20 de abril de 2024

ETIÓPIA SOB A AMEAÇA DA FOME


A Etiópia volta a estar sob a ameaça da fome devido à guerra, ao roubo de ajudas humanitárias e, sobretudo, à seca.

 

Quatro décadas depois de o país ter sido palco de uma enorme carestia que matou mais de um milhão de pessoas pela fome especialmente nas zonas – hoje Estados regionais – do Tigré e Amara, o espectro da morte volta a pairar sobre o país mais populoso do Corno de África.

Os factores são sobretudo três: a guerra, os desvios de ajuda humanitária e o fenómeno climático El Niño, que afecta as chuvas, fundamentais para a agricultura e pastorícia.

 

Guerra

Quando, em 2018 assumiu o poder, o primeiro-ministro Abiy Ahmed prometeu eleições antecipadas. Contudo, devido à pandemia de covid-19, o acto eleitoral foi adiado para data a anunciar.

Todavia, a Frente de Libertação do Povo do Tigré (TPLF, na sigla em inglês), o partido que governa aquele Estado regional, decidiu organizar eleições locais à revelia do Governo Federal. Os Tigrínios viram-se envolvido numa guerra violenta com os exércitos etíope e eritreu – que tinha contas antigas a saldar com a TPLF – de Novembro de 2020 a Novembro de 2022 que, segundo algumas estimativas, matou 600 mil civis. 

Durante a guerra – que alastrou aos vizinhos Estados regionais Amara e Afar –, o Governo montou um cerco ao Tigré bloqueando o envio de assistência humanitária e cortando a electricidade, as telecomunicações e o sistema bancário no Estado rebelde. A guerra – com a destruição das infra-estruturas e da agricultura – deixou mais de cinco milhões de pessoas sob a ameaça da fome.

O conflito no Tigré foi resolvido com um acordo de paz mediado pela África do Sul, mas tropas da Eritreia ainda ocupam partes do Estado.

Entretanto, em Abril de 2023 outro conflito explodiu no Estado regional Amara. As milícias amaras ajudaram o exército no combate aos Tigrínios, mas, depois, o primeiro-ministro decidiu anexar todas as forças regionais no exército federal. Os Amaras – entalados entre a Oromia e o Tigré – não confiam no exército federal para os defender dos vizinhos mais poderosos e rebelaram-se contra o Governo.

Há outro conflito que grassa há quase seis anos no Estado regional da Oromia, o maior em dimensão e população. Em 2018, uma facção da Frente de Libertação Oromo (OLF na sigla em inglês) não apoiou o acordo de paz com o primeiro-ministro Abiy – que é oromo – e criou o OLA (Exército de Libertação Oromo), que actua sobretudo nos territórios de Wollega, Arsi e Guji. Delegações do Governo e do OLA já se reuniram por duas vezes na Tanzânia para discutir a paz, mas as negociações, mediadas pela IGAD, a Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (da África Oriental), Noruega e Quénia, foram até agora infrutíferas.

 

Desvio de ajudas em grande escala

Com a cessação de hostilidades no Tigré e o levantamento do bloqueio imposto por Adis-Abeba à região, as organizações humanitárias puderam finalmente assistir as populações famintas e doentes do Estado.

Mas um novo problema apareceu: uma parte substancial das ajudas humanitárias estavam a ser roubadas por militares e funcionários do Governo. Perante o facto e na impossibilidade de o Governo controlar o esquema de desvio de cereais em grande escala, os Estados Unidos da América e a União Europeia suspenderam a prestação de ajuda humanitária crítica ao Estado regional do Tigré em Março de 2023 e, três meses depois, a todo o país. 

A suspensão voltou a pôr a sobrevivência das populações, já de si vulneráveis devido à guerra, em apuros acrescidos. Entretanto, em Dezembro passado a suspensão foi levantada depois de os doadores terem implementado um número de medidas anti-roubo no circuito de distribuição de comida e outros bens urgentes, incluindo o uso de localizadores GPS nos camiões de transporte. 

 

Fome

O fenómeno El Niño é um evento cíclico provocado pelo aquecimento das águas do oceano Pacífico Tropical que afecta o clima global, altera as correntes dos ventos, provoca ondas de calor e secas nalgumas zonas e inundações e tempestades noutras.

El Niño afectou o regime das chuvas sobretudo no Norte do país, que o ano passado foram muito escassas. Devido à seca, as colheitas foram fracas e os pastos secaram no Norte, Leste, Sul e Sudoeste do país. No Norte, uma praga de gafanhotos piorou a situação.

Para responder ao desastre humano que se desenha, o Governo etíope e o coordenador humanitário da ONU na Etiópia lançaram um apelo urgente para financiar a resposta à insegurança alimentar nas terras altas do Norte do país, afirmando que milhões de vidas e de cabeças de gado se encontram ameaçadas pelos efeitos do El Niño. O apelo descreve a «segurança alimentar alarmante e malnutrição crescente» na zona.

Em 2024, segundo os números do Governo, 15,8 milhões de etíopes vão passar fome e por isso necessitam de ajuda urgente; 7,2 milhões de pessoas sobrevivem sob níveis elevados de insegurança alimentar aguda.

Getachew Reda, presidente interino do Governo Regional do Tigré, afirmou que 91 por cento da população do seu Estado (estimada em 5,5 milhões de habitantes) se encontra «exposta ao risco de fome e morte». 

No Estado amara, e segundo as autoridades locais, a seca deixou 1,8 milhões de pessoas a precisar de assistência alimentar urgente e matou 140 mil cabeças de gado.

Chris Nikoi, director interino do PAM – o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas – na Etiópia, afirmou que «está extremamente preocupado com a deterioração da segurança alimentar no Norte da Etiópia, onde muitas pessoas já enfrentam uma fome grave». O Programa já arrolou quase 6,2 milhões de pessoas mais vulneráveis nos Estados regionais de Afar, Tigré, Amara e Somália.

 

Politização da fome

Face ao alarme crescente, o Instituto da Provedoria Federal da Etiópia decidiu enviar observadores ao Norte do país para investigarem a situação referente à seca e à fome.

O relatório do levantamento foi tornado público no fim de Janeiro e afirma que quase 400 pessoas morreram de fome na última metade do ano passado: 351 no Tigré e 44 no Amara. As autoridades do Tigré indicam que o número de mortos é 860.

O relatório critica ainda a falta de coordenação entre o Governo Federal e os governos regionais na resposta à crise humana no Norte do país.

Entretanto, em Fevereiro passado o primeiro-ministro Abiy desautorizou o relatório da Provedoria. Num discurso no Parlamento Federal, admitiu que a seca afecta sobretudo as regiões do Tigré, Amara e Oromia e afirmou que «com base nas informações disponíveis, até à data não foram registadas mortes atribuídas à fome», mas à cólera, malária e malnutrição. «Devemos abster-nos de politizar esta questão. As tentativas de explorar a seca para obter ganhos políticos são injustificadas», alertou. Este tem sido o mantra do Governo.

O espectro da fome que paira sobre o país – em tudo semelhante à crise de 1983-1985, que afectou mais de sete milhões de pessoas (cerca de dez por cento da população) e matou mais de um milhão de etíopes –, põe em causa a imagem que o governo de Abiy construiu de um país auto-suficiente na produção de cereais para consumo e exportação. Por outro lado, a História lembra que o imperador Haile Selassie foi destronado por em 1973 e 1974 ter tentado ocultar uma situação de fome em tudo semelhante à crise actual. 

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