macaco» — disse-lhes, na galhofa. Grande risada.
Eram 17h00 quando as vasilhas ficaram cheias.
Descarreguei-as na capela e pus-me a caminho de Adola. Cheguei à capela do hospício pouco antes das 18h30. É uma construção típica, totalmente feita de bambu, uma espécie de cesto gigante com a boca para baixo.
Esta é a eucaristia que mais gosto de presidir. Os pacientes carregam as doenças com um grande sorriso. Cada pessoa participa como pode. A assembleia litúrgica é formada por católicos, ortodoxos e protestantes. Há alguns miúdos! É uma eucaristia tranquila, cantada e rezada em guji, uma oração de agradecimento que chega ao coração de Deus.
As irmãs e os pacientes estavam a rezar o terço enquanto esperavam. Petrosi, o catequista daquela comunidade, orientava-o.
Dado o adiantado da hora, decidi fazer uma pequena reflexão pondo de lado a homilia que tinha preparado. Interessante: as palavras desta vez não me faltaram!
Fui para a cama cedo, depois do jantar, para aproveitar o silêncio e dormir um pouco. Porque no domingo os ortodoxos começam a eucaristia através do altifalante às três da manhã — ou mais cedo. A comunidade das Missionárias da Caridade fica entre duas igrejas ortodoxas!
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