12 de fevereiro de 2015

PROFECIA E MISSÃO

© JVieira

Convidaram-me para reflectir sobre o binómio profecia e missão talvez por ser missionário consagrado. Profecia, evangelho e esperança são as linhas com que se faz o tecido da consagração missionária.

O Papa Francisco escreve na carta apostólica às pessoas consagradas: «Espero que “desperteis o mundo”, porque a nota característica da vida consagrada é a profecia. […] Um religioso não deve jamais renunciar à profecia.»

O papa argentino continua: «O profeta recebe de Deus a capacidade de perscrutar a história em que vive e interpretar os acontecimentos: é como uma sentinela que vigia durante a noite e sabe quando chega a aurora (cf. Is 21, 11-12). Conhece a Deus e conhece os homens e as mulheres, seus irmãos e irmãs. É capaz de discernimento e também de denunciar o mal do pecado e as injustiças, porque é livre, não deve responder a outros senhores que não seja a Deus, não tem outros interesses além dos de Deus. Habitualmente o profeta está da parte dos pobres e indefesos, porque sabe que o próprio Deus está da parte deles.»

Esta definição é o fio de pensamento da minha reflexão. Com uma ressalva: os consagrados não esgotam a missão profética da igreja; todos os baptizados participam do profetismo único e último de Jesus. A unção crismal depois do baptismo fá-los para sempre membros «de Cristo sacerdote, profeta e rei.»


JESUS: O PARADIGMA

O evangelista Lucas conta que Jesus fez a sua declaração de missão na sinagoga Nazaré, depois de ter sido baptizado por João no além-Jordão.

Recordamos o texto: «Veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, deparou com a passagem em que está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor.” Depois, enrolou o livro, entregou-o ao responsável e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Começou, então, a dizer-lhes: “Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir”» (Lucas 4, 16-21).

Três versículos depois, Lucas conta que Jesus retorquiu aos conterrâneos que disputavam as suas credenciais: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria» (Lucas 4, 24). Jesus faz uma ligação transversal clara e inequívoca entre profetismo, Escrituras e o serviço aos pobres.

O profeta, porta-voz de Deus, tem que voltar repetidamente às Escrituras para aprender, viver e anunciar o sonho de Deus. Para ser sentinela de Deus, precisa dos ouvidos de discípulo para consolar o seu povo (Isaías 50, 4)!

Mais! O profeta de hoje reza as Escrituras numa leitura dialógica com os media. Deus continua a falar através de muitas outras palavras impressas, difundidas, digitais.


POBRES, LUGAR TEOLÓGICO DA PROFECIA

Jesus, na declaração de missão em Nazaré, é claro: os pobres são o lugar teológico da profecia, não como conceito abstracto mas como espaço humano que o profeta tem que habitar. O profetismo de gabinete, asséptico, é só exercício intelectual. Os pobres são as periferias existenciais que as sentinelas de Deus vivem, perscrutam, patrulham.

Os pobres são gente real, de carne e osso. Não são nem conceitos sociopolíticos nem estatísticas de tabelas de cálculo. Têm rosto e nome como tu e eu. São gente sem recursos, desempregados, doentes, idosos, toxicodependentes, refugiados, sem-abrigo, traficados, escravizados, crianças, jovens, mulheres, migrantes… É neles que Jesus sofre hoje.

Os pobres são também os parceiros privilegiados de Deus, os donos do Reino (Lucas 6, 20b ) e os eleitos de Deus (Tiago 2,5). O salmista reza: «SENHOR, eu sei que defendes a causa do indigente e fazes justiça ao pobre» (Salmo 140, 13). E acrescenta: «Feliz daquele que cuida do pobre; no dia da desgraça, o SENHOR o salvará» (Salmo 41, 2). Paulo proclama que na sua bondade Jesus «sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Coríntios 8, 9).


ESTATÍSTICAS DA DESIGUALDADE

Permitam-me apresentar a realidade do mundo dos pobres através de algumas estatísticas sobre pobreza, riqueza extrema, desemprego, escravatura e infância.

Pobreza: O Banco Mundial calcula que mais de mil milhões de pessoas (cerca de 11% da população global) vivem em pobreza extrema com menos de 1,25 dólares americanos por dia (cerca de um euro).

A EUROSAT indica que quase um quarto da população da União Europeia e 27,4% da população portuguesa vive no limite da pobreza e exclusão social. O Instituto Nacional de Estatística (INE) diz que 19,5% dos portugueses e 25,6% dos menores estão em risco de pobreza. O limiar da pobreza em Portugal está nos 4,90 euros.

Riqueza extrema: segundo a nota informativa Wealth: having it all and wanting more da ONG inglesa OXFAM, um por cento da população adulta é dona de 48% da riqueza mundial, deixando os restantes 52% para 99 % da população. Daqui a um ano esses 1% super-ricos vão ter mais de 50% da riqueza mundial.

Desemprego: de acordo com a OIT, a Organização Internacional do Trabalho, há 201 milhões de desempregados no mundo. Podem chegar aos 212 milhões em 2019. Em Portugal, a taxa de desemprego estimada para o quarto trimestre de 2014 foi de 13,5%, 698,3 mil pessoas sem trabalho, incluindo 11.044 casais.

Escravatura: 35,8 milhões de pessoas vivem alguma forma de escravidão que incluiu trabalho forçado, tráfico, casamento forçado e exploração sexual por dinheiro. Os dados são de Global Slavery Index que analisa há dois anos a escravatura moderna em 167 países. Portugal ocupa a posição número 157 da tabela com 1400 pessoas escravizadas. A escravatura gera 32 mil milhões de dólares por ano. Depois das drogas e das armas é a terceira actividade ilegal mais lucrativa.

Infância: segundo a UNESCO, 58 milhões de crianças entre os 6 e os 11 anos não frequentam a escola. Desses, 15 milhões de meninas e 10 milhões de meninos provavelmente nunca irão à escola. O direito à educação é negado a uma em cada dez crianças. Por outro lado, a Organização Mundial do Trabalho diz que há 168 milhões de crianças-trabalhadoras e dessas 85 milhões fazem trabalhos perigosos. A UNICEF denuncia que cerca de dois milhões de crianças são afectadas pela exploração sexual cada ano. O negócio rende 20 mil milhões de dólares. Cerca de 250 milhões de meninas casaram-se antes dos 15 anos.

Estes dados devem fazer-nos discernir as coordenadas do profetismo.


DIALÉTICA PROFÉTICA: DENUNCIAR E ANUNCIAR

«A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem consiste na visão de Deus», escreveu Ireneu de Lião no século II.

O profeta, porta-voz de Deus, é chamado a ser vidente, a discernir o presente, a linha entre a noite e o dia, o mal e o bem, num processo dialéctico de denúncia e anúncio: denúncia da má-nova dos poderes do Maligno, anúncio da boa-nova de que o reinado de Deus, «de justiça, paz e alegria» (Romanos 14, 17), já está entre nós (Lucas 17, 21).

O profeta denuncia a ordem económica iníqua que descarta as pessoas e as reduz a objectos de consumo, desrespeita o ambiente, ignora o bem comum e diviniza o ganho absoluto.

O profeta denuncia a cultura do individualismo narcisista globalizado, expresso no culto do auto-retrato (vulgo selfie). O euismo «favorece um estilo de vida que debilita o desenvolvimento e a estabilidade de vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos familiares» como escreve o Papa Francisco no n.º 67 da Evangelii Gaudium.

O profeta anuncia uma economia sustentável que respeita a dignidade da pessoa, o bem comum e a criação, a partilha e a compaixão, a mística do (re)encontro e da comunhão como o sonho de Deus para todos. Fá-lo através de uma espiritualidade de resistência cultural que propõe alternativas ao consumismo e ao individualismo através de vidas sóbrias, solidárias e saudáveis.

Deus criou-nos para sermos co-criadores (Salmo 8, 5-7). A economia que reduz a pessoa a consumidora não é economia de Deus. É provável que muitas das neuroses que afectam a sociedade contemporânea venham da impossibilidade de as pessoas cumprirem a capacidade criativa e criadora com que Deus as abençoou.

Somos infelizes porque não criamos, não produzimos; só consumimos, compramos.

A falácia de um crescimento económico constante é uma aberração que está a levar ao crescimento espiriforme da produção e consequente consumo de matérias-primas e poluição. A Terra não tem capacidade para regenerar as feridas da sobreexploração dos recursos e decompor os resíduos. Daí o inexorável inquinamento dos solos, subsolos, água e ar que alteram o clima e a dificultam a vida sobretudo aos mais pobres.

É tempo de assumir sem falsas defesas pseudocientíficas que o consumismo tem um preço humano, climático e ecológico demasiado elevado para ser sustentável.

A cultura do usa e deita fora é responsável pelo trabalho (quase) escravo em países de mão-de-obra barata e pelo desemprego de longa duração em países desenvolvidos. A Organização Mundial do Trabalho denuncia que pessoas escravizadas produzem pelo menos 122 artigos em 58 países. O trabalho ilícito gera pelo menos 150 mil milhões de dólares por ano.

O consumo exagerado tem outros custos humanos: 11% da população mundial passa fome apesar de a produção mundial rondar as 4600 quilocalorias por dia por cabeça. Uma alimentação saudável precisa de 2500 quilocalorias por dia por pessoa.

A sobreprodução está a causar danos ecológicos irreparáveis incluindo erosão, poluição, desaparecimento de espécies, episódios climáticos extremos e esquecimento global.

Esta escola católica de ensino terciário é famosa pela sua faculdade de economia e gestão e orgulha-se de ter a melhor business school do país. Impõe-se perguntar se a economia que aqui aprende é amiga dos pobres ou dos ricos, se segue o dividir da economia de Deus ou o multiplicar da economia do grande capital como método para gerar riqueza. A exortação apostólica Evangelii Gaudium é uma ferramenta importante para aferir o que se ensina nas faculdades de economia e de teologia.


INTERNET: PRAÇA DE PROFETAS

A Internet veio revolucionar as comunicações transformando o mundo numa malha apertada de pessoas com cerca de 3000 milhões de utentes em 2015. Estamos à distância de um clique, de um «Gosto» mas há mais comunicação digital para além das redes sociais.

A Internet transformou o mundo numa aldeia global. Sabemos o que se passa em tempo real no Chade ou na China, na Polónia ou no Peru, talvez melhor do que na nossa rua, na nossa aldeia.

Comunicamos tanto e vivemos tão sozinhos.

Contudo, a rede mundial é uma teia de cumplicidades e afectos que pode constituir um compromisso colectivo para o cuidado de todos, sobretudo dos membros mais pobres e fracos.

Na perspectiva cristã, os elos mais fracos da sociedade são também os mais necessários: «Quanto mais fracos parecem ser os membros do corpo, tanto mais são necessários, e aqueles que parecem ser os menos honrosos do corpo, a esses rodeamos de maior honra, e aqueles que são menos decentes, nós os tratamos com mais decoro» (1 Coríntios 12, 22-23).

A net pode transformar os muros sociais, culturais, económicos e religiosos em pontes de encontro através de pequenos gestos solidários de comunhão e cuidado, de vidas mais verdes e baratas, de respeito pela pessoa, sobretudo pelas minorias, da partilha de estórias, de factos e de preocupações para chegarmos a uma consciência mais global, a uma nova ordem nas relações humanas.

A net é uma praça propícia para propor a liberdade, democracia, direitos humanos, paz, igualdade do género, educação, saúde, trabalho como bens comuns não negociáveis.


PROFETAS DAS GRAÇAS

O Papa João XXIII no discurso de abertura solene do Concílio Vaticano Segundo denunciou com um sorriso bondoso os «profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo.»

E acrescentou: «Na ordem presente das coisas, a misericordiosa Providência está-nos levantando para uma ordem de relações humanas que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para além do que eles esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios superiores e inesperados, e tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para o bem da Igreja.»

Junto outra citação da Carta Apostólica do Papa Francisco às pessoas consagrada: «Às vezes, como aconteceu com Elias e Jonas, pode vir a tentação de fugir, de subtrair-se ao dever de profeta, porque é demasiado exigente, porque se está cansado, desiludido com os resultados. Mas o profeta sabe que nunca está sozinho. Também a nós, como fez a Jeremias, Deus assegura: “Não terás medo (...), pois Eu estou contigo para te livrar”.»

Termino com esta nota de esperança, a nós, discípulos missionários, que somos chamados a ser profetas das graças de Deus, a proclamar as suas maravilhas em todas as línguas – incluindo a digital – para viver juntos uma cultura que seja epifania do sonho de Deus para todos.

Obrigado!

Reflexão apresentada no painel sobre a profecia das XXXVI Jornadas de Estudos Teológicos da Universidade Católica Portuguesa

2 comentários:

Arlindo Pinto disse...

Os meus parabéns. Um abraço. Arlindo

Arlindo Pinto disse...

Parabéns.