Naquela manhã de fins de junho, enquanto desfrutava a linda e inspiradora música de fundo que se ouvia no interior da Sé de Viseu, vi duas senhoras aproximar-se. Pensando certamente que eu fosse o guarda da Sé, uma delas, de véu na cabeça e sandálias na mão, dirigiu-se a mim e, como a querer perguntar qualquer coisa disse, muito respeitosamente: «Desculpe…»
Uma palavra que ficou suspensa no ar talvez à espera da minha reacção. Instantaneamente a minha memória transportou-me ao Egito e Sudão, onde tenho vivido mais de duas dezenas de anos como missionário comboniano, levando-me também, ainda que só imaginariamente, até aos outros países do Médio Oriente. Aí, onde a maioria esmagadora é de religião islâmica, as mulheres andam geralmente de cabeça coberta (e por vezes todo o rosto). Além disso, o tão elevado respeito pelo sagrado, vai até ao ponto de obrigar cada muçulmano, homem ou mulher, a fazer a sua oração oficial de pés descalços.
Procurei tranquilizar a senhora: «Esteja à vontade; você está na casa de Deus, que é também a sua casa.»
A sua companheira apressou-se a querer explicar. Soube então que eram turistas oriundas do Egito, uma católica e a outra muçulmana. Não tardou muito que a nossa conversa passara da língua inglesa à árabe. Souberam então que eu não só não era o guarda de segurança nem tão pouco o cicerone do grande monumento religioso que elas visitavam.
«Mas não se preocupe», gracejou a Khadija que, entretanto, mais confiante, calçava as sandálias. Senti a sua delicadeza ao querer serenar-me pelo facto de eu não poder ser-lhes de ajuda completa na sua visita ao tão importante monumento. A sua amiga mostrou-me o livro-guia turístico da cidade de Viseu enquanto me dizia: aconteceria o mesmo connosco se um dia nos encontrássemos com turistas de visita às Pirâmides do Cairo, no Egito. Somente um perito cicerone ou o livro-guia poderia ser a ajuda de forma rigorosamente desejada, concluiu.
As duas senhoras continuaram o seu giro com calma e tranquilidade no interior da Sé. Para minha surpresa notei que o altar do Santíssimo Sacramento não fora para elas tão-somente um qualquer objecto de curiosidade turística. A minha admiração quedou-se já não tanto pela Mariam que eu via ajoelhada durante longos minutos em frente do referido altar mas, sobretudo, pela sua companheira muçulmana que a imitou em gesto profundo de adoração. Antes de sair quiseram ainda passar por mim, pedindo imensa desculpa por ter disturbado a minha oração. Mas distúrbio não tinha havido, absolutamente; pelo contrário, foi uma ocasião que fez reacender em mim a certeza da realidade que o nosso mundo de hoje, afinal, não está tão perdido e sem religião como se ouve banalmente dizer.
Não me sinto, todavia, de pôr um ponto final e ficar por aqui. Porque a verdade é que este episódio tinha sido somente o primeiro de entre outros naquela manhã em que fora privilegiadamente convidado a louvar a Deus. Turistas que deixavam transparecer uma fé não inferior à de qualquer devoto peregrino.
Foi o caso de um simpático grupo de umas duas dezenas de latino-americanos que febrilmente e com vivacidade se espalharam por toda a catedral, cochichando os seus comentários. A um certo momento, o notório e distinto chefe do grupo, com um simples gesto de autoridade reuniu toda a sua gente à volta do altar do Santíssimo Sacramento. Foi um espaço distinto onde vi muitos deles ajoelhar-se e, durante vários minutos, só se ouviu a música gregoriana que permeava todo e qualquer espaço recôndito da majestosa catedral.
Tinha passado meia hora sem que eu notasse a presença de mais alguém no interior do templo. Mas naquele momento tocou um telemóvel, destoando e ofendendo a beleza musical que seduzia o ouvido e o coração. Um homem levanta-se e atende em voz baixa o telefone, ao mesmo tempo que caminha a passos largos para a porta de saída. Minutos mais tarde, o fulano entra novamente e ajoelha-se no mesmo banco de antes. E ali ficou, imóvel.
Já estava a ser meio-dia. O guarda de segurança apareceu discretamente. «Desculpem, é hora de fechar», disse, com delicadeza.
Dirigi-me para a porta. O senhor do telemóvel destoante adiantou-se, esperando-me à saída. E, num português espanholado, falou: «Peço imensa desculpa.»
Sorri para ele. Depois de uma breve pausa, ele disse ainda com humildade: «Por el ruído del telefono.»
Já não há religião? Este mundo de hoje está perdido? Os testemunhos que acima referi não são histórias inventadas. Tenho-os como sinais enviados por Deus a sugerir-nos que há que colher e cultivar na nossa vida um certo optimismo e esperança. O mundo não está perdido. Não queiramos nós fazê-lo perder.
P. Feliz da Costa Martins
Missionário comboniano no Darfur, em férias em Viseu!
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