PARADOXO PASCAL
“A vida da Igreja consiste em participar no paradoxo da Páscoa: o momento de doação e autotranscendência, a transformação da morte em ressurreição e vida nova”, o teólogo checo Tomas Halik sublinhou num discurso recente.
O autor da Carta aos Hebreus explica o paradoxo cristão, convidando-nos à contemplação: “Mantenhamos os nossos olhos fixos em Jesus, que nos conduz na nossa fé e a leva à perfeição: por causa da alegria que o esperava, ele suportou a cruz, ignorando a vergonha da mesma, e sentou-se à direita do trono de Deus” (Hebreus 12:2).
Só através de um coração contemplativo podemos compreender e experimentar o paradoxo do Mistério Pascal de Jesus, a pedra fundamental, o alicerce da nossa fé.
A raposa ensina ao pequeno príncipe na parábola intemporal de Antoine de Saint-Exupéry O principezinho que “só com o coração é que se pode ver bem. O que é essencial é invisível aos olhos”. Mais tarde, o pequeno resume o ensinamento da raposa exclamando que “os olhos estão cegos. É preciso olhar com o coração”.
O Mistério Pascal de Jesus é a manifestação do seu amor até ao fim. João apresenta a narrativa da Páscoa do nosso Senhor com as palavras “Jesus, sabendo bem que tinha chegado a sua hora da passagem deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo” (João 13,1).
Podemos compreender, podemos captar, podemos habitar no amor de Jesus apenas através de um coração contemplativo. Só através da contemplação podemos saber “qual a largura, o comprimento, a altura e a profundidade” (Efésios 3,18) do seu amor.
Fazendo memória da Páscoa de Jesus, celebramos a nossa própria Páscoa, o triunfo de Deus sobre Satanás, da vida sobre a morte, da graça sobre o pecado. Através da ressurreição de Jesus, proclamamos que a nossa pátria não são o sofrimento e a morte, mas é a alegria que é o nosso destino final, a nossa etapa eterna, a nossa vida para sempre.
A PÁSCOA DE JESUS
A Páscoa de Jesus, o seu Mistério Pascal está no centro da fé cristã, é o seu acontecimento fundador. Aos cristãos de Corinto que diziam não haver ressurreição dos mortos, Paulo é muito inflexível: “se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé e permaneceis ainda nos vossos pecados” (1 Corintos 15:17). E conclui: “Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram. Porque, assim como por um homem veio a morte, também por um homem vem a ressurreição dos mortos” (1 Coríntios 15: 20-21).
O mistério pascal de Jesus está no centro da proclamação da primeira comunidade cristã desde o Dia de Pentecostes, a própria origem da Igreja, o seu kerygma, pregão.
Nesse dia, Pedro anunciou às multidões: “Homens de Israel, escutai estas palavras: Jesus de Nazaré, Homem acreditado por Deus junto de vós, com milagres, prodígios e sinais que Deus realizou no meio de vós por seu intermédio, como vós próprios sabeis, este, depois de entregue, conforme o desígnio imutável e a previsão de Deus, vós o matastes, cravando-o na cruz pela mão de gente perversa. Mas Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o domínio da morte” (Actos 2: 22-24). Este é pregão cristão mais importante, o coração pulsante do próprio Evangelho.
As quatro Preces Eucarísticas para uso em missas por várias necessidades, mapeam o itinerário pascal de Jesus com uma oração: "Pai santo, celebrando o memorial de Cristo, vosso Filho, nosso Salvador, que, pela sua paixão e morte na cruz, fizestes entrar na glória da ressurreição e glorificastes, sentando-O à vossa direita, anunciamos a obra do vosso amor, enquanto esperamos a sua vinda gloriosa, e Vos oferecemos o pão da vida e o cálice da salvação".
A Páscoa de Jesus não é um acontecimento privado, uma viagem a solo da vida para a morte e da morte para a vida eterna. É um mistério de comunhão com o Pai. De facto, Jesus na sua Páscoa, é conduzido pelo Pai desde a sua paixão até à sua glorificação como o Senhor de todos e de tudo.
A Páscoa do Senhor é também um mistério de comunhão com os defuntos. Os ícones ortodoxos da Ressurreição apresentam Jesus trazendo consigo do lugar dos mortos todos os justos, os santos que esperavam pela sua ressurreição para serem libertados da morte. Em algumas igrejas cristãs antigas, esta teologia da ressurreição também está representada nalgumas esculturas com Jesus a vir da mansão dos mortos trazendo pela mão uma enorme multidão de santos, a começar por Eva e Adão. O Ofício das Leituras do Sábado Santo apresenta uma belíssima homilia do século IV com o mesmo teor.
A ressurreição de Jesus forma o coração da proclamação da Igreja, o seu Kerygma, desde o próprio dia da Ressurreição, no alvorecer do primeiro dia da semana, o primeiro dia da nova criação. Melhor, a ressurreição está no coração do próprio kerygma de Jesus que se torna anúncio da Igreja.
Quando Jesus se mostra aos apóstolos na sala de cima em Jerusalém, diz-lhes: “Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos, começando por Jerusalém” (Lucas 24, 46-47). E acrescentou: “Vós sois testemunhas destas coisas” (versículo 48).
No dia da Ascensão, pouco antes de voltar para o Pai, Jesus fez uma promessa aos discípulos: “Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo” (Actos 1,8).
Os primeiros crentes definiram-se a si próprios como testemunhas da ressurreição de Jesus. Pedro disse à multidão no Dia de Pentecostes: “Foi este Jesus que Deus ressuscitou, e disto nós somos testemunhas” (Actos 2,32). Mais tarde, na casa de Cornélio, em Cesareia, proclama: “Às testemunhas anteriormente designadas por Deus, a nós que comemos e bebemos com Ele, depois da sua ressurreição dos mortos. E mandou-nos pregar ao povo e confirmar que Ele é que foi constituído, por Deus, juiz dos vivos e dos mortos” (Actos 10,41b-42).
Comemos e bebemos com o Senhor Ressuscitado em cada celebração eucarística, a fim de sermos testemunhas da sua ressurreição através de vidas boas, vidas ressuscitadas, libertadas do poder de Satanás.
A ressurreição de Jesus é o coração da nossa missão. O Papa Francisco deixa-o claro num tweet: “A paixão pelo Evangelho não é uma questão de compreensão ou de estudos, que são úteis mas não a geram. Pelo contrário, significa passar pela experiência da queda e da ressurreição”.
E São Daniel Comboni escreveu: “este Coração admirável […] glorioso ressuscitado, manda os apóstolos pregar a salvação ao mundo inteiro” (Escritos 2232).
Como discípulos missionários de Jesus, somos testemunhas da sua ressurreição através da vida nova que vivemos desde o Batismo. Deus recriou-nos através do Mistério Pascal do seu Filho.
Na cultura atual marcada pelo individualismo, hedonismo, euismo, exploração, violência, destruição e morte, somos chamados a viver a bondade de Deus, a proclamar que o sonho de Deus de justiça, paz e alegria — o seu Reino — não está morto. Ele está vivo em nós, connosco e através de nós.
A nossa vida comum é o laboratório desta nova vida Pascal.
Santas festas pascais na paz do Ressuscitado!
Sem comentários:
Enviar um comentário