Cuidado para não abandonar o mandamento de Deus para seguir as tradições dos homens (Mc 7,7)
Em todas as dioceses por onde passo, sempre sugiro aos bispos e aos/às provinciais que insiram no percurso formativo para a vida sacerdotal e religiosa experiências em Pastorais de fronteira como a Pastoral Carcerária, da Criança, do Menor, de Rua e da Sobriedade. Falo por experiência pessoal. Estes serviços foram fundamentais na minha experiência de fé e no meu caminho vocacional.
Quando saí da Itália em 1985 depois da primeira profissão religiosa e ainda estudante de teologia e vim para o Brasil, não imaginava que ia encontrar Jesus pelas vielas da favela, nos porões das delegacias, em masmorras abarrotadas de presos em condições desumanas e nas ruas da amargura. Foi nessa Galileia que Jesus marcou o encontro comigo.
Não dá para esquecer o primeiro contato com o Carandiru, considerado na época um dos maiores presídios do mundo com mais de 6.500 apenados. Era um domingo de dezembro. Faltavam poucos dias para o Natal. Decidi visitar alguns jovens da favela do Parque santa Madalena onde prestava serviço pastoral como seminarista. Fui com Valdênia, uma jovem da nossa paróquia que coordenava a Pastoral do Menor e já vinha atuando naquela comunidade. Seu testemunho foi decisivo em minha vida. Ao chegar ao presídio, tive que alugar um paletó. Essa peça de roupa era obrigatória para os visitantes. A entrada não foi fácil. Depois da identificação no guiché que tinha a primeira letra do meu nome, tive que passar por vários controles de segurança. O pior de todos foi quando, junto com mais 9 homens, fui obrigado a entrar no quartinho da revista íntima, encostar na parede, tirar toda a roupa, levantar os genitais e fazer 10 flexões. Tentei evitar isso me identificando como religioso, mas o guarda me mandou calar a boca com uma frase lapidária: “Aqui não tem nada disso. A religião é a gente que faz. É tudo mundo igual!”
Demorei dias para digerir tamanha humilhação. Por um instante senti na pele o tratamento vexatório imposto aos familiares dos apenados.
Mas aos poucos fui lembrando da Carta aos Filipenses, onde Paulo diz que Jesus se espoliou para se fazer servo. Depois recordei que Ele fez questão de entrar na fila, no último lugar, para receber o batismo de João, logo Ele que era como nós exceto no pecado, enquanto eu era como todas aquelas pessoas incluindo o pecado. Enfim pensei na cena da Sua Paixão quando foi espoliado para ser torturado e pregado na Cruz. Então entendi que aquela espoliação fora minha verdadeira vestição. Aquele ato de tirar a roupa à força e de perder os privilégios que achava de ter alcançado por ser “religioso”, longe das luzes, dos enfeites, dos cantos e da solenidade da celebração dos primeiros votos na Itália, tornara-se o rito culminante da celebração da profissão religiosa.
Aquele foi o dia em que Deus me consagrou e iniciou comigo a dura — pelas minhas fragilidades, mas rica pela sua Graça —, jornada de discipulado e apostolado com Jesus de Nazaré. Fui procurar o saudoso padre Chico Reardon, coordenador da Pastoral Carcerária, que me acolheu de braços abertos e, primeiramente, me confiou o pavilhão 8 do Carandiru, mas depois me pediu de servir as delegacias da Zona Leste abarrotadas de presos. Com padre Júlio Lancellotti e com a Valdênia começamos também a marcar presença na Febem, sobretudo no quadrilátero do Belém, um verdadeiro parque dos horrores.
Foi como colocar o pé na areia movediça. A cada dia fui descendo naquele mundo com mais profundidade. A partir daquele momento, assumi a Pastoral do Menor, a Pastoral Carcerária e as periferias geográficas e existenciais como prioridades na minha vida. Estou nelas até agora e não me arrependo.
Por incrível que pareça, é neste mundo desumanizado e desumanizante que, a cada dia que passa, a cada encontro realizado e a cada experiência vivenciada me torno mais gente e mais cristão. Quem não passa por isso não sabe o que perde. Como gostaria que outras pessoas tivessem a oportunidade de experimentar essa Graça.
O primeiro motivo de edificação é o testemunho dos/as agentes de Pastoral. Quantos leigos e leigas, quase sempre sem nenhum apoio, criminalizados por vastos setores da sociedade e “marginalizados/as” dentro de comunidades muito preocupadas com as “tradições”, toda semana visitam os sistemas penitenciário e socioeducativo para partilhar com amor o Evangelho de Jesus. O que me impressiona é ver que muitos/as voluntários/as são pessoas de idade que representam a “velha guarda” de uma Igreja que fica fiel à Tradição de Jesus de Nazaré, o Cristo vivo que entrega a vida para todos, sobretudo para os mais pobres e abandonados.
Também a convivência com os/as apenados/as é constante motivo de enriquecimento e crescimento humano e cristão. O contato com eles e elas desencadeia um longo processo de conversão do coração à luz da misericórdia que, antes de qualquer coisa, ilumina os olhos para que aprendam a enxergar além das aparências. Só assim é possível descobrir que há luz até nos porões do fundo do poço.
Existem tesouros escondidos atrás de espessas camadas de feridas humanas, como também muita miséria humana feita de preconceitos e perversidades atrás de um aparente estado de saúde social, legal, moral e religiosa. Quem desce nos porões das cadeias chega à conclusão de que estamos todos/as precisando de conversão.
A complexidade da realidade desmistifica a autossuficiência. As decepções e frustrações fortalecem a resiliência. As perseguições são um antídoto contra o narcisismo. A pobreza de meios vai esvaziando a mania de grandeza. A incompreensão e o isolamento enrobustecem a solidez das motivações. A desconfiança aprimora o testemunho. A escuta da história de vida das pessoas, a análise de sua proveniência, a sua condição económica, a cor de sua pele e a idade nos colocam diante da iniquidade do sistema que rege a sociedade.
O contato direto com torturas e violações aos direitos humanos questiona as consciências, intensifica a indignação e alimenta o compromisso por justiça. A sobriedade do altar e a essencialidade das vestes litúrgicas aproxima ainda mais à cena onde se consome a paixão de Cristo cujo Mistério é celebrado. A dura realidade carcerária desmonta privilégios, doutrinas e tradições, sobretudo aquelas que vêm carregadas de ódio e preconceito. O que sobra e prevalece é o Mandamento de Deus. É só por Amor que é possível prestar esse serviço a vida toda como fazem muitas pessoas empenhadas nesta frente.
Passar por toda essa “espoliação” torna-se decisivo no itinerário de formação para a vida religiosa e sacerdotal. Com certeza teríamos mais gente adotando o avental do serviço com hábito religioso e a vivência do Mandamento do Amor como a única Tradição que merece ser defendida e vivenciada a qualquer custo.
P. Xavier Paolillo, missionário comboniano
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