19 de junho de 2020

MISSÃO DO CORAÇÃO





O profeta Jeremias, no desassossego das suas buscas incessantes, faz uma observação franca: «Nada mais enganador que o coração tantas vezes perverso». E coloca uma questão inquietante: «Quem o pode conhecer?». Também giza uma resposta: «Eu, o Senhor, penetro os corações e sondo as entranhas» (Jeremias 17, 9-10).

É nesse espaço afetivo do coração e no recôndito mais obscuro das entranhas que muito da nossa vida se decide e joga: no entender da Bíblia, pensamos com o coração e amamos com as entranhas.

Nas buscas essenciais e existenciais de sentido e de significado temos de voltar ao Senhor da Vida para as respostas que não nos satisfazem ou escapam.

Entendemos o que se passa no segredo do nosso coração ao contemplar o Coração do Bom Pastor, um coração trespassado pela lança, aberto, nascente de graça e oásis de descanso.

Foi assim que São Daniel Comboni viveu a espiritualidade do Coração de Jesus. «Sim, poderá cair o mundo; mas eu, enquanto o Coração de Jesus me assistir com a sua graça, permanecerei firme e inamovível no meu posto e morrerei no campo de batalha» (Escritos 5282), escreve.

O Coração trespassado do Bom Pastor é a fonte da força e criatividade para realizarmos o serviço missionário, mais que técnicas e tecnologias.

Esse Coração amoroso é também o conforto e o descanso, o colinho e o respiro, o consolo de que precisamos.

A uma pessoa amiga Comboni recomenda: «Diga a Augusto e a Maria que se lancem aos pés de Jesus Cristo; que se escondam dentro do Coração de Jesus Cristo e aí, nessa fonte inesgotável de conforto, poderão encontrar consolo» (Escritos 2833).

Estas duas frases alavancam a espiritualidade comboniana: beber do Coração Trespassado do Bom Pastor a graça e a inspiração para continuar o serviço missionário ao qual o Senhor nos chamou e encontrar n’Ele o respiro que precisamos para reabraçar o ministério de cada dia.

A contemplação do coração de Cristo é também o método mais eficaz para o processo de cristificação que iniciamos com o nosso batismo e concluiremos com a páscoa da vida eterna.

Jesus desafia-nos: «Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas vidas» (Mateus 11, 29.

Contemplar o Coração de Jesus que palpita de amor por cada pessoa, propondo a mansidão e a humildade como os carris sobre os quais assenta a viagem da nossa vida é parte da formação contínua para o serviço missionário em qualquer estação de vida ou de geografia.

O amor é essencial nesse serviço. Comboni quer-nos santos e capazes. E é o amor que nos capacita; não é o paradigma tecnológico (Escritos 6655).

Paulo recorda no imenso e intenso cântico do amor no capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios que «ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me vale» (versículo 3). Sem coração não há santidade, sem amor não há missão.

É nesta linha que os bispos portugueses descrevem a missão como um ato cordial. Escreveram na Nota pastoral para o Ano Missionário que «do encontro com a Pessoa de Jesus Cristo nasce a Missão que não se baseia em ideias nem em territórios, mas “parte do coração” e dirige-se ao coração, uma vez que são “os corações os verdadeiros destinatários da atividade missionária do Povo de Deus”».

Na espiritualidade comboniana, esse amor fontal, total, final, brutal aprende-se da cruz: «Com a cruz, que é uma sublime efusão da caridade do Coração de Jesus, tornamo-nos poderosos» (Escritos 1735) – escreve o Fundador.

Ele grafou palavras que são profecia para os dias de hoje. Afirma: «firme na convicção de que de toda esta tormenta o Sacratíssimo Coração de Jesus saberá tirar grande bem em favor da santa obra para a redenção da Nigrícia e de que o meu querido Vicariato, depois de tão duríssimas provas, que quase me custaram a vida, ganhará novo vigor e adquirirá mais estável fundamento, à imagem da Igreja, que da perseguição ressurge mais forte e mais fecunda em conversões e em virtudes heroicas» (Escritos 4290).

Na memória ressoam as palavras de Paulo aos cristãos de Roma: «sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados de acordo com o seu desígnio» (Romanos 8, 28). Na economia da graça não há desperdícios, tudo é reciclado, transformado em bondade. Até o pecado! E muitas vezes não sabemos que fazer com o nosso próprio pecado. Basta entregá-lo ao Grande Reciclador.

Ao celebrar o Coração de Jesus, somos chamados a fixar o olhar e a afeição n’Aquele que é o nosso Mestre: «O Sagrado Coração de Jesus palpitou também pelos povos negros da África Central e Jesus Cristo morreu igualmente pelos Africanos. Jesus Cristo, o Bom Pastor, acolherá também a África Central dentro do seu redil. E o missionário apostólico não pode percorrer senão o caminho da cruz do divino Mestre, semeada de espinhos e fadigas de todo o género» (Escritos 5647).

O Coração Trespassado do Bom Pastor é o marca-passo que precisamos para as nossas arritmias. Comboni escreve na introdução da quarta edição do Plano para a Regeneração da África: o católico «levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana, sentiu que o seu coração palpitava mais fortemente; e uma força divina pareceu empurrá-lo para aquelas bárbaras terras, para apertar entre os seus braços e dar um ósculo de paz e de amor àqueles infelizes irmãos seus» (Escritos 2742).

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus surge como resposta ao otimismo excessivo do Iluminismo que proclama que o Homem se basta a si mesmo e o pessimismo obsessivo do Jansenismo que quer proteger Deus do nosso pecado colocando-o atrás das grades, nas igrejas.

O racionalismo iluminista consagra o aforismo cartesiano «penso, logo existo» fechando a pessoa no individualismo racional. É o domínio da razão sobre o coração, do eu sobre o nós. A espiritualidade do Coração de Cristo devolve o coração à humanidade no processo de conversão – metanoia – que nos convida a ir além da razão.

Aliás, o coração é o lugar da conversão como reza o Salmo 85. É também o lugar de «uma fonte de água viva que jorra para a vida eterna» (João 4, 14) – como Jesus explicou à Samaritana. A conversão pode ser descrita como um exercício artesanal, paciente do jardineiro que cuida da surgente da água.

Etty Hillesum, a mística judia holandesa que foi executada em Auschwitz, explica-o no seu diário: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo».

Finalmente, a devoção ao Coração Trespassado do Bom Pastor devolve-nos uns aos outros, porque, como Comboni intuiu, é no Coração de Jesus que nos comunicamos e comungamos uns aos outros: «O Coração de Jesus seja o nosso centro de comunicação» (Escritos 4764).

O Coração de Cristo é o ambiente alternativo à internet sem factos alternativos, notícias falsas nem campanhas de desinformação. É a central onde uma comunicação cordial e profunda é possível através da partilha da vida e da consagração, a comunicação que ansiamos, a partilha que nem sempre logramos para sermos verdadeiro cenáculo de apóstolos.

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