13 de junho de 2021
A MÍSTICA DE COMBONI
Daniel Comboni fez uma síntese de duas devoções — do Sagrado Coração de Jesus e do Bom Pastor — no ícone comboniano do Coração Trespassado do Bom Pastor, aprofundado pelo P. Francesco Pierli.
Na carta pastoral para a consagração do Vicariato ao Sagrado Coração que escreveu de El Obeid a 1 de Agosto de 1873 na qualidade de pró-vigário apostólico em parceria com o pró-secretário P. José Franceschini, exclama: «estamos profundamente convencidos de que […] do seio misterioso deste divino Coração trespassado brotarão torrentes de graça e rios de bênçãos celestes sobre este grande povo da África Central que nos é tão dilecto e sobre o qual ainda pesa tremendo, ao cabo de tantos séculos, o anátema de Cam».
Meia dúzia de anos depois, na Relação à Sociedade de Colónia escrita em Cartum a 15 de Fevereiro de 1879, o santo bispo afirma: «O Sagrado Coração de Jesus palpitou também pelos povos negros da África Central e Jesus Cristo morreu igualmente pelos Africanos. Jesus Cristo, o Bom Pastor, acolherá também a África Central dentro do seu redil. E o missionário apostólico não pode percorrer senão o caminho da cruz do divino Mestre, semeada de espinhos e fadigas de todo o género. […] Portanto, o verdadeiro apóstolo não deve ter medo de nenhuma dificuldade, nem sequer da morte. A cruz e o martírio são o seu triunfo».
Estes dois parágrafos servem de enquadramento teológico para entendermos a mística que Comboni viveu e nos propõe «tendo sempre os olhos postos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salvação das almas» — como escreveu no célebre Capítulo X sobre Normas específicas para cultivar o espírito e as virtudes dos alunos do instituto nas Regras de 1871.
Todos somos pastores, ministramos outras pessoas. Ser pastores segundo o Coração de Deus significa contemplar o Crucificado nos crucificados da sociedade — os descartados, os empobrecidos, os mais pobres e abandonados — amando-O ternamente através do serviço ministerial a esses ícones, presença real do Senhor que continua a sofrer e a morrer nas cruzes da pobreza envergonhada, do desemprego, da xenofobia, do racismo, da violência doméstica e sexual, da exploração dos imigrantes ilegais, da solidão, da doença, da morte antes do tempo.
Podemos pastorear através do imperativo moral, combatendo o mal com a moralidade, tentando controlar as opções essenciais das pessoas com quem trabalhamos, às vezes com discursos manipuladores. É uma opção que pode levar ao moralismo como meio de serviço missionário e ao consequente distanciamento em relação aos «pecadores», porque pensamos habitar um patamar mais elevado. Essa era a tentação dos fariseus.
Contemplando o Coração aberto do Bom Pastor também aprendemos a ser pastores através das feridas das pessoas que nos são confiadas, do seu pecado pessoal e social. Permitimos que o nosso coração seja trespassado pela espada das dores de quem cuidamos?
O velho Simeão profetizou a Maria, a mãe de Jesus: «uma espada de dor trespassará a tua própria alma». Este oráculo pode servir-nos como inspiração: na relação com as pessoas podemos deixar-nos trespassar pelas suas dores para que sejam curados pelas nossas chagas — como Jesus nos curou através das suas e manteve-as como sinal de triunfo e ressurreição — ou cairmos na tentação do moralismo (que por norma aplicamos sobretudo a terceiros).
Karl Rahner escreve em O cristão do futuro que o cristão do século XXI ou será místico ou não será cristão. Define a mística como «uma experiência de Deus autêntica, que brota do interior da existência».
O mesmo de aplica a nós: o missionário do século XXI ou é um místico ou não é missionário. O discípulo missionário é aquele que fica com o Mestre para aprender dele e é enviado a facilitar a experiência do amor terno e misericordioso da Trindade aos que têm fome e sede de Deus.
No fundo, é este o dinamismo evangelizador que João preconiza no prólogo da primeira carta: «O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida, — de facto, a Vida manifestou-se; nós vimo-la, dela damos testemunho e anunciamo-vos a Vida eterna que estava junto do Pai e que se manifestou a nós — o que nós vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós estejais em comunhão connosco. E nós estamos em comunhão com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Escrevemo-vos isto para que a nossa alegria seja completa».
A contemplação é uma boa terapia para as arritmias do coração missionário. A gramática da contemplação conjuga-se com ouvir, ver, tocar a Palavra da Vida nas Escrituras, nos sacramentos e na vida do dia-a-dia. Só assim podemos sincronizar o nosso coração com o de Cristo para baterem juntos pelas mesmas pessoas. Só assim é que somos pastores segundo o Coração de Deus que conduzem o rebanho do Senhor com inteligência e sabedoria.
A imagem que ilustra esta reflexão é um ícone usado pelos Comboniamos no Egito nas atividades de animação missionária. Foi inspirado no chamado ícone da amizade ou do abraço, uma obra copta do século VI hoje exposta no Museu do Louvre para fazer memória de São Menas «que deu bom testemunho do Salvador».
A amizade, o abraço que Comboni recebe de Jesus, é a amizade e o abraço para os africanos. A contemplação do Coração Trespassado do Bom Pastor leva-nos ao mesmo dinamismo: darmos daquilo que recebemos, falarmos daquilo que sabemos, testemunharmos aquilo que vivemos. Paulo é claro: «acreditamos e por isso falamos».
O Papa Francisco recorda que «a missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo».
O diálogo tenso e intenso entre o Senhor ressuscitado e Pedro na aparição junto ao Mar de Tiberíades ilustra as dinâmicas desta paixão.
Jesus renova o convite a Simão, filho de João, ao seguimento depois de lhe perguntar «Amas-me?» (duas vezes) e «És meu amigo?» (uma vez). Pedro repete três vezes: «Sim, Senhor, Tu sabes que sou teu amigo». De cada vez que Pedro confessa a amizade por Jesus, recebe o imperativo vocacional «apascenta os meus cordeiros», «pastoreia as minhas ovelhas», «apascenta as minhas ovelhas».
Os missionários combonianos somos testemunhas do amor da Trindade Santíssima através da relação amiga com o Senhor ressuscitado vivida na vida comunitária. Só assim conseguimos a resiliência para sermos fiéis à nossa vocação de testemunhas do amor misericordioso de Deus expresso por Jesus através da sua vida e do Seu mistério pascal, através do coração trespassado pela lança e pelas nossas dores.
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