13 de janeiro de 2017

SILÊNCIO


O realizador norte-americano Martin Scorsese transformou Silêncio, a ficção mais aclamada do católico japonês Shusaku Endo, no «filme da sua vida».

Silêncio conta a odisseia física e espiritual de dois jesuítas portugueses: Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe.

À volta de 1640 embarcaram para o Japão para assistir os católicos barbaramente perseguidos pelo poder desde 1614, altura em que os missionários foram expulsos do país.

Queriam encontrar o seu mentor, o P. Cristóvão Ferreira. Relatos de comerciantes holandeses contavam que o jesuíta tinha renunciado a fé em vez de receber a coroa gloriosa do martírio.

Os padres Rodrigues e Garupe vão a Goa, passam por Macau e entram clandestinamente no Japão com a ajuda de um guia – Kichijiro – que faz a união entre os diversos blocos do filme.

Scorsese fez de Silêncio um filme tenso, intenso e extenso que prende, questiona, choca, agride, espanta durante duas horas e 41 minutos.

As torturas a que os cristãos foram submetidos para calcar o «fumie» – uma placa metálica de Cristo – e renegar a fé ou aceitar uma morte cruel gritam bem alto que a maldade humana tem requintes brutais infinitos.

A minha mente derivava, ao ver as execuções nas praias japonesas, para as costas da Líbia onde membros do Daesh executaram cristãos com a mesma crueldade.

Endo dizia-se um católico japonês num fato ocidental desajustado.

A sua produção literária é um esforço para apresentar um Cristo aceitável aos nipónicos: impotente, maternal, compassivo e companheiro dos sofredores, com um poder incrível de auto-sacrifício – como explica o P. Adelino Ascenso na sua magistral dissertação doutoral.

O romance, publicado em 1966, questiona o silêncio de Deus perante a tão desesperada situação dos cristãos perseguidos, os mártires do Japão.

O P. Rodrigues acaba por calcar o «fumie» e renegar a fé para salvar alguns cristãos torturados à sua frente.

O Crucificado diz da placa de bronze ao jesuíta português: «Calca, calca. É para ser calcado por ti que estou aqui».

O sistema japonês, sofisticado e requintado, acabou por ser mais forte que o missionário e quebrou-o como tinha quebrado ao P. Ferreira.

O P. Rodrigues casou e passou o resto da vida como budista.

Periodicamente, com a mulher, tinha que pisar a imagem de Cristo e assinar uma confissão de descrença.

Mas o missionário português continua a acreditar no seu íntimo e absolve pela enésima vez Kichijiro – o judas da narrativa que trai a Deus, à família, ao P. Rodrigues.

Continua a pedir e a receber a absolvição para depois negar a Deus até ser apanhado com uma medalha escondida num amuleto.

Kichijiro foi condenado à morte.

Rodrigues morre no fim do filme e vai a cremar como um budista. Com um detalhe: as suas mãos aconchegam o crucifixo artesanal que um cristão lhe ofereceu enquanto as chamas ameaçam o cadáver no interior de uma urna cilíndrica.

Os vizinhos comentam que a viúva não derramou uma única lágrima pelo defunto.

Foi ela que lhe colocou o velho crucifixo na mão?

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