17 de dezembro de 2024

DEUS, MINHA MÃE


Por defeito profissional, quando leio um romance, procuro notar qual é a relação do autor com Deus. Valter Hugo Mãe, no seu Deus na escuridão – uma ficção que tem a Medeira como cenário – fala de Deus como mãe. Porque, como escreve Afonso Cruz em Flores, «Deus não é macho».

No décimo capítulo, que leva o título do livro, o autor escreve no primeiro parágrafo, que «Deus é certamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciam a presença, o regresso dos filhos». 

E prossegue: «Deus é exatamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez maior saudade. [...]. Deus, como as mães, corre os dias inteiros à janela e escuta. [...] A casa de Deus tem a chave do lado de fora, debaixo de um vaso. Toda a gente o sabe. É tique de todas as mães que dormem lá dentro vulneráveis q qualquer ladrão. [...] Exatamente como as mães, Deus cozinha os seus pratos favoritos e acredita que agora ficarão para sempre.»

Esta ideia de Deus como mãe não é estranha à Bíblia. Devido à nossa cultura, desenvolvemos muito o conceito de Deus-Pai e esquecemos o de Deus-Mãe. No livro do Deuteronómio lemos: «Desprezas a Rocha que te deu à luz, esqueces o Deus que te gerou» (Deuteronómio 31:18, na tradução da Bíblia de Jerusalém; a Bíblia dos Capuchinhos, traduz: «Desprezaste o Rochedo que te gerou, e esqueceste o Deus que te formou»).

O profeta Isaías também fala de Deus como mãe. No capítulo 49, Deus pergunta: «Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas?» E responde: «Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria!».

No último capítulo do livro, Deus promete: «Como a mãe consola o seu filho, assim Eu vos consolarei».

O povo guji, com quem vivo, partilha a mesma intuição. Começa as orações tradicionais invocando «Deus nosso Pai, Deus nossa Mãe, Deus nosso Avô, Deus nossa Avó, Deus nosso Bisavô, que nos deu à luz!»

Eu aprendi a rezar com eles, a invocar Deus por. novos nomes. A missão é circular: evangelizamos e somos evangelizados. Anunciamos Deus e aprendemos novas formas de dizer Deus. 

Tomas Halik, teólogo checo que, juntamente com José Tolentino Mendonça, me inspira, escreve em O sonho de uma nova manhã, o seu livro mais recente, que «a evangelização sob a forma de inculturação pressupõe [...] também a disponibilidade para compreender a nossa própria fé de uma nova e mais profunda forma, num novo contexto cultural». O sublinhado é dele.

Voltando ao Deus na escuridão, Valter Hugo Mãe apresenta uma definição de oração interessante: rezamos para dizer a Deus aonde estamos. 

As rezas são uma espécie do transmissor que identifica os aviões e marcam a sua posição no céu: «Se Deus pudesse, escreveria a cada filho uma carta de amor para o convencer a vir em visita. Mas o paradeiro do filho só se descortina pela prece. Sem isso, Deus guarda as cartas que escreve sem ter para onde as enviar. Espera. No que à visão de seus filhos se refere, Deus espera na escuridão. Seu candeeiro é Seu nome na boca do filho.» 

Genial!

10 de dezembro de 2024

CELEBRAR A PADROEIRA





Qillenso – a missão entre o povo guji da Etiópia onde sirvo – foi estabelecida oficialmente em 1981, dedicada à Senhora das Dores. Entretanto, a festa da padroeira passou a ser comemorada a 8 de dezembro, Senhora da Imaculada Conceição. 

Oficialmente a paróquia continua dedicada à Senhora das Dores. Porém, a data da solenidade foi mudada por duas razões. 

Primeiro, setembro e outubro são, aqui, o ponto alto da estação das chuvas. Quando chove, chove mesmo e estorva a organização e as deslocações.

Depois, em setembro os produtos agrícolas – milho, café, repolho, cereais – estão a crescer. Em dezembro, em plena estação seca o tempo das colheitas dá muito mais de comer e dinheiro para comprar.

A festa deste ano celebrou-se no domingo, dia 8, mas os preparativos começaram nos dias anteriores. Os jovens ensaiaram a dramatização da parábola do filho pródigo e os coros deram lustro às atuações.

Na sexta, um grupo de mulheres lavou o chão e as cortinas da igreja. 

No sábado, as adolescentes assearam o templo depois da reunião semanal. 

Algumas mulheres, ajudadas pelo catequista Mi’essa e por um dos anciãos da comunidade, estiveram até às duas da manhã a migar couves e repolhos, a raspar cenoiras e a cozer pão – bolos de trigo de um palmo de diâmetro e dois dedos de altura – para o almoço da festa. Devido a um apagão de mais de 24 horas, as mulheres trabalhavam de pilhas amarradas à cabeça.

Para a festa paroquial, participaram representantes de quatro das cinco capelas do centro. De Gosa, a 35 quilómetros mais a norte, não é fácil arranjar transporte ao domingo. As Missionárias da Caridade, as Irmãs de Santa Teresa de Calcutá, também marcaram presença com um grupo de jovens de Adola, o centro citadino da missão.

A igreja, que é pequena, estava à pinha, com as crianças sentadas nos degraus do altar e o corredor central e outros espaços com bancos e cadeiras extra. Estava decorada com bandeirinhas no exterior e balões e ervas de junco no interior.

A missa estava marcada para as 9h30. Porém, começou uma hora depois. Como é uso, foi bem participada, cantada e dançada. Coube-me presidir, ladeado pelo pároco e pelo seminarista que vive connosco, os catequistas da zona e os acólitos.

Depois da eucaristia – que demorou mais de duas horas – os jovens apresentaram a encenação inculturada da parábola da misericórdia. A assembleia seguiu o drama muito atenta e gozosa!

Os coros atuaram depois: os três de Qillenso (mulheres casadas dirigidas por Mi’essa, jovens com alguns adultos penetras e adolescentes) e os das capelas. Todos trajados a preceito. Entre atuações foram leiloados os produtos levados para o ofertório: milho, café, manteiga, uma galinha...

Já passava das 15h00 quando fomos para o salão paroquial para o almoço. Um momento sempre alegre. A ementa foi simples, mas nutritiva: um bolo de pão com um prato de vegetais cozidos. A comida estava saborosa.

Depois veio o grande desafio de futebol entre a equipa de Qillenso e a seleção do resto das capelas. Um jogo bem disputado e aferroado: os da casa levaram os hóspedes de vencida. E também houve alguma briga de permeio. É costume!

Assim se celebrou a Senhora das Dores no dia da Senhora da Imaculada Conceição de Qillenso com uma mensagem fundamental: «Temos mãe!». A declaração que o papa Francisco repetiu, emocionado, em Fátima há sete anos e meio, durante a eucaristia do centenário das aparições. Ainda ressoa dentro de mim.

 

2 de dezembro de 2024

AZUL DO CÉU

Hoje o pintor encheu de anil
o céu por cima de mim.
Sem fiapo de nuvem

nem grão de poeira.
Um azul que envolve 
e devolve,
e enche o olhar de paz
e o coração!
Um céu que leva
para além dele,
atrás do horizonte:
cor de infinito 
sobre tela breve.
Este azul celeste,
da mana-saudade,
que também é dele,
fundo, altaneiro,
regressa-me ao dia primeiro 
quando a Voz criadora anelou:
"Faça-se luz!"
A luz? 
Azul anilado,
índigo!


15 de novembro de 2024

HAWASSA TEM NOVO BISPO


O Vicariato Apostólico de Hawassa, no Sul da Etiópia, já tem bispo nomeado depois de uma longa espera de quatro anos. 

A notícia apareceu hoje no Boletim da Sala de Imprensa do Vaticano e foi tornada pública na casa episcopal de Hawassa pelo Encarregado de Negócios da Nunciatura Apostólica de Adis-Abeba, Monsenhor Massimo Catterin.

Dom Gobezayehu Getachew Yilma é o Vigário Apostólico nomeado para Hawassa.

O novo prelado fará 46 anos a 4 de dezembro e pertence ao clero do Vicariato Apostólico de Meki. 

Nasceu em Dodola, na Zona de Bale, Estado Regional da Oromia, a 4 de dezembro de 1978.

Antes de ingressar no seminário estudou agronomia.

Foi ordenado padre em 2005.

É doutorado em Teologia na vertente da Doutrina Social da Igreja.

Até agora, desempenhava as funções de Vigário Delegado do Vicariato Apostólico de Meki e Diretor Executivo da Cáritas Diocesana.

A sua nomeação foi recebida com grande regozijo.

Há cerca de quatro anos que o Vicariato de Hawassa era administrado pelo P. Juan Núñez, comboniano espanhol que há um mês completou 80 anos.

Dom Gobezayehu é o quinto bispo de Hawassa, sucedendo a três combonianos e a um salesiano (todos italianos) que, há quatro anos, foi transferido para o Vicariato Apostólico de Gambella.

O Vicariato Apostólico de Hawassa cobre um território em forma de triângulo com mais de 100 mil quilómetros quadrados, evangelizando os grupos étnicos Sidama, Guji, Guedeo, Borana e Amaro.

É a maior jurisdição católica em termos de fiéis. Em dezembro de 2023 contava com quase 280 mil católicos registados.

A Prefeitura Apostólica de Hawassa, foi iniciada pelos Combonianos em 1969 com o território da antiga Prefeitura Apostólica de Neguele e parte da de Hosanna. 

Foi elevada a Vicariato Apostólico dez anos mais tarde.

Tem 22 paróquias-missões com 558 capelas, servidas por 49 padres, 22 diocesanos e 27 missionários (Combonianos, Espiritanos, Apóstolos de Jesus, Salesianos e Capuchinhos), oito irmãos, 69 irmãs, 109 catequistas a tempo inteiro e 531 em ocupação parcial. Também conta com uma congregação feminina local.

As suas 62 escolas da pré-primária até ao secundário são frequentadas por cerca de 24 mil alunos ensinados por 656 professores. 

O Vicariato tem 13 estabelecimentos de saúde, incluindo um hospital de saúde materno-infantil. 27 médicos e 120 enfermeiros atendem cerca de mil pacientes por dia.

A Igreja em Hawassa dá emprego a 762 trabalhadores nas diversas missões.

Chama-se Vicariato Apostólico a uma diocese sob a jurisdição do Dicastério para a Evangelização dos Povos. Tecnicamente, o prelado é o Bispo de Roma. Daí o título de Vigário Apostólico dado ao bispo local.

13 de novembro de 2024

O SÍNODO TERMINOU E VAI COMEÇAR

A XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos «Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão» chegou ao fim depois de três anos de trabalhos intensos. O caminho sinodal começou a 9 de outubro de 2021 e cortou a meta a 27 de outubro de 2024. Agora começa a sua execução.

Foi um sínodo novel a muitos títulos. Sublinho alguns: começou com uma auscultação mundial sem precedentes; teve assembleias nacionais e continentais; decorreu não no anfiteatro do costume, mas no espaço raso da Sala Paulo VI; utilizou o método de trabalho de conversação no Espírito através de pequenos grupos; teve mulheres e homens não bispos a votarem; e Francisco anunciou que não vai escrever uma Exortação Apostólica pós-sinodal, atribuindo ao Documento Final autoridade própria.

O trecho conclusivo insere uma pequena citação da narrativa das aparições de Jesus Ressuscitado do Evangelho segundo São João (capítulos 20 e 21) na introdução, em cada uma suas das cinco partes e na conclusão.

O recurso leva-nos às origens da experiência cristã e da Igreja: o encontro com o Ressuscitado. Foi esse evento que transformou a vida de um punhado de discípulos aterrados e de portas trancadas num qualquer primeiro andar em Jerusalém em anunciadores intrépidos de que Jesus vive e é o Senhor do universo. É o encontro com o Senhor Ressuscitado que sustém a Igreja e cada um dos seus membros hoje e sempre na sua peregrinação através da história.

Documento Final marca um regresso em força ao Concílio Vaticano II e mormente à sua eclesiologia. A Constituição Dogmática Lumen Gentium (de 21 de novembro de 1964) sobre a Igreja é citada mais de quatro dezenas de vezes ao correr do texto. Outros sete documentos conciliares também são mencionados.

A palavra-chave do documento é relações/relação. Na versão portuguesa do Documento Final a palavra relações aparece 56 vezes desde o parágrafo 8 até à conclusão e o seu singular 24. Aliás, a Parte II do texto é intitulada «Conversão das relações».

«Ao longo de todo o caminho do Sínodo e em todas as latitudes, emergiu o apelo a uma Igreja mais capaz de alimentar as relações: com o Senhor, entre homens e mulheres, nas famílias, nas comunidades, entre todos os cristãos, entre grupos sociais, entre as religiões, com a criação», assinala o parágrafo 50.

A conclusão sublinha que «Espírito colocou no coração de cada ser humano o desejo de relações autênticas e de vínculos verdadeiros» (n.º 154).

Estamos perante a génesis de uma nova teologia da fé e da Igreja como entrelaçado de relações múltiplas e artesanais à volta do Ressuscitado? Uma Igreja sinodal é uma Igreja relacional.

O documento – que na tradução portuguesa tem menos de 27 mil palavras – está estruturado em 155 parágrafos. É mais teórico que o Relatório de Síntese da primeira sessão, que vinha recheado de propostas práticas e diversificadas.

Repete que a Igreja Sinodal assenta no tripé da comunhão, participação e missão, que a Igreja é uma comunhão harmónica de diferenças, que a formação permanente ao estilo do catecumenado é para todos e todos juntos: dos fiéis leigos aos bispos, e volta a falar da missão no digital.

Muitos dos temas mais quentes com a ordenação de mulheres diáconos, a instituição de novos ministérios e as mudanças no Direito Canónico para acomodar novas práticas sinodais foram confiados às respetivas comissões.

A África é mencionada duas vezes: quando o documento recorda que o SECAM, o Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagáscar, foi mandatado de discernir sobre o acompanhamento pastoral de pessoas em matrimónios poligâmicos (n.º 10), e quando o trabalho dos catequistas que «sempre estiveram à frente de comunidades sem presbíteros em muitas regiões de África» (n.º 76) é exemplo concreto do que é o ministério de coordenação de uma pequena comunidade eclesial.

7 de novembro de 2024

GERAL COMBONIANO NOMEADO BISPO


O Superior Geral dos Missionários Combonianos foi nomeado bispo auxiliar da arquieparquia de Adis-Abeba, na Etiópia.

A notícia foi dada na quarta-feira, 6 de novembro de 2024, no Vaticano e em Adis-Abeba. A sua nomeação foi saudada pela Igreja da capital etíope e pela família comboniana.

Dom Tesfaye Tadesse Gebresilasie tem 55 anos. Foi ordenado padre em 1995 e serviu como missionário no Egito (onde estudou o árabe), no Sudão (encontrei-o na missão de Omdurman em 1998), na Etiópia e na Direção Geral dos Missionários Combonianos.

É licenciado em Teologia e diplomado em Estudos Islâmicos. Foi Superior Provincial na Etiópia de 2005 a 2009 e presidente da Conferência de Superiores Maiores. 

No Capítulo Geral de 2009 foi eleito Conselheiro Geral e em 2015 Superior Geral, sendo reeleito em 2022. 

O bispo-nomeado participou nas duas sessões do Sínodo sobre a Sinodalidade.

«Recebemos esta notícia com emoções e sentimentos mistos, entre os quais prevalece a gratidão a Deus pelo dom que nos deu até agora na pessoa do P. Tesfaye como nosso Superior Geral e como confrade», o Conselho Geral escreveu em comunicado aos confrades. 

E ajuntou: «Reconhecemos que a escolha da sua pessoa também representa um dom para o serviço da Igreja particular para cujo crescimento colaboramos como Instituto».

Os combonianos têm duas comunidades em Adis-Abeba: a sede provincial e o postulantado.

Era voz corrente que o Cardeal Berhaneyesus Souraphiel preferia o P. Tesfaye para lhe suceder à frente da Igreja em Adis-Abeba.

Ambos partilham um percurso semelhante: nasceram em Harar, no leste do país, cresceram em Adis-Abeba, pertencem a uma congregação missionária (o arcebispo é lazarista).

Aliás, em 2022, o Capítulo Geral dos Combonianos foi interrompido porque o Dicastério para as Igrejas Orientais ao saber que o P. Tesfaye foi reconduzido no cargo de Superior Geral chamou-o para lhe propor que recusasse a reeleição. Queriam fazê-lo bispo para Adis-Abeba. Ele tinha dado o sim aos capitulares e manteve a decisão.

Dom Tesfaye sucedeu-me como diretor da Escola Média da missão de Haro Wato, que abri em 1995 com a colaboração das autoridades educativas do distrito to Uraga. 

É um homem afável, humilde, tranquilo, próximo, consensual, espiritual. E tem medo das alturas. 

Somos amigos desde 2005 quando visitei a Etiópia com dois jornalistas, colaboradores da revista Além-Mar. Além de prover transporte para visitarmos as missões no sul do país, levou-nos à nova missão de Gilgel Beles, entre o povo Gumuz, no oeste.

Quando visitou Portugal, levei-o de Viseu para o Porto através de Cinfães para lancharmos com os meus pais. 

Quando chegamos à Maia olhou-me com o seu sorriso maroto e disse: «Agora entendo porque gostavas tanto das montanhas da Etiópia!». Tínhamos subido e descido o Montemuro e as Montedeiras.

É certo que o Instituto perde um grande Superior Geral e a arquieparquia – é assim que se designa uma arquidiocese do rito oriental – de Adis-Abeba ganha um grande eparca auxiliar e, muito provavelmente, um arquieparca no futuro próximo. 

Uma comboniana, veterana na Etiópia, saudou a sua nomeação com uma mensagem singela: «Parabéns à família dos combonianos. Que a Igreja na Etiópia cresça e se abra na direção missionária».

Todavia, a sua nomeação representa um desarranjo grande para os combonianos que têm de eleger um novo geral e, se ele fizer parte do Conselho Geral, um novo conselheiro. 

Dom Berhaneyesus tem 76 anos, mas encontra-se relativamente bem de saúde. 

No ano passado teve uma crise cardíaca (que, ao que sei, foi resolvida) e podia dirigir a sua Igreja até aos 80 anos. Dava tempo a Dom Tesfaye de terminar o mandato sem sobressaltos para o Instituto. 

Contudo, o Vaticano não pensa assim. Como me confidenciou o membro do Conselho Geral de outro Instituto missionário, «somos pau para as colheres sem pau». 

Que o Senhor da Missão abençoe o novo serviço missionário de Dom Tesfaye.

5 de novembro de 2024

BORDAR PARA VIVER

Vemo-la chegar sorridente e orgulhosa. Após apenas quatro lições, esta senhora beduína apresenta-nos uma saquinha bordada e cosida à mão com fecho de correr. 

«Onde é que arranjou o fecho?», perguntamos. 

Ela sorri e explica: «Tirei-o de um vestido!». 

Outra mulher acrescenta: «Eu tirei o meu de um par de calças.». 

A verdade é que todas elas se superaram. Nunca tinham estudado costura ou bordado, e agora conseguem pregar um fecho de correr à mão e bordar uma saquinha.

«Vocês saltaram do jardim de infância para o ensino secundário!», dizemos-lhes entusiasmadas.

Existem vários grupos de mulheres em várias aldeias beduínas no deserto da Judeia. Fizemos planos para que 160 mulheres beduínas recebessem formação em bordados palestinianos e criassem produtos para abrir portas de solidariedade. 

Cada uma delas mostra o máximo empenho na aprendizagem e o entusiasmo é contagiante. É um verdadeiro prazer observá-las enquanto se dedicam apaixonadamente a esta nova forma de arte. 

Para muitas, é a primeira vez que usam uma agulha, mas estão determinadas a preservar o bordado beduíno, especialmente agora que a sua terra lhes treme sob os pés. Neste contexto de incerteza, o que lhes dá força é a vontade de se agarrarem às suas raízes e à sua identidade.

Devido ao conflito em curso, muitos homens, que eram o principal sustento das famílias, continuam sem trabalho. Consequentemente, estas mulheres estão motivadas para ganhar alguma coisa para alimentar os entes queridos. 

Algumas dizem que bordam de manhã até tarde, dando o seu melhor para garantir a subsistência das suas famílias. É um período muito difícil, mas a sua determinação é uma fonte de inspiração.

Vemos como elas se concentram no processo de aprendizagem, passando tempo a ver vídeos de bordados e tentando melhorar a técnica, diariamente. Muitas delas dizem que o bordado as ajuda a distrair-se e a pensar em algo positivo, dando-lhes a oportunidade de ocupar a mente de forma construtiva.

Neste clima de opressão, elas procuram afirmação. 

«Digam-me que é bom!», dizem. 

Olhos nos olhos, sinto a importância de responder: «És fantástica! Que criatividade! O que estás a fazer é muito bonito, e vais melhorar cada vez mais!».

Por isso, agradecemos do fundo do coração a solidariedade dos nossos benfeitores. Graças ao vosso apoio, 160 mulheres beduínas continuarão o processo de aprendizagem e de criação. A vossa generosidade é essencial para ajudar as famílias e comunidades a viver, literalmente. Estes são tempos difíceis e é-lhes dada a oportunidade de criar, de sonhar, de aprender, de crescer, de ter esperança e de viver.

Ir. Cecília Sierra,

Comboniana, missionária com beduínas do Deserto da Judeia

2 de novembro de 2024

O SENHOR DAS PULSEIRAS


Os patriarcas do Antigo Testamento tinham o costume simpático de construir altares com pedras ou madeira no sítio onde tiveram experiências significativas e encontros especiais com o Senhor Deus. A Terra a que hoje chamamos de Santa estava cheia destes memoriais da ação de Deus na vida de Abraão, Isaque e Jacob. E de outras pessoas.

Os meus altares, os memoriais do meu passado e presente, são feitos de pulseiras. Uso quatro: uma de missangas azuis e transparentes, uma dezena do terço feito de contas de vidro e missangas, uma de contas verdes, amarelas e encarnadas e uma de couro.

A pulseira de missangas azuis e transparentes, em espinha, foi feita no Lady Lomin, um centro de artesanato que os combonianos tinham na missão de Lomin, Condado de Kajo Keji, no sul do Sudão do Sul. O centro empregava mulheres que através de produtos que fabricavam obtinham algum dinheiro extra para sustentar as suas famílias.

O centro produzia artigos em algodão, tecido pelas funcionárias do Lady Lomin, incluindo ti-chertes e outras peças de roupa, trabalhos variados em missangas, etc. O centro tinha um posto de vendas na casa provincial dos combonianos, em Juba. Infelizmente, a guerra civil que estalou em dezembro de 2013 entre as forças leais ao presidente Salva Kiir e as do seu vice-presidente Riek Machar chegou à missão de Lomin e os missionários, juntamente com os habitantes locais, tiveram de se refugiar no Norte do Uganda. A missão de Lomin foi saqueada e destruída.

A pulseira da Lady Lomin é memória dos sete anos que vivi no Sudão do Sul. Foram anos interessantes e importantes. Os dias da rádio. Guardo no coração as pessoas com quem trabalhei, os colegas missionários e missionárias, as amizades que fiz, as mulheres do Lady Lomin que visitei três vezes... E, sendo as missangas azuis e transparentes, lembram também os meus clubes do coração: o Clube Desportivo de Cinfães e o Futebol Clube do Porto! 

A dezena missionária, com contas verdes, amarelas, transparentes, vermelhas e azuis, já desbotadas pelo tempo, separadas por missangas cor de chumbo, foi feita e oferecida pela Ir Maria de Deus Meirinho, missionária comboniana do Soito, Sabugal. Regressou à Casa do Pai há cerca de um ano. O seu serviço missionário decorreu em Portugal, América Latina e Itália. Gostava muito dessa doce mulher do Evangelho. Com ela diz a última visita ao Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe – que os mexicanos chamam simplesmente La Villa – antes de regressar a Portugal depois de nove meses de formação permanente naquele país.

A dezena além de me recordar a Ir Maria de Deus, é também sinal da minha vocação missionária! E, quando esqueço o terço no meu quarto, serve também para contar as ave-marias das dezenas dos mistérios do rosário.

A pulseira de contas verdes, amarelas e encarnadas tem as cores da bandeira da Etiópia, o meu lar corrente. Um missionário veterano uma vez disse-me que só somos verdadeiros missionários se entramos numa relação esponsal com o povo que nos recebe. A pulseira tricolor recorda a minha aliança de amor com a Etiópia e, especialmente, com o povo guji com quem vivo e sirvo.

A pulseira de couro foi-me oferecida por uma amiga que vive na Galiza. Por via dela, representa todas as amigas e amigos que tenho espalhados pela Europa, África, Ásia e Américas. 

O Senhor prometeu cem vezes mais a quem deixar pais, irmãos, filhos e terras por causa dele e do Reino de Deus. Ele é um cavalheiro e mantém a sua palavra. Porque aceitei o seu convite de ser seu missionário no do Instituto dos Missionários Combonianos, agora a minha família alarga-se a quatro continentes e deixa-me de coração cheio.

Quando contemplo as minhas pulseiras louvo o Senhor da Vida e da Missão pela minha vida e missão, e por todas as pessoas que fazem parte da minha história. E encomendo-as, todas e cada uma, ao carinho de Deus. 

As pulseiras são os meus altares, memoriais de rostos e corações que manifestam e encarnam a ternura de Deus para comigo e que trago no coração. A ti também!

25 de outubro de 2024

CORAÇÃO MISSIONÁRIO DE JESUS

 

O papa Francisco publicou no dia 24 de outubro a sua quarta carta encíclica, o documento papal mais relevante, sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus. Chamou-lhe Dilexit nosAmou-nos (em latim). O título é tirado da Carta aos Romanos (8, 37).

O documento está dividido em cinco capítulos: 1) A importância do coração; 2) Gestos e palavras de amor; 3) Este é o coração que tanto amou; 4) Amor que dá de beber; 5) Amor por amor. A encíclica abre com uma pequena introdução e tem a respetiva conclusão. 

A encíclica é formada por 220 parágrafos e 227 notas. Entre os autores citados encontra-se São Daniel Comboni (o fundador das Missionárias e Missionários Combonianos) e a Regra de Vida dos Missionários Combonianos. O património espiritual comboniano de alguma forma pertence também ao Magistério da Igreja.

«Dizia um santo missionário, que “este Coração divino, que suportou ser trespassado por uma lança inimiga para poder derramar por aquela ferida sagrada os Sacramentos, onde se formou a Igreja, jamais deixou de amar”, escreve o papa no nº 149.  

O Papa repropõe a devoção ao Coração humano e divino de Jesus – gosto do sublinhar das vertentes humana e divina – como resposta à falta de coração e de poesia no mundo de hoje. A sociedade de hoje é anti-coração porque narcisista, autorreferencial e artificial. «A poesia e o amor são necessários para salvar o humano» (nº 20), sublinha ao mesmo tempo que lança uma pergunta provocadora: «Tenho coração?» (nº 23).

 

DIMENSÃO MISSIONÁRIA DO AMOR A CRISTO

Neste apontamento debruço-me sobre a conclusão do último capítulo da encíclica onde o papa explora a dimensão missionária da devoção ao Coração de Jesus sob o subtítulo «Fazer o mundo enamorar-se» (nºs 205-216), um cabeçalho que expõe a essência da missão. O nosso amor a Cristo tem uma dimensão missionária.

Francisco começa por expor dois pensamentos de São João Paulo II sobre a devoção ao Coração de Jesus: a reparação ao Coração de Cristo «é a reparação apostólica para a salvação do mundo» e a consagração ao Coração de Cristo é «uma aproximação à ação missionária da própria Igreja» (nº 206).

O papa recorda que a obra missionária da Igreja prolonga o fogo do amor do Coração de Jesus «que leva o anúncio do amor de Deus manifestado em Cristo» (nº 207).

«À luz do Sagrado Coração, a missão torna-se uma questão de amor, e o maior risco desta missão é que se digam e façam muitas coisas, mas não se consiga promover o encontro feliz com o amor de Cristo que abraça e salva» (nº 208), alerta.

Uma missão que nasce do encontro com o amor de Jesus «requer missionários apaixonados, que se deixem cativar por Cristo e que inevitavelmente transmitam esse amor que mudou as suas vidas» (nº 209).

Francisco propõe um simplex missionário: «Falar de Cristo, pelo testemunho ou pela palavra, de tal modo que os outros não tenham de fazer um grande esforço para o amar, é o maior desejo de um missionário da alma» (nº 210).

Adverte a Igreja não faz proselitismo, mas insere as pessoas na experiência do amor de Deus com respeito pela liberdade e dignidade, sem imposições, recordando que «Cristo pede-te que não tenhas vergonha de reconhecer a tua amizade com Ele» (nº 211).

Avisando contra intimismos individualistas, o papa explica que comunicar Cristo não é uma questão entre mim e Ele, mas faz-se sempre em comunhão. «[A missão] é vivida em comunhão com a própria comunidade e com a Igreja. Se nos afastarmos da comunidade, afastamo-nos também de Jesus» (nº 212). 

E alerta: «Nunca se deve esquecer este segredo: o amor pelos irmãos e irmãs da própria comunidade – religiosa, paroquial, diocesana, etc. – é como o combustível que alimenta a nossa amizade com Jesus. Os atos de amor para com os irmãos e irmãs da comunidade podem ser a melhor ou, por vezes, a única forma possível de exprimir aos outros o amor de Jesus Cristo» (nº 212).

 Os missionários são os mensageiros do amor de Deus sobretudo para os mais pobres, desprezados e abandonados. No encontro com os outros, os missionários encontram Cristo que coopera com eles (Marcos16, 20). «Que lindo encontro!» (nº 213), exclama.

«De uma forma misteriosa, é o seu amor que se manifesta através do nosso serviço, é Ele próprio que fala ao mundo naquela linguagem que por vezes não tem palavras» (nº 214), explica o papa argentino.

Francisco retoma o tema recorrente «eu sou uma missão» – que apresentou pela primeira vez na Exortação Apostólica A alegria do Evangelho – e explica que a missão é fundamental para o amadurecimento da relação pessoal com Jesus: «Para que essa amizade amadureça, é preciso que te deixes enviar por Ele para cumprir uma missão neste mundo, com confiança, com generosidade, com liberdade, sem medo. [...] Quem não cumpre a sua missão nesta terra não pode ser feliz» (nº 215).

Logo, desafia: «Deixa-te enviar, deixa-te conduzir por Ele para onde Ele quiser. Não te esqueças que Ele vai contigo» (nº 215) ao mesmo tempo que celebra que ser missionário «é uma experiência preciosa» (nº 216).

É, sim! Uma experiência preciosa e um privilégio. 

21 de outubro de 2024

NA MESA DOS BEDUÍNOS


Quando chegamos à aldeia beduína para o encontro com as mulheres, os filhos de Om Ebrahim estavam a degolar os cabritos. 

Os seus sete filhos e as suas esposas estavam todos ocupados: uns cortavam e lavavam a carne, outros levavam-na para a cozinha e cozinhavam-na. 

Tínhamos combinado começar o primeiro curso de costura com a nova máquina depois de um ano de bordados. 

As mulheres acolheram-nos apesar de estarem à espera de visitas. 

É costume que familiares e amigos se reúnam no quadragésimo dia depois de um funeral para partilharem e comerem juntos. 

Apesar dos muitos afazeres, arranjaram tempo para nos prepararem um prato delicioso: cebolada de fígado de cabrito. Dividiram connosco o melhor!

Nos meus 34 anos como Irmã Missionária Comboniana em Itália, Estados Unidos, Egito, Sudão, Sudão do Sul, Guatemala e Terra Santa partilhei de muitas mesas, em línguas diferentes, comendo as suas comidas e escutando o que lhes dá sentido, alegria, medo e sonhos. 

Fui testemunha do poder de partilhar a mesa, de conversas que edificam e unem para além das fronteiras culturais, sociais, políticas e religiosas.

Na sua mensagem para o Dia Mundial das Missões, o Papa Francisco recorda que Deus preparou um banquete a que todos – sem exceção – estamos convidados. 

Chama-nos à inclusão, ao empoderamento dos vulneráveis e a experimentar a graça e a generosidade de Deus.

Os beduínos, vivendo nas margens, alargam as suas mesas para nos incluírem. 

Hoje, no Dia Mundial das Missões, digo «Sim» ao convite de repartir esta bela missão.

Uma vez mais, agradeço a graça imerecida de partilhar esta vocação na Terra Santa.

Seguimos decididas a assegurar que também os beduínos – palestinianos e muçulmanos – encontrem o seu lugar nas mesas da justiça, paz, fraternidade e a vida digna.

Cecília Sierra

Missionária Comboniana

a trabalhar com beduínos no Deserto da Judeia

19 de outubro de 2024

TODOS AO BANQUETE

 

Este ano, o Papa Francisco escolheu o tema «Ide e convidai todos para o banquete (cf. Mt 22, 9)» para o Dia Mundial das Missões de 2024. A citação é tirada da parábola do banquete nupcial para o filho do rei (Mateus 22, 1-14). O Papa escreve no final do primeiro parágrafo: 

Refletindo sobre esta frase-chave, no contexto da parábola e da vida de Jesus, podemos ilustrar alguns aspetos importantes da evangelização. Tais aspetos revelam-se particularmente atuais para todos nós, discípulos-missionários de Cristo, nesta fase final do percurso sinodal que, de acordo com o lema «Comunhão, participação, missão», deverá relançar na Igreja o seu empenho prioritário, isto é, o anúncio do Evangelho no mundo contemporâneo. 

Podemos entender a Igreja como assembleia para louvar o nosso Deus através de liturgias elaboradas e edificantes, cheias de cânticos e palavras – em latim ainda melhor, como querem alguns – e muito incenso. No entanto, somos, primeiramente, Igreja para anunciar o Senhor, Igreja missionária. 

O Papa Francisco é incisivo: a primeira tarefa da Igreja, «o seu empenho prioritário» – como ele escreve, é a pregação do Evangelho. A Igreja é missão. Cada batizado é uma missão. 

 

VAI E CONVIDA

Na parábola de Jesus sobre as bodas do príncipe, os convidados ignoraram o convite: têm campos para trabalhar, negócios para tratar. Alguns descarregaram a própria raiva sobre os mensageiros, espancando ou até matando alguns deles. 

Sabemos que o rei é Deus; o príncipe é Jesus; os convidados são o povo de Israel; as bodas do filho são as bodas do Cordeiro (Apocalipse 19, 9); os servos do rei são os profetas de Deus. 

A salvação de Deus é geralmente apresentada nas Escrituras judaicas como um banquete rico e abundante. Trata-se de uma imagem muito forte para um povo que apenas comia uma magra refeição por dia, normalmente antes de ir dormir. Os casamentos eram parêntesis de abundância de comida e bebida numa vida que, de outra forma, seria esfaimada.

«Ide às saídas dos caminhos e convidai para as bodas todos quantos encontrardes», ordenou o irritado rei aos seus servos. Esta é a nossa faina primeira como servidores do Evangelho, humildes trabalhadores na seara do Senhor: ir e convidar. 

O Rei convida toda a humanidade para o banquete nupcial do Cordeiro. Escreve o Papa: «Deus, grande no amor e rico de misericórdia, está sempre em saída ao encontro de cada ser humano para o chamar à felicidade do seu Reino, apesar da indiferença ou da recusa. Assim Jesus Cristo, bom pastor e enviado do Pai, andava à procura das ovelhas perdidas do povo de Israel e desejava ir mais além para alcançar também as ovelhas mais distantes (cf. Jo 10, 16)».

A Igreja está em movimento desde a manhã da ressurreição de Jesus, um acontecimento que provocou uma grande agitação e pôs tudo numa roda-viva: Maria de Magdala, as outras mulheres, Pedro e João, até os discípulos de Emaús. Todos a correr. Os seus limites geográficos: os confins da terra, os confins do universo.

Mas a Igreja sai para convidar! «Aqueles servos-mensageiros transmitiam o convite do soberano assinalando a sua urgência, mas faziam-no também com grande respeito e gentileza. De igual modo, a missão de levar o Evangelho a toda a criatura deve ter, necessariamente, o mesmo estilo d’Aquele que se anuncia», observa o Papa. 

 

PARA O BANQUETE

Como já disse, o banquete é uma imagem que serve de parábola para o acontecimento da salvação universal, o banquete escatológico de grande abundância e sem lágrimas, vergonha ou morte, preparado por Deus para todos os povos (Isaías 25, 6-8).

Jesus apresenta a sua missão como o bom e belo pastor que dá vida em abundância a todos: «Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância» (João 10, 10). Ele até iniciou o seu ministério público numa festa de casamento, o seu primeiro sinal, a rogo da mãe.

O Papa sublinha que hoje são oferecidos às pessoas dois banquetes:

1.     O do consumismo, conforto egoísta, acumulação de riqueza e individualismo;

2.     O da alegria, partilha da fraternidade na comunhão com Deus e com os outros.

Ele recorda que a Eucaristia é um sinal sacramental da plenitude da vida prometida a e para todos. «Temos esta plenitude de vida, dom de Cristo, antecipada já agora no banquete da Eucaristia, que a Igreja celebra por mandato do Senhor em memória d’Ele», escreve.

E prossegue: «Todos somos chamados a viver mais intensamente cada Eucaristia em todas as suas dimensões, particularmente a escatológica e a missionária. Reafirmo, a este respeito, que “não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens”», citando Bento XVI.

A Eucaristia, sendo a fonte e o cume da vida cristã, é a fonte e o cume da missão da Igreja. A Eucaristia termina com o mandamento «Ide». Somos enviados para convidar todas as pessoas, todos os povos para o banquete nupcial do Cordeiro, simbolizado na Eucaristia.

 

TODOS

O Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, o ano passado, disse: «Na Igreja há lugar para todos. [...] Repitam comigo: todos! Todos! Todos! Todos! Não vos consigo ouvir. Outra vez: todos! Toda a gente! Todos! E esta é a Igreja, a mãe de todos.»

Mateus escreve que «os servos, saindo pelos caminhos, reuniram todos aqueles que encontraram, maus e bons, e a sala do banquete encheu-se (Mateus 22, 10).

O Papa sublinha este facto escrevendo que «os discípulos missionários de Cristo trazem sempre no coração a preocupação por todas as pessoas, independentemente da sua condição social e mesmo moral. A parábola do banquete diz-nos que, seguindo a recomendação do rei, os servos reuniram “todos aqueles que encontraram, maus e bons”». O desígnio salvífico de Deus não exclui ninguém.

Ele afirma: «o Evangelho de Cristo é a voz mansa e forte que chama os homens a encontrarem-se, a reconhecerem-se como irmãos e a alegrarem-se pela harmonia entre as diversidades».

Bons e maus: todos são convidados para o banquete da salvação que Deus prepara e oferece a toda a criação. Nós, missionários, não podemos fazer julgamentos morais enquanto evangelizamos. Todos são dignos de um lugar à mesa das núpcias do Cordeiro. 

No entanto, cada convidado tem de usar a veste nupcial. Tem de ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo (Filipenses 2, 5) para viver como Cristo Jesus viveu. É esta a transformação que o Evangelho realiza em nós. Chamamos-lhe conversão.

O Papa recorda que a missão é para todos e um compromisso de todos os batizados. Ninguém está desempregado na Igreja; cada batizado está em estado permanente de missão.

«A missão para todos requer o empenho de todos. Por isso é necessário continuar o caminho rumo a uma Igreja, toda ela, sinodal-missionária ao serviço do Evangelho», assinala Francisco. 

 

ESTRELA DA EVANGELIZAÇÃO

O Papa conclui a sua mensagem com um pedido: «Também hoje peçamos a sua [de Maria] intercessão materna para a missão evangelizadora dos discípulos de Cristo. Com o júbilo e a solicitude da nossa Mãe, com a força da ternura e do carinho, saiamos e levemos a todos o convite do Rei Salvador.»

A oração de Francisco apresenta a Mãe como modelo missionário: ela conjuga a alegria materna e a solicitude amorosa com a ternura e o carinho, que são a sua força e nos capacitam para ir e convidar cada pessoa e toda a criação para o banquete nupcial do Cordeiro.

Com Francisco, rezamos: «Santa Maria, Estrela da evangelização, rogai por nós!»

15 de outubro de 2024

ADEUS, HIENA



O dia acordou cheio de sol, lindo mesmo. A cozinheira deu-me os bons dias com cara de caso. «Buchi morreu!», disse, triste.

Bichi era como ela tratava o nosso rafeiro. Eu chamava-lhe Halala, Hiena em guji, por causa das suas cores quando era cachorrito.

Hiena apanhou o portão da missão aberto à noite, foi para a estrada e foi apanhado por um tuque-tuque, os táxis daqui. Fiquei triste, porque estava afeiçoado ao cachorro.

Veio para a missão de Qillenso há menos de meio ano. Tinham-nos matado o Bobi. Fui à aldeia vizinha comprar carne com a cozinheira e ela meteu-o na caixa do todo-o-terreno.

Vi-o quando chegamos a casa. Tremia como varas verdes – nunca tinha andado de carro – e estava cheio de pulgas. Guyyate pegou no spray para mosquitos e resolveu o problema.

Hiena – ou Halala – detestava a água. Quando lhe dava banho chorava como uma criança. Era difícil apanhá-lo perto de casa. Até para lhe tirar as carraças, que eram mais que muitas. Gostava de dormir num monte de palha seca.

Entretanto, cresceu e eu deixei de o lavar. Mas ganhou confiança de novo e gostava de ser acarinhado.

Comia tudo: ossos, restos de comida, bananas, abacates, milho cozido ou cru... O que lhe aparecesse à frente. «Boquinha de missionário!», comentava o meu colega.

Era pequeno de corpo, mas tinha um caminhar vaidoso, altivo, seguro de si.

O seu ladrar estridente à noite punho tudo a milhas.

Quando estava fora de Qillenso por algum tempo, fazia uma festa à minha chegada: corria à frente do carro e quando saía punha-se a grunhir de uma maneira especial à procura de miminhos.

Às vezes, quando cantávamos ele uivava. Nunca entendi se era a fazer pouco de nós ou para cartar connosco.

Durante a oração da manhã e da tarde gostava de se coçar contra os nossos pés, na sala de estar.

Durante as refeições esperava pacientemente por um bocado de pão ou outro petisco.

Cresceu com a gata e os dois filhotes. Mas ultimamente gostava de lhes dar umas corridas. E a comida era toda para ele. Tive de começar a alimentar os gatos no topo de um poço alto onde ele não chegava.

Gostava muito de brincar com as pessoas, sobretudo com os miúdos, que fugiam dele a pés juntos, porque tinham medo de ser mordidos...

É interessante como nos afeiçoamos aos animais. Fiquei muito triste quando mataram o Bibi e mais triste ainda quando o Halala foi atropelado...

Vamos ter de arranjar outro cachorrito, porque de noite os guardas vão dormir para casa e a missão fica escancarada...

MISSIONÁRIOS SEGUNDO O CORAÇÃO DE COMBONI


Os membros do XIX Capítulo Geral dos Missionários Combonianos escreveram na introdução à prioridade da Espiritualidade dos Documentos Capitulares 2022 (DC ’22): «Radicados em Cristo, unidos a São Daniel Comboni, vivemos um contacto constante com o Senhor na oração que se torna vida e missão, incentiva todo o nosso trabalho e as nossas prioridades, humaniza as nossas relações, motiva a nossa ação e a torna fecunda» (DC '22, 11).

Vivemos em Cristo, juntamente com São Daniel Comboni, e transformamos a oração na seiva vivificante que nos dá força para viver de modo fecundo a missão que somos e as nossas relações pessoais.

Os capitulares acrescentaram: «Sonhamos com uma espiritualidade que nos permita continuar a crescer como família fraterna de consagrados radicados em Jesus, na sua Palavra e no seu Coração, e contemplá-lo nos rostos dos pobres e na experiência vivida por São Daniel Comboni para ser missão» (DC '22, 12).

Este sonho deixou em mim uma marca indelével desde a primeira vez que li os documentos do capítulo. Nele se explicitam os ingredientes fundamentais que fazem a nossa vida espiritual: Jesus, a quem Charles de Foucault chamava «meu irmão e Senhor», a sua Palavra, o seu Coração, os pobres e a experiência de Comboni.

Na reflexão de hoje aprofundarei «a experiência vivida por São Daniel Comboni para ser missão» à luz da sua inspiradora homilia em Cartum, Sudão, quando regressou àquela Igreja como Provigário Apostólico.

A nossa família missionária é constituída por Missionários Combonianos, Irmãs Missionárias Combonianas, Missionárias Seculares Combonianas e Leigos Missionários Combonianos. Comboni faz parte do nosso nome, porque é o nosso pai e a nossa herança comum. Ele é o GPS do nosso ser missão; caminhamos sobre as suas pegadas.

 

HOMILIA DE CARTUM

O P. Daniel Comboni foi nomeado Provigário Apostólico para a África Central a 26 de maio de 1872. A 11 de junho, a missão da África Central foi confiada ao seu Instituto por decreto de Pio IX.

Antes, a 1 de janeiro do mesmo ano, tinha fundado o Instituto das Pias Madres da Nigrícia – as Irmãs Missionárias Combonianas – em Montorio, Verona, e no mesmo mês tinha dado início aos Annali del Buon Pastore, semente de tantas revistas e publicações combonianas nos quatro continentes que fazem dos meios de comunicação social um campo de evangelização na tradição comboniana.

A 20 de setembro de 1872, Comboni partiu de Trieste na sua sexta viagem a África. Seis dias depois estava no Cairo. A 26 de janeiro de 1873, partiu do Cairo para Cartum. A expedição inclui pela primeira vez algumas irmãs europeias. A 4 de maio, depois de 99 dias de uma longa e cansativa viagem pelo Nilo e pelo deserto, o Provigário é acolhido solenemente em Cartum. Uma semana depois, a 11 de maio, apresenta o seu projeto de missão através de uma homilia.

A prática, proferida em árabe, foi traduzida pelo P. Giovanni Battista Carcereri e publicada nos Annali del Buon Pastore.

Revisitemo-la de novo:

Estou muito contente de finalmente me encontrar de novo entre vós, depois de tantas vicissitudes penosas e de tantos ansiosos suspiros. O primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia e, deixando tudo o que me era mais querido no mundo, vim, faz agora dezasseis anos, a estas terras para oferecer o meu trabalho como alívio para as suas seculares desgraças. Depois, a obediência fez-me voltar para a Europa, dada a minha enfraquecida saúde, que os miasmas do Nilo Branco em Santa Cruz e em Gondokoro tinham incapacitado para a ação apostólica. Parti para obedecer; porém, entre vós deixei o meu coração e, tendo-me recomposto como Deus quis, os meus pensamentos e os meus atos foram sempre para convosco.

E hoje, finalmente, recupero o meu coração voltando para junto de vós para o abrir na vossa presença ao sublime e religioso sentimento da paternidade espiritual, da qual quis Deus que fosse investido, faz agora um ano, pelo supremo chefe da Igreja Católica, nosso senhor o Papa Pio IX. Sim, eu sou vosso pai e vós meus filhos e como tais pela primeira vez vos abraço e estreito contra o meu coração. Estou-vos muito reconhecido pelas entusiásticas receções que me tendes dispensado: demonstram o vosso amor de filhos e persuadem-me de que quereis ser sempre a minha alegria e o meu diadema, como sois o meu dote e a minha herança.

Tende a certeza de que a minha alma vos corresponde com um amor ilimitado para todo o tempo e para todas as pessoas. Eu volto para o meio de vós para nunca mais deixar de ser vosso e totalmente consagrado para sempre ao vosso maior bem. O dia e a noite, o Sol e a chuva encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender as vossas necessidades espirituais; o rico e o pobre, o são e o doente, o jovem e o velho, o patrão e o servo terão sempre igual acesso ao meu coração. O vosso bem será o meu e as vossas penas serão também as minhas.

Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós. Não ignoro a gravidade do peso que lanço sobre mim, já que, como pastor, mestre e médico das vossas almas, terei de velar por vós, instruir-vos e corrigir-vos; defender os oprimidos sem prejudicar os opressores, reprovar o erro sem censurar o que erra, condenar o escândalo e o pecado sem deixar de ter compaixão pelos pecadores, procurar os transviados sem encorajar o vício: numa palavra, ser ao mesmo tempo pai e juiz. Mas resigno-me a isso, na esperança de que todos vós me ajudareis a levar este peso com júbilo e com alegria em nome de Deus.

Sim, antes de tudo confio no teu trabalho, reverendo padre e meu caríssimo vigário-geral: em ti, que foste o primeiro que me ajudou nesta obra da missão para a regeneração da Nigrícia e o primeiro que arvoraste o estandarte da santa cruz no Cordofão e ensinaste àqueles povos os primeiros rudimentos da fé e da civilização. E também confio em vós, estimados sacerdotes irmãos meus e filhos neste apostolado, uma vez que sereis os meus braços na ação de dirigir pelos caminhos do Senhor o seu povo e ao mesmo tempo meus anjos conselheiros. E igualmente confio em vós, veneráveis irmãs, que com mil sacrifícios vos associastes a mim para colaborar comigo na educação da juventude feminina. E do mesmo modo confio em todos vós, senhores, porque sempre querereis confortar-me com a vossa obediência e docilidade às afetuosas insinuações que o meu dever e o vosso bem me aconselhem a fazer-vos.

Quanto a si, ilustre representante de S. M. I. R. A. o imperador Francisco José I, nobre protetor desta vasta missão, enquanto com prazer lhe agradeço quanto fez até agora por ela, apresso-me a exprimir-lhe a esperança de que quererá continuar a render gloriosamente a homenagem da espada à cruz, a defender os direitos da nossa religião divina, no caso de serem ignorados e espezinhados.

E agora é a vós a quem me dirijo, ó piedosa Rainha da Nigrícia, e, aclamando-vos como Mãe amorosa deste vicariato apostólico da África Central entregue aos meus cuidados, atrevo-me a suplicar-vos que nos recebais solenemente sob a Vossa proteção a mim e a todos os meus filhos, para que nos guardeis do mal e nos dirijais para o bem.

Ó Maria, Mãe de Deus, o grande povo dos negros dorme ainda na sua maior parte nas trevas e sombras da morte: apressai a hora da sua salvação, aplanai os obstáculos, dispersai os inimigos, preparai os corações e enviai sempre novos apóstolos a estas remotas regiões tão infelizes e necessitadas.

Meus filhos, eu confio-vos neste dia solene à piedade dos Corações de Jesus e de Maria, e, no ato de oferecer por vós o mais aceitável dos sacrifícios ao Altíssimo Deus, rogo humildemente que seja derramado sobre as vossas almas o sangue da redenção, para as regenerar, para as sarar, para as embelezar na medida da vossa necessidade, a fim de que esta santa missão seja fecunda para a vossa salvação e para a glória de Deus. E assim seja (Escritos 3156-3164).

Esta homilia foi proclamada há 151 anos. Tem 867 palavras na tradução portuguesa. É curta, mas muito motivadora. Continua a inspirar as missionárias e os missionários de Comboni. É parte integrante do nosso património missionário. Nele encontramos o código genético da nossa espiritualidade comboniana e do modo de ser missão. 

 

A MISSÃO EM TRÊS TEMAS

A partir da homilia de Comboni, gostaria de refletir convosco sobre três temas:

1.         A missão é aliança;

2.         A missão é permanente;

3.         A missão faz-se em rede.

 

1. A MISSÃO É ALIANÇA

A missão, à luz de Comboni, é uma aliança esponsal e martirial com Deus, com os seus missionários e com as pessoas com quem vive e a quem serve.

Comboni pronuncia na sua homilia afirmações muito fortes e profundas. Sublinho sete: 

-      O primeiro amor da minha juventude foi para a infeliz Nigrícia;

-      Entre vós deixei o meu coração e, tendo-me recomposto como Deus quis, os meus pensamentos e os meus atos foram sempre para convosco;

-      Pela primeira vez vos abraço e estreito contra o meu coração;

-      Quereis ser sempre a minha alegria e o meu diadema, como sois o meu dote e a minha herança;

-      Eu volto para o meio de vós para nunca mais deixar de ser vosso e totalmente consagrado para sempre ao vosso maior bem;

-      O vosso bem será o meu e as vossas penas serão também as minhas;

-      Quero partilhar a vossa sorte e o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós. 

Estas frases fazem-me lembrar a declaração de pertença de Rute a Noemi, sua sogra: «Onde tu fores, eu irei contigo e onde pernoitares, aí ficarei; o teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus» (Rute 1,16).

Esta é a pertença nupcial, este é o coração da aliança de Comboni com os africanos. Esta deveria ser a nossa própria aliança com as pessoas com quem vivemos e a quem servimos. O Papa Francisco escreveu na sua primeira exortação apostólica, o programa do seu papado, que «a missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo» (Evangelii gaudium, 268). Não podemos separar Jesus do seu povo. Eles são um só.

Esta aliança esponsal brota do coração: Comboni usa a palavra coração(ões) seis vezes na sua homilia. É uma aliança cordial que brota do amor: a palavra aparece três vezes no sermão. Sinto o palpitar do seu coração. Enquanto em Itália os políticos proclamavam «Roma ou morte!» a partir da segurança das suas zonas de conforto, Comboni em África dizia com a sua vida «Nigrícia ou morte!». Desafiava a morte com a sua vida. Morreu em Cartum há 143 anos. Tinha 50 anos. A sua morte é o selo do seu amor pelos africanos.

Paulo diz-nos, naquele belíssimo hino ao amor, que «ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me vale» (1 Coríntios 13,3). Uma missão sem amor é inútil!

O Cardeal José Tolentino Mendonça – poeta, místico e mestre de espiritualidade – escreveu que «não há amor se não houver excesso de amor». 

Para entrar nesta relação cordial com os GUJIS, o nosso povo, temos de dizer com a nossa vida: a tua língua é a minha língua, a tua cultura é a minha cultura, a tua noção de tempo é também a minha; os teus sonhos são os meus sonhos, as tuas alegrias são as minhas alegrias, os teus problemas são os meus problemas, as tuas esperanças são as minhas esperanças; e a minha vida é tua.

É assim que exercemos o sentido de pertença às pessoas que servimos. Podem chamar-nos farenji – estrangeiro, mas, na verdade, somos farenji guji! Quando algumas pessoas expressam surpresa por eu, de alguma forma, falar guji, digo-lhes: «Eu sou guji, mas quando nasci, lavaram-me com lixívia e a minha pele estragou-se!» E rimo-nos juntos. 

Por outro lado, cada vocação é um chamamento pessoal e único. No entanto, somos chamados a viver a nossa própria vocação numa comunhão de vocações: os nossos Institutos. Para vivermos a nossa aliança conjugal com os gujis precisamos de temperar a nossa vida com uma boa pitada de ubuntu, a filosofia de vida africana que afirma que «eu sou porque nós somos». Não somos agentes solitários de evangelização. Temos de recuperar «o prazer espiritual de ser povo», como diz o Papa Francisco. O Papa dedica um capítulo inteiro a este tema na Evangelii gaudium.

Comboni proclamou: «o dia mais feliz da minha existência será aquele em que eu possa dar a vida por vós». Esta é a dimensão martirial da missão: dar a vida pelo povo que se serve. Segundo a segundo, dia a dia, ano a ano.

A Igreja reconhece dois tipos de martírio: o vermelho e o branco. Aqueles que são mortos por ódio à fé e aqueles que sofrem uma morte lenta devido à sua constância quotidiana. 

O martírio vermelho é o mais fácil e chama mais a atenção. No entanto, somos convidados a dar a nossa vida, a viver o dia-a-dia com as pessoas que servimos no centro do nosso coração. A permitir que sejam elas a ditar a nossa agenda diária. A enfrentar com um sorriso as dificuldades quotidianas. A permanecer no lugar mesmo quando os outros fogem. Este é o martírio branco. Não é apelativo e pode ser muito doloroso. No entanto, este era o modo de Comboni ser missão na África Central.

 

2. A MISSÃO É PERMANENTE

Comboni proclamou na sua homilia: «O dia e a noite, o Sol e a chuva encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender as vossas necessidades espirituais; o rico e o pobre, o são e o doente, o jovem e o velho, o patrão e o servo terão sempre igual acesso ao meu coração».

Estamos sempre em estado de missão. A missão é permanente: «O dia e a noite». Somos missionários para todas as condições meteorológicas: «O Sol e a chuva». Somos missionários cordiais para todos: «terão sempre igual acesso ao meu coração». Os que amamos ou gostamos e aqueles que, de alguma forma, não gostamos.

A missão não é um tempo parcial nem um passatempo. É o nosso respirar, o nosso viver, o nosso morrer. O serviço missionário não é apenas uma entre as muitas coisas que fazemos. Não é mais um parêntesis na nossa agenda pessoal quotidiana. 

É uma disponibilidade constante para amar: «encontrar-me-ão igualmente e sempre disposto a atender» – diz Comboni. «Sempre!», sublinha.

É cordial: brota do coração da Santíssima Trindade e dirige-se ao coração do mundo inteiro através do nosso próprio coração. É missio Dei (como diz o decreto conciliar Ad gentes), não é a minha missão, não é a missão do meu instituto.

O Papa Francisco escreveu na sua primeira exortação apostólica: «Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar» (Evangelii gaudium 273).

A missão é ontológica: faz parte do meu ser, do meu viver, da minha identidade. Somos missionários porque amamos as pessoas com quem vivemos, sempre. Nós não fazemos missão – diriam alguns confrades: «Fare il missionario!» –, nós somos uma missão. Sempre e em todo o lado!

Somos uma missão para iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar. Que descrição de trabalho! Estes são os verbos com que conjugamos a missão, a sua gramática.

Francisco introduz a sua declaração com estas palavras: «A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser».

ad gentes não é territorial: é cordial. O coração é o território da missão. A missão torna-se um encontro de corações: o coração de Deus com o coração do seu povo através do coração missionário. Somos missionários por estarmos permanentemente e totalmente no coração das pessoas, por trazê-las sempre no nosso coração. 

«Nisto uma pessoa se revela enfermeira no espírito, professor no espírito, político no espírito..., ou seja, pessoas que decidiram, no mais íntimo de si mesmas, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias exigências. Deixará de ser povo» – conclui o Papa.

Assim, também nós somos desafiados a ser missionários no espírito, «pessoas que decidiram [...] estar com os outros e ser para os outros», sempre, sem zonas cinzentas de privacidade que condicionem a nossa opção de estar para os outros.

 

3. A MISSÃO FAZ-SE EM REDE

Comboni, na sua homilia programática, proclama que conta – ele diz «confio» – com o trabalho do seu Vigário-geral, dos seus sacerdotes e irmãos, das veneráveis Irmãs, dos senhores presentes e do representante do imperador austríaco. 

Por outras palavras, Daniel Comboni sabe que o sucesso da sua missão como Provigário Apostólico para a África Central depende da cooperação dos seus colaboradores eclesiais, da sociedade civil – os senhores – e do poder político – o representante do imperador – que, segundo as suas próprias palavras, «quererá continuar a render gloriosamente a homenagem da espada à cruz, a defender os direitos da nossa religião divina, no caso de serem ignorados e espezinhados».

Não somos missionários no singular, nem podemos ser missionários sozinhos. Jesus enviou os Doze e os Setenta e dois, dois a dois. Precisamos de trabalhar em rede com outras pessoas – igreja local à qual pertencemos, missionários leigos, sociedade civil, agentes humanitários, líderes religiosos e membros de outras igrejas, políticos, etc. – para sermos a missão que Deus quer que sejamos. 

Os DC ‘22, sobre a prioridade Ministerialidade ao serviço da requalificação, exprimem o compromisso de «aviar um diálogo e uma colaboração com as Igrejas locais para desenvolver pastorais específicas e trabalhar em rede com os movimentos populares» (DC '22, 31.4)

Hoje, como outrora, a missão é sinodal: caminhamos juntos, trabalhamos juntos, vivemos juntos, acreditamos juntos.

O plano de Comboni era um sonho de colaboração em rede de todos os institutos missionários trabalhando juntos, uma ampla coligação para preparar os africanos para serem salvadores e regeneradores de si mesmos. Infelizmente, este grande projeto não se materializou.

Comboni queixava-se do «maldito egoísmo religioso e fradesco que impera em quase todas as ordens religiosas: “A ordem e depois Cristo e a Igreja”. [...] Não é grande coisa o bem que se faz, diz o frade, se não provém da ordem» (Escritos 2387). Por isso estamos aqui: porque outros institutos não trabalharam com Comboni, ele fundou os seus dois institutos para levar por diante o projeto. Somos um monumento a esta incapacidade de pensar para além da própria ordem, de trabalhar em rede para a glória de Deus.

Hoje, a realidade é tão complexa que não somos capazes de a enfrentar sozinhos, seja na evangelização, na educação, na saúde, na assistência... Precisamos de juntar as nossas ideias, os nossos recursos e as nossas forças para sermos transformadores efetivos da sociedade. Precisamos da experiência e da força uns dos outros para sermos eficazes na prestação de serviços.

 

APELO À MÃE

Comboni chama à Mãe Maria «precioso alívio do missionário» (Escritos 262). Não podia deixá-la de fora da sua missão, do seu programa pastoral: dirige-se a ela no final da homilia.

Reza: 

E agora é a vós a quem me dirijo, ó piedosa Rainha da Nigrícia, e, aclamando-vos como Mãe amorosa deste vicariato apostólico da África Central entregue aos meus cuidados, atrevo-me a suplicar-vos que nos recebais solenemente sob a Vossa proteção a mim e a todos os meus filhos, para que nos guardeis do mal e nos dirijais para o bem.

Ó Maria, Mãe de Deus, o grande povo dos negros dorme ainda na sua maior parte nas trevas e sombras da morte: apressai a hora da sua salvação, aplanai os obstáculos, dispersai os inimigos, preparai os corações e enviai sempre novos apóstolos a estas remotas regiões tão infelizes e necessitadas.

Esta é também a nossa oração, hoje e sempre. Amém!

 

Qillenso, 10 de outubro de 2024 – 143º aniversário do dies natalis de São Daniel Comboni.